De olho em um modelo de negócios que seja cada vez mais rentável, as companhias telefônicas estão realizando uma ofensiva fortíssima para acabar com um dos pilares centrais da internet livre: a neutralidade da rede. Não por acaso, o Marco Civil da Internet no Brasil (Projeto de Lei nº 2.126/11), que garante o conceito em seu texto, tem tido tanta dificuldade em ser aprovado pela Câmara dos Deputados. Depois de semanas de debates no Plenário da Câmara, o projeto não foi votado até o fechamento desta edição de MídiaComDemocracia.
Em resumo, a ideia da neutralidade garante que o usuário não será discriminado por um provedor de internet com base no seu tipo de consumo. Sem essa garantia, uma empresa telefônica pode, por exemplo, diminuir a velocidade da conexão de alguém que está baixando um vídeo, conversando com outra pessoa por meio de um serviço de Voz por IP (como Skype) ou trocando arquivos de música em redes P2P (peer-to-peer). Se quisesse utilizar esses serviços, o cidadão teria de pagar mais caro. Apesar de negar, as empresas utilizam essa prática de forma velada, conhecida como traffic shaping (modelagem do tráfego).
O argumento das teles contra a neutralidade é de que os preços que cobram pelas diferentes velocidades comercializadas não serão suficientes para manter o modelo de negócio delas. “As empresas de telefonia querem levar para a internet todo o conjunto de tarifas complexas que eles usam nas telecomunicações. Isso significa a morte da internet como conhecemos”, sentencia o publicitário e ciberativista do Movimento Mega Não João Carlos Caribé.
Uma exceção extremamente abrangente
O ponto de ataque das teles é o artigo 9º da última versão do projeto: “O responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicativo.” Ainda afirma que a discriminação de tráfego, por questões técnicas, poderá ser feita em determinados casos e que essas exceções serão regulamentadas por decreto.
A redação do artigo está rendendo boas disputas, pois até o Ministério das Comunicações (Minicom) foi contra a proposta original do deputado federal Alessandro Molon (PT/RJ), relator do projeto. Para o ministério, as exceções devem ser elaboradas pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). Nessa queda de braço com o governo, o deputado manteve a regulamentação da questão via decreto, não explicitando a Anatel no texto, e retirou a obrigatoriedade de se ouvir o Comitê Gestor da Internet no Brasil, como havia proposto anteriormente.
Deixar a regulamentação para a Anatel é tudo o que uma série de movimentos e ativistas organizados em torno do projeto não querem. O primeiro motivo é que a agência já deixou clara a sua posição sobre o assunto no texto de uma consulta pública lançada em 2011, que regulamentava a qualidade da internet. O texto previa a neutralidade, mas não em casos “em que os procedimentos se mostrarem indispensáveis à segurança e à estabilidade do serviço e das redes que lhe dão suporte”. Uma exceção extremamente abrangente.
Para além disso, a reputação da Anatel também não lhe dá muitos créditos. “Há uma histórica prática da Anatel que tende a não ser tão dura com as empresas”, diz a advogada do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) e integrante do CGI.Br, Veridiana Alimonti. O ciberativista João Caribé, do Mega Não, é mais direto: “A Anatel é quase um sindicato das teles”. Para os dois, apesar de ainda poder ser aperfeiçoado, é importante que o Marco Civil seja aprovado como está o mais breve possível para seguir sua tramitação.
As empresas querem jogar a votação do projeto para depois de dezembro, quando ocorreu em Dubai, Emirados Árabes Unidos, uma conferência da União Internacional de Telecomunicações (UIT) para tratar do tema. Apesar de o deputado Molon ser contra essa ideia, o lobby das teles tem sido forte o suficiente para convencer os parlamentares dos mais variados partidos a protelarem a votação do projeto.
Responsabilidades
O Marco Civil da Internet também trata de outros assuntos importantes. Ele garante, por exemplo, que o provedor de internet “somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente,… (Art. 15º)”. O que não impede que o provedor remova conteúdos que extrapolem suas próprias regras ou que configurem um crime.
A medida protege desde usuários comuns, que mantém blogs, por exemplo, a grandes provedores. O Google Brasil, o Facebook e o MercadoLivre. com lançaram uma carta de apoio ao projeto. “Se o risco de responsabilidade forçar provedores a fechar espaços ou a desativar ferramentas que viabilizam essas formas de atividade, todo o potencial desses espaços e dessas ferramentas é desperdiçado, invertendo-se a lógica de que a Internet é uma das maiores conquistas tecnológicas da humanidade para presumir, perigosa e falsamente, que ela apenas serve para a prática de atos ilícitos”, dizia trecho da nota.
O embate sobre esse ponto também está acirrado. A indústria que lucra com os direitos autorais prefere que este mecanismo não seja adotado em casos que envolvam a temática. O governo, com seus motivos, também prefere e por isso o relator do projeto acatou um pedido do Ministério da Cultura (MinC) e criou um novo parágrafo para o Artigo 15º. Ele diz: “O disposto neste artigo não se aplica quando se tratar de infração a direitos de autor ou a direitos conexos”. O argumento do governo é que esse assunto deve ser tratado especificamente na Reforma da Lei de Direitos Autorais, que o MinC deve propor ao Congresso em 2013.
O Idec, que tem acompanhado o tema, se posicionou contra a mudança. “Cria, assim, um mecanismo que induz os provedores a excluírem o conteúdo, a partir de uma simples notificação, para evitar serem responsabilizados. Ou seja, mesmo que não haja comprovação de que determinado conteúdo (vídeo, foto, música) viola direito autoral, uma simples notificação do eventual titular é suficiente para que o provedor, num julgamento privado, retire esse conteúdo do ar, com medo de ser penalizado. Caberá depois ao usuário prejudicado, geralmente com menos condições para isso, o ônus de procurar a Justiça para reaver seu conteúdo suprimido”, afirmou Guilherme Varella, um dos advogados do Instituto, em texto publicado no site do Idec.
Para facilitar a investigação de delitos, o Marco Civil também quer obrigar os provedores de conexão (as empresas de telefonia e TV a cabo) a armazenar os registros de conexão dos usuários (IP do usuário, a data e hora de início e término de sua conexão à internet) por um ano, sob sigilo. Essas empresas, no entanto, não poderão guardar os registros de acesso, que indicam por onde as pessoas navegaram em determinada hora. Ao responsável por um serviço ou aplicação (um site, blog, rede social etc.) é permitido guardar os registros pelo tempo que quiser, desde que tenha o consentimento do internauta.
O Marco Civil, que foi colocado em debate pelo Ministério da Justiça em parceria com a Fundação Getúlio Vargas em 2009, ainda estipula várias diretrizes de atuação para o poder público, como o incentivo à inclusão digital; a adoção preferencial de tecnologias, padrões e formatos abertos e livres; e o fortalecimento da participação social nas políticas públicas.
***
[Jacson Segundo, da revista MídiaComDemocracia]