Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Regulação para ampliar a liberdade de expressão

No final de fevereiro, o governo brasileiro anunciou que não encaminharia a “implantação de um novo marco regulatório” das comunicações antes do término do mandato da presidente Dilma Rousseff. O tema é controverso e costuma gerar uma forte polarização entre os que acreditam que uma nova legislação favoreceria a desconcentração do setor das comunicações e os que enxergam tal proposta como um caminho para o retorno da censura.

Para João Brant, especialista em regulação e políticas de comunicação pela London School of Economics and Political Science e integrante do coletivo Intervozes, a sensibilidade do tema tem impedido um debate amplo e aberto, gerando entendimentos equivocados de setores da sociedade. “A preocupação com a ingerência no conteúdo dos meios de comunicação é absolutamente válida e precisa existir, o que não se pode é, em nome dessa preocupação, abrir mão do debate e da busca por soluções”, ressaltou.

Embora a proposta concreta, um anteprojeto de lei para substituir o atual modelo – vigente desde 1962, ainda não esteja na mesa de discussões, uma plataforma formada por entidades da sociedade civil estabeleceu diretrizes para “democratizar as comunicações no Brasil”. Em entrevista ao Centro Knight para o Jornalismo nas Américas, Brant comenta alguns pontos destas diretrizes, defende a urgência na aprovação de um novo marco e explica por que considera a falta de pluralidade da mídia brasileira, que levou a ONG Repórteres sem Fronteiras a publicar relatório intitulado “Brasil, o país dos 30 Berlusconis”, um entrave à liberdade de expressão no país.

Como você avalia a decisão do governo de adiar o encaminhamento do novo marco regulatório neste mandato?

João Brant – Essa é uma pauta histórica, aliás, é pré-histórica. Desde a década de 70 falamos da necessidade de um novo marco regulatório. No governo Fernando Henrique houve propostas nesse sentido, mas foi no governo Lula que criou-se uma expectativa de que isso pudesse avançar. Não houve nenhum movimento público efetivo até a 1ª conferência Nacional de Comunicação, em 2009, que foi o momento em que o governo aceitou chamar os diferentes setores sociais para discutir o tema e construir propostas. Em 2010, foi formado um grupo de trabalho que formatou um anteprojeto de lei a partir do resultado da conferência e o entregou para o Paulo Bernardo, ministro das comunicações. Ele informou que até o segundo semestre de 2010 faria uma consulta pública, que nunca aconteceu. E então a proposta foi ficando cada vez mais de lado e chegamos a este ponto onde o governo atual anuncia este adiamento. Embora haja um reconhecimento claro de várias entidades da necessidade desse novo marco regulatório, o governo alega não ter tempo pra isso. Isso reflete a opinião de dois grupos no governo. Um que não vê o tema como uma prioridade política estratégica e outro que não está disposto a enfrentar o debate público, que certamente não será tranquilo e fácil, pois há muitos interesses envolvidos.

Temos uma legislação antiga para o setor de comunicações, que data de 1962, e de lá pra cá as tecnologias comunicacionais avançaram muito. Há necessidade e é eficaz regulamentar este setor num tempo de mudanças aceleradas dos meios de comunicação?

J.B. –Não há dúvida. A necessidade de um novo marco regulatório passa pela questão da atualização tecnológica, que é importante, mas passa sobretudo pelo dever de dar concretude a valores constitucionais democráticos. A atual legislação não vê o pluralismo e a diversidade como valores fundantes do sistema de comunicação. Todas as democracias consolidadas têm feito um esforço de atualização dos seus marcos regulatórios. O fato de você ter um conjunto de avanços tecnológicos não supera a imprescindibilidade de medidas para impedir a concentração e garantir a diversidade e o pluralismo, além do respeito aos direitos humanos, neste setor. Embora a internet seja considerada uma tecnologia que cria as condições para o exercício da liberdade de expressão, ela não traz em si a superação da urgência de um novo marco regulatório.

O que é mais urgente modificar nesta legislação de 1962?

J.B. –Mais urgente é entender como lidar com a concentração dos meios de comunicação. Quando eu falo em concentração, penso em três medidas de enfrentamento. A primeira é relacionada ao setor comercial privado, onde temos um cenário em que a principal emissora do Brasil detém 45% da audiência e 73% das verbas publicitárias, bastante concentrado em termos de arrecadação. A segunda está relacionada à ampliação do setor público e comunitário, já que o sistema brasileiro marginaliza as emissoras comunitárias e as públicas ainda são bastante insipientes. E a terceira diz respeito ao pluralismo interno, ou seja, a desconcentração a partir da garantia de acesso de produções regionais e independentes às TVs comerciais, coisa que o mundo inteiro já regulou. É algo que está previsto na Constituição, mas na TV aberta ainda está muito longe de acontecer.

Mas quando se fala em regular o conteúdo transmitido pelas emissoras, não corremos o risco de criar condições para uma ingerência em suas linhas editoriais?

J.B. –Na linha editorial não, o que afeta é a diversidade e o pluralismo dessas emissoras. O que a Constituição protege, sobretudo, é a liberdade de expressão e a manifestação de opinião. Essa liberdade hoje está sufocada no Brasil e um dos motivos é que os meios de comunicação privados não dão espaço para que esta diversidade apareça. O discurso da liberdade de imprensa é usado, na verdade, como escudo para dar suporte a medidas que diminuem a liberdade de expressão. Essa liberdade não é dos donos dos veículos e sim do conjunto da sociedade. Os meios de comunicação hoje refletem a diversidade e a pluralidade de ideias da sociedade brasileira? Se a gente responde não, e eu respondo que não, a pergunta seguinte é o que fazer. O que todos os países que enfrentaram essa pergunta fizeram foi buscar ampliar o pluralismo e a diversidade sem criar um tipo de controle que acabe afetando a liberdade de expressão e a linha editorial. É uma equação que não é trivial, mas está posta na relatoria da liberdade de expressão da OEA, está na pauta da ONU e da Unesco. Então não faz sentido que o Brasil se recuse a discutir essas medidas se justamente os órgãos que têm a função de defender a liberdade de expressão apontam essa regulação como necessária. A preocupação com a ingerência no conteúdo dos meios de comunicação é absolutamente válida e precisa existir, o que não se pode é, em nome dessa preocupação, abrir mão do debate e da busca por soluções.

As empresas de mídia lidam com a difusão de ideias e valores. Quando se fala, nas diretrizes para democratizar as comunicações, em “princípios que garantam o equilíbrio no tratamento de notícias e a diversidade de ideias e pontos de vista”, por exemplo, o novo marco poderia abrir espaço para o cerceamento à livre circulação de informações?

J.B. –Este ponto foi tirado de uma regulação do Reino Unido e, nas diretrizes brasileiras, está diretamente ligado à concessão pública de rádios e televisões, não diz respeito a meios impressos. A concessão pública é dada a um limite de atores que ocupam o espectro público, então é preciso preservar, sim, uma pluralidade interna e o equilíbrio de ideias e pontos de vista. É exatamente esse o debate no Reino Unido, e eles vão mais além, cobrando a devida imparcialidade. O órgão regulador do Reino Unido interfere no conteúdo? Não, mas ele faz avaliações constantes e pode apontar problemas em casos em que só um ponto de vista sobre determinado assunto tenha sido abordado. O Brasil é diferente do Reino Unido, mas por que aqui uma medida é entendida como censora e no Reino Unido é entendida como parte de um sistema de regulação democrático dos meios sob concessão pública? A minha avaliação é que essa questão precisa ser enfrentada. Precisamos o tempo inteiro saber quais são os antídotos para evitar que uma medida de regulação democrática se torne antidemocrática. Mas, de novo, as armadilhas do caminho não podem nos fazer deixar de caminhar.

Você poderia citar alguns exemplos destes antídotos?

J.B. –Por exemplo, se houver uma avaliação de que uma emissora não deu espaço adequado a determinado ponto de vista, o que deve se fazer não é multar a emissora, e sim dar espaço a esse ponto de vista. A Constituição brasileira prevê o direito de resposta, só que a regulamentação do direito de resposta foi derrubada com a lei de imprensa. Então utilizar o direito de resposta para agregar outros pontos de vista é um caminho, pois está se buscando ampliar a liberdade de expressão, e não restringi-la.

As diretrizes do novo marco também falam da criação de Conselhos de Comunicação, nacionais e locais, o que alguns críticos dizem que, sob o argumento do controle social, servirão de instrumento para a censura. Como você responde a isso?

J.B. –Controle social é uma expressão que deixou de ser usada porque era má compreendida. Todo serviço público está sujeito a controle social e isso é desejável em todas as esferas, saúde, educação. etc. A ideia de que meios de comunicação sob concessão pública não respondem ao interesse público e à sociedade é uma visão extremamente conservadora. Há também uma confusão de que esse conselho nacional de comunicação ficaria avaliando previamente o conteúdo dos veículos. A ideia do conselho é estabelecer diretrizes ao órgão regulador do setor. Não há porque o Brasil não ter, a necessidade está posta e países como EUA, Inglaterra, Canadá, Portugal, França, Espanha possuem um órgão regulador que é exatamente o garantidor da liberdade de expressão. Para garantir a independência, o conselho seria multissetorial e trabalharia diretrizes gerais para o órgão regulador brasileiro. Isso garante que ele não seja capturado pelos interesses privados. O que vemos no modelo regulatório do Brasil hoje são agências reguladoras que se dizem independentes, mas são capturadas por interesses específicos. Um Conselho supervisor do órgão regulador evita qualquer tipo de captura, seja por parte do governo, da iniciativa privada ou da sociedade civil.

Como as diretrizes propostas à regulação brasileira estão situadas em relação às regulações de outros países da América Latina?

J.B. –As nossas diretrizes estão em linha com o que promovem as democracias consolidadas. Esse conjunto de pontos reflete exatamente como essas democracias estão trabalhando estes assuntos. O anteprojeto brasileiro ainda não está na mesa, então não temos como discuti-lo.

Mas você considera que países como Argentina e Venezuela melhoraram a diversidade de seus meios de comunicação com seus marcos regulatórios ou acabaram saindo do monopólio privado para entrar no monopólio estatal?

J.B. –A Argentina é um caso bem diferente da Venezuela. É um país que aprovou seu marco regulatório em 2008, que foi considerado bastante avançado pela relatoria de liberdade de expressão da ONU e que está sendo implementado em um ritmo lento ainda. Ao enfrentar a desconcentração dos meios privados, o marco foi alvo de várias liminares de grupos que são contra a aplicação da lei. A Argentina é uma boa referência, mas ainda não conseguiu materializar todos os princípios da lei. Ao fazer isso, será um passo importante e um exemplo interessante pro restante da América Latina. A Venezuela está a mais tempo nessa briga e tem bons exemplos e outros que não são aplicáveis ao Brasil. Há também muito mito e má informação no caso venezuelano. Quem conhece a Venezuela sabe que a mídia privada crítica, que ataca o governo, faz isso todo dia em horário nobre sem sofrer censura. O que houve foi uma polarização do debate lá que levou a um conjunto de medidas que não precisamos adotar no Brasil. Algumas pessoas perguntam se a não renovação da RCTV representa uma medida que ameaça a liberdade de expressão. Eu diria que não, em princípio. A ideia de não renovação de emissoras que ferem o interesse público é comum, os EUA enfrentaram a não renovação de mais de cem emissoras. A questão que se precisa analisar é se há de fato um interesse genuíno de usar essa faixa de frequência para ampliar a pluralidade e a diversidade de vozes, e isso eu não tenho condição de analisar pra você. A impressão que se tem, vendo de fora, é que o país tem um sistema de comunicação polarizado, mas isso é fruto de dois lados que se digladiam. A saída que o governo adotou para enfrentar os ataques dos meios privados foi fortalecer os meios estatais. Não é o ideal, mas eu entendo perfeitamente que isso tenha acontecido na Venezuela por conta do seu histórico local.

A imprensa brasileira tem sofrido uma censura velada, realizada pelo próprio Poder Judiciário, como ocorreu no caso do jornalista Lúcio Flávio. De que forma o novo marco influenciaria esse tipo de questão?

J.B. –Quanto mais definidas em lei estiverem as questões da defesa da liberdade de expressão, mais instrumentos teremos para evitar a censura judicial. Também é preciso dizer que, no caso específico do Lúcio Flávio, quem provocou o Judiciário foi uma organização de mídia poderosa no Pará. É um caso em que donos de veículos de comunicação usam sua força para calar vozes independentes. E encontram respaldo no Judiciário. Quem aciona a Justiça para calar vozes dissidentes são poderes políticos e econômicos.

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Natália Mazotte, do Knight Center for Journalism in the Americas