Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

“Secretismo do governo barra acesso à informação”

O repórter da Folha de S. Paulo Rubens Valente tem uma visão muito crítica da aplicação da Lei de Acesso à Informação, embora reconheça avanços importantes que ela propiciou. A lei 12.527 foi sancionada em 18 de novembro de 2011 pela presidente Dilma Rousseff, que na mesma data, pela lei 12.528, criou a Comissão Nacional da Verdade. Em ambos os casos, a data de entrada em vigor das disposições legais foi 16 de maio de 2012, 180 dias após a publicação.

Valente, que desde 2008 busca informações de interesse público escondidas pelo Estado brasileiro, protocolou em 16 de maio 32 pedidos de acesso a documentos, alguns só atendidos – não integralmente – mediante a interposição de recursos. Um dos alvos de sua crítica é a Casa Civil da Presidência da República. Outro, a Controladoria Geral da União (CGU). Um terceiro é a Comissão da Verdade, que, na opinião do jornalista, ao ouvir depoentes em sessões fechadas tem comportamento absurdo.

Comissão de advogados

“Eu pedi, com base na lei, acesso a 40 depoimentos secretos tomados pela Comissão da Verdade, mas recebi uma recusa, sob a alegação de que se trata de ‘investigação em andamento’. Penso que essa resposta é uma proteção aos direitos de torturadores em detrimento dos direitos das vítimas”, disse o jornalista em entrevista ao Observatório da Imprensa.

Valente vê na recusa uma reação decorrente de “típica visão legalista de um processo histórico”, que ele atribui à predominância, entre os integrantes da comissão, de cinco pessoas ligadas ao direito: Cláudio Fonteles, Gilson Dipp – procurador e magistrado –, José Carlos Dias, José Paulo Cavalcanti Filho e Rosa Maria Cardoso da Cunha – advogados (os outros dois são Maria Rita Kehl, psicanalista, e Paulo Sérgio Pinheiro, sociólogo).

O repórter contrapõe à decisão da comissão brasileira a prática de comissão equivalente da África do Sul, que ouviu torturadores na presença de torturados, para evitar que os primeiros dissessem sem contestação o que lhes convinha. A comissão respondeu à argumentação de Valente com a explicação de que seus próprios membros fariam o confronto com os depoentes.

“É um secretismo que invadiu o Judiciário e contaminou a Comissão da Verdade”, replica o jornalista.

Duas concepções

No Estado de S. Paulo de domingo (17/3), o atual coordenador da Comissão, Paulo Sérgio Pinheiro, contestou a concepção de que os depoimentos devem ser abertos.

“Não podemos fazer teatrinho, fazer de conta que estamos colocando os acusados no banco dos réus. Nós não temos esse banquinho, não temos essa encenação do tribunal. E não dá para fazer isso a conta-gotas. Isso é perturbar nosso trabalho”, respondeu ao repórter Vannildo Mendes, que classificou a posição de Pinheiro como “clara contraposição a seu antecessor na [coordenação da] comissão, o ex-procurador-geral da República Cláudio Fonteles”.

Nesse caso, a equação de Valente estaria invertida: um sociólogo defendendo a reserva – até a divulgação do relatório final da comissão – e um operador do direito favorável à abertura.

“CGU manobra com números”

A crítica de Valente à CGU deve-se à divulgação pela Controladoria da informação segundo a qual a maioria absoluta dos pedidos de acesso a documentos foi respondida.

“A CGU faz uma manobra na leitura dos números. Os pedidos que não foram atendidos, que tiveram como resposta um ‘não’, são computados como ‘respondidos’. A verdadeira resposta não é essa”, afirma o repórter. “De fato, há pedidos aos quais é impossível responder. Quando se pede, por exemplo, algo que não existe. Mas o governo deve detalhar melhor quantos ‘pedidos respondidos’ foram efetivamente atendidos.”

Segundo Valente, é falsa a imagem passada pelo governo de que a Lei de Acesso à Informação foi uma que “pegou”.

“Houve muitos pedidos recusados”, objeta o jornalista. “Todas as empresas públicas podem se furtar a divulgar informações que, no entanto, são relevantes. Por exemplo, quisemos saber como a Petrobras e a Caixa Econômica Federal empregaram suas verbas de comunicação, mas recebemos um não, com a alegação de que se trata de informações confidenciais de negócios. Ora, o mercado publicitário está cansado de saber como são aplicadas essas verbas. A opinião pública é que não sabe.”

STF se fecha em copas

O repórter disse ter pedido a agenda de encontros dos ministros do STF. Só dois dos onze juízes concordaram em divulgá-la. Pediu também a agenda detalhada de encontros da presidente da República. Foi remetido ao site do Planalto (veja quium exemplo tomado aleatoriamente).

“Ora, não era isso que se pretendia saber, mas sim a identidade de todas as pessoas que entraram na sala da presidente e quais os assuntos tratados. Ou será que o povo não tem o direito de conhecer o que faz a presidente?”, indaga Valente.

Outro pedido que encontrou resistência – da Casa Civil – relaciona-se com 412 caixas de documentos guardados em porões de ministérios. Só depois que a Folha deu o assunto em manchete numa edição dominical (“Papéis da ditadura estão retidos em arquivos federais”, 3/3) a Casa Civil mudou de ideia e anunciou a liberação do material, determinando seu envio ao Arquivo Nacional.

Casa Civil age após manchete

“Foi mais uma confirmação de que a lei não é seguida”, aponta o repórter. “A regra estabelecida em lei é a divulgação. Há exceções: documentos classificados como ultrassecretos, que tenham relação com ‘a segurança da sociedade e do Estado’, e dados pessoais, ou seja, fichas médicas e declarações de Imposto de Renda.”

O episódio foi narrado assim na reportagem, assinada por Rubens Valente e por Matheus Leitão:

“O governo federal retém milhares de documentos produzidos por ministros de Estado na ditadura militar (1964-1985), hoje fora do alcance imediato de pesquisadores. É o que revela levantamento feito durante quatro meses pela Folha, que visitou arquivos nos ministérios e copiou centenas de páginas.

(…)

“O acesso a esses documentos é dificultado por uma série de deficiências dos ministérios. (…) A maioria dos órgãos exige que os pedidos fiquem restritos a certos períodos de tempo, o que inviabiliza um acesso amplo ao acervo. (…) O caso da Casa Civil da Presidência da República é o mais problemático. O órgão reconheceu por escrito a existência de documentos produzidos na década de 70 pelo então Gabinete Civil (…).

“Mas o ministério, atualmente sob a gestão da ministra Gleisi Hoffmann (PT-PR), se recusou a permitir o acesso a qualquer documento, sob a alegação de falta de pessoal e tempo para analisar os papéis e verificar se incluíam ‘informação pessoal’ que não pudesse ser divulgada.

“A Folha recorreu contra a proibição apelando à CGU, que analisa o assunto desde o dia 14 de fevereiro.”

Na noite daquele domingo, a Casa Civil anunciou que mandaria os documentos para o Arquivo Nacional.

Estatais continuam na sombra

Valente reconhece os avanços obtidos após a entrada em vigência da Lei de Acesso à Informação: “Criaram um sistema muito bom, mediante o qual o pedido é feito sem burocracia. Não é necessário protocolá-lo. Houve a divulgação dos salários dos funcionários públicos. Essas coisas são importantes para a democracia.” (Há quem divirja da avaliação sobre a qualidade do sistema criado para se fazer pedido de informação. Ver “Brasil é 90º país a ter lei de acesso à informação”.)

Entretanto, a lei diz respeito apenas a órgãos da administração direta, autarquias e fundações. Deixa de fora Banco do Brasil, Caixa Econômica, Petrobras, Banco do Nordeste, Banco da Amazônia, Furnas, Eletrobras, entre outras empresas estatais.

Autorizações de lavra

A avaliação negativa de Valente nasce de uma vivência iniciada no dia mesmo em que a Lei de Acesso à Informação entrou em vigor, 16 de maio de 2012. Valente buscava havia 15 anos informações sobre os brasileiros que haviam conquistado o direito de pesquisar jazidas minerais, concedido pelo Departamento Nacional da Produção Mineral (DNPM).

O jornalista havia morado em Mato Grosso, onde ouviu dizer que grupos econômicos, alguns deles estrangeiros, usavam pequenas empresas brasileiras, inclusive escritórios de advocacia, para adquirir o direito de pesquisar a ocorrência de minérios.

O primeiro pedido, feito ao DNPM no dia 16 de maio, em conjunto com o jornalista Lúcio Vaz, também interessado no assunto, foi negado dois dias depois. O funcionário encarregado de dar a resposta disse que “não entendeu” o pedido. Valente e Vaz interpuseram recurso. Uma semana depois, as informações estavam liberadas.

O resultado foi uma reportagem assinada pelos dois jornalistas que informava, no primeiro parágrafo: “Empresas estrangeiras controlam a pesquisa de pelo menos 10 milhões de hectares em riquezas minerais no país, o equivalente ao território de Pernambuco. No grupo das 50 maiores empresas, os estrangeiros abocanham mais de um terço do total.”

“Nós queríamos apurar melhor o assunto”, revela Valente, “mas uma fonte do DNPM nos avisou que iam colocar os dados no site do Departamento, o que era um direito deles, e tivemos que correr para não perder a exclusividade.”

Despachantes de luxo

O repórter explica que, de acordo com a lei brasileira, “quem chegar primeiro” a uma jazida se torna dono dela. Em seguida, precisa fazer acordos com os superficiários – os donos dos terrenos sob os quais fica a mina – e com a União, para promover a exploração.

“Essas pequenas empresas e escritórios de advocacia haviam se tornado despachantes de luxo. Ficavam esperando na fila. Mesmo grandes empresas de mineração tinham interesse em trazer à tona esse esquema, porque ele levara à criação de um mercado clandestino de autorizações de lavra”, explica Valente. “Além disso, formaram-se pequenos latifúndios da mineração, com até 600 mil hectares de superfície.”

“Acontece que a maioria absoluta dessas empresas não fura o terreno”, prossegue o repórter, “criando-se uma reserva de mercado que a Polícia Federal já investigou. Houve denúncias e prisões chegaram a ser feitas.”

Brasil não é “bonzinho”

Numa segunda etapa de suas démarches ao abrigo da Lei de Acesso, Valente quis obter dados que também buscava há muito tempo: quantas e quais armas o Brasil exporta. A solicitação de acesso foi feita também em 16 de maio. O Ministério da Defesa imediatamente recusou, sob o argumento de que o pedido era “muito amplo” – o período visado era 1990-2012. Disse ainda que os papéis estavam classificados.

“Mas a lei diz que a classificação tem de ser feita no momento em que o documento é produzido”, replica Valente. “E existia a hipótese da reclassificação. Tratava-se de milhares de documentos. Iriam fazer um mutirão de reclassificação?”

Mais uma vez, o repórter critica: “A lei foi aprovada para liberar. O comportamento do governo é hipócrita”.

Houve recuo e o governo resolveu liberar os dados das vendas, mas apenas do período 2000-2002. “Os dados atuais, dos governos de Lula e Dilma, não foram liberados”, anota Valente.

Bombas-cacho para Mugabe

De qualquer modo, ficou-se sabendo que o Brasil exportou bombas-cacho (cluster bombs) para o governo de Robert Mugabe, mandatário do Zimbábue desde 1980. “Essas bombas soltam até 2.000 fragmentos, provocando danos colaterais indiscriminados”, diz o repórter. “O Brasil ostenta a imagem de grande defensor dos direitos humanos, mas os papeis dizem o contrário. Nesse caso, houve completa dissociação entre o que era sabido e o que os papeis informam.”

Uma ONG de Nova York, Human Rights Watch, constatou que o Brasil tinha vendido vinte vezes mais do que seus especialistas haviam contabilizado. O governo fez o que pôde para esconder da população a realidade. Valente questionou: qual seria o prejuízo de contar a verdade? E obteve como resposta que os negócios poderiam “micar”, que a indústria bélica brasileira precisa ter segurança contra os concorrentes.

“É uma lógica exclusivamente de mercado, determinada pelos interesses da indústria”, avalia Valente. “Mas, mesmo seguindo esse raciocínio, poderiam divulgar ao final, depois de fechado o negócio.”

R$ 2 bilhões no Haiti

Outro episódio relatado por Valente é o dos gastos do governo brasileiro no Haiti para participar da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah). As estimativas feitas pela ONG Contas Abertas, baseadas no Siafi (Sistema Integrado de Administração Financeira do governo federal), apontavam uma cifra bem menor, porque deixavam de ser computadas compras feitas no Brasil para a missão no Haiti – gasolina, carros de combate Urutu, aviões. Com a abertura dos dados, calculou-se que o montante era 40% maior do que se supunha.

Um capítulo à parte é o dos arquivos da ditadura militar. Desde 2008, conta Valente, ele pede à Abin (Agência Brasileira de Inteligência) acesso a documentos produzidos durante e depois do regime militar, para saber, entre outras coisas, quais movimentos sociais foram acompanhados entre 1990 e 1999.

“Houve imensa troca de e-mails, e o governo procrastinando”, relata. “Finalmente, após o dia 16 de maio, o governo encaminhou o material ao Arquivo Nacional. Ótimo. Não foi para a Folha, mas ficou aberto a todos os interessados.”

Logística do Araguaia

Em 2010, Valente solicitou os arquivos do CIE (Centro de Informações do Exército), cabeça do esquema de repressão e “combate ao inimigo interno” durante a maior parte da ditadura.

“Eu busquei dados da logística empregada contra a guerrilha do Araguaia”, conta Valente. “É impossível o Exército, organização disciplinada e que costuma aprender com suas práticas, ter destruído tudo que produziu nesse período [1972-1975]. Acho que algo restou, e que esse algo tem interesse histórico. Quando pergunto ao comando do Exército se admitem ter queimado tudo, não obtenho resposta.”

O jornalista já fez mais de 40 pedidos só sobre o período da ditadura e até 1999. Em 2012, o Exército, em resposta a um dos pedidos, disse que era amplo demais, mas não informou que não havia documentos.

Outro foco de interesse de Valente é a invasão da siderúrgica de Volta Redonda por tropas do Exército e da PM-RJ, em 9 de novembro de 1988, seis dias antes da eleição municipal daquele ano. Resultou na morte de três operários e, aparentemente, provocou uma guinada na disputa pela prefeitura de São Paulo que permitiu a vitória de Luiza Erundina, então no PT, após uma campanha eleitoral liderada por Paulo Maluf.

Waimiris-atroaris

Valente também se preocupou em ter informações sobre a morte de waimiris-atroaris associada à construção da BR-174, rodovia que liga o Amazonas a Roraima. “Num dado momento, índios mataram funcionários da Funai. Após a retirada dos funcionários sobreviventes, o Batalhão de Engenharia do Exército assumiu a obra”, narra o jornalista.

“Cinco ou seis anos depois, uma contagem da população indígena constatou grande diferença entre os números de antes e de depois da construção da estrada: alguns chegam a falar em 2 mil waimiris-atroaris mortos. Três ou quatro operários da obra disseram em off que houve índios metralhados e que outros morreram eletrocutados em cercas elétricas”, detalha. “Teria sido o pior massacre, em termos numéricos, ocorrido durante a ditadura.”

Segundo Valente, o governo jamais conseguiu explicar a diferença demográfica. A Funai, em publicação de 1.500 páginas dedicada à história do povo waimiri-atroari, menciona o desaparecimento de 1.600 índios, mas não esclarece que houve massacre. “Quem poderia ter documentos a esse respeito?”, pergunta o repórter.

“O Ministério da Justiça, ao qual a Funai está subordinada”, responde. “Mas a Justiça disse que era difícil atender a uma solicitação que fiz, porque o Gabinete do ministro tem um arquivo com 120 volumes de 500 páginas cada.”

Tesouro fora do lugar

Os sucessivos embates com a aversão governamental à transparência levaram Valente a concluir que “o tesouro da documentação não está no Arquivo Nacional”.

“Pelo menos nove ministérios detêm documentação que não é facilmente acessível, desconhecida do Arquivo Nacional e da Comissão da Verdade. Não se sabe qual é a documentação remanescente. Se o governo quiser chegar a papeis que esclareçam crimes, terá de formar uma força-tarefa com essa finalidade”, diz o repórter.

Valente critica a Casa Civil por não querer cumprir uma Lei de Acesso à Informação proposta pelo próprio governo, por sinal elaborada sob a orientação da Casa Civil quando era chefiada por Dilma Rousseff. “Esse tipo de comportamento poderá transformar a Lei de Acesso em letra morta. Como disse o jornalista Fernando Rodrigues, falta governança”, avalia Valente.

Democracia adulta

O jornalista afirma que o interesse maior da mídia é por documentos mais recentes, possivelmente contendo informações que atinjam pessoas que compõem hoje o cenário político, por isso mesmo arquivos aos quais é mais difícil ter acesso. E quanto mais influente é a autoridade concernida, mais difícil é o acesso.

“Até por isso, o papel da imprensa tem sido mal compreendido, marginalizado, criminalizado”, critica Valente. “Para superar esse quadro, o primeiro passo, pequeno mas necessário, é aumentar a transparência, encarar os fatos. A democracia brasileira está adulta para receber qualquer choque. Caso contrário, fantasmas continuarão assombrando o país. Onde estão os corpos dos desaparecidos? Quem são os criminosos responsáveis pelas atrocidades?”