Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Quero falar também

Uma das vozes mais críticas à concentração midiática do país, o professor [aposentado] de ciência política da Universidade de Brasília (UnB) Venício Lima não aguenta mais ficar falando mal dos meios de comunicação tradicionais. “Dizer que os maiores jornais, revistas e canais de tevê são parciais e defendem os interesses das elites econômicas é um discurso muito batido”, argumenta. ­“O diagnóstico está feito. Agora precisamos qualificar o debate.” Venício não está sozinho. Cresce o número de ativistas que ensaiam substituir a crítica ao trabalho alheio por uma postura mais autêntica no espectro jornalístico brasileiro.

“Estamos sempre reagindo e fazendo contraponto. Precisamos elaborar mais pautas próprias”, concorda o repórter Rodrigo Vianna, que mantém o blog Escrevinhador. A ativista Conceição Oliveira, criadora do blog Maria Frô, vê na produção independente uma forma eficaz de furar o bloqueio da imprensa comercial para um “mundaréu” de notícias que não lhes convém. Dessa forma, ela acredita, os meios alternativos de produção jornalística já começam a atrair o interesse e a atenção das fontes, de diversas áreas­. “Por exemplo, fui primeira a noticiar, antes mesmo do MST, a parceria entre o Movimento dos Sem Terra e a prefeitura de São Paulo no fornecimento de alimentos para escolas municipais”, afirma.

A produção de notícias “fora da pauta” já incomoda os que se consideravam os únicos donos da informação. Não é à toa que blogueiros, portais e publicações independentes vêm sendo alvo de ataques judiciais devido a ações movidas por políticos, autoridades e pessoas ligadas a grandes emissoras, editoras e jornalões. “É um abuso de poder”, avalia o diretor da Rede Brasil Atual, Paulo Salvador. “Os processos são uma forma de censurar vozes dissonantes e cercear a liberdade de expressão por meio do estrangulamento financeiro.” A Rede Brasil Atual, que edita a Revista do Brasil, já foi alvo de dois processos de censura, em junho de 2006 e outubro de 2010, ambos movidos pela coligação liderada pelo PSDB na disputa à Presidência. Os processos têm origens diversas.

Em março, o jornalista Luiz Carlos Azenha chegou a anunciar o encerramento do site VioMundo, que edita, depois de ser condenado em primeira instância a pagar indenização de R$ 30 mil ao diretor da Central Globo de Jornalismo, Ali Kamel. A batalha é desigual: contrapõe o blogueiro ao executivo do maior império midiático do país. Kamel ainda mantém processos contra Rodrigo Vianna e Marco Aurélio Mello, do blog Do Lado de Lá. Azenha, Vianna e Mello já trabalharam no jornalismo da Globo. Em 2006, estavam entre os profissionais que contestaram a cobertura das eleições presidenciais e não aderiram, na época, a um abaixo-assinado no qual o chefe incitava os “colegas” a apoiar seus métodos.

Kamel já acionou também o blogueiro conhecido como Sr. Cloaca, do Cloaca News, famoso por empregar humor e sátira em seus posts. Em 2009, Cloaca achou no YouTube o filme “Solar das Taras Proibidas”, pornochanchada de 1984, e o postou em seu blog. Um dos atores era Ali Kamel, homônimo do executivo da Globo. “Jamais disse que aquele Ali era o da Globo, embora eu considere o jornalismo da emissora pornográfico”, diz. Paulo Henrique Amorim e Luis Nassif, que afora suas atividades profissionais mantêm blogs de elevada audiência, também estão na lista de processados. Apesar da batalha censória-judicial, todos continuam no ar.

Não precisa responder

“Existe um processo de judicialização do debate político no Brasil”, sugere Azenha. “Já fui vilipendiado inúmeras vezes por outros blogueiros e meios de comunicação, mas nunca acionei ninguém judicialmente. Sempre levei as polêmicas para a esfera da discussão política.” O editor do VioMundo lembra que a Globo, apesar de ser uma empresa privada, atua em um espaço de concessão pública e possui enorme influência sobre os destinos do país. “Ali Kamel é um dos seus diretores. Portanto, é legítimo criticá-lo pelas funções que ele exerce, não?”

O executivo da Globo não é o único que arremete judicialmente contra os críticos. É conhecido o caso do blog Falha de S. Paulo, tirado do ar após uma ação movida pelo alvo de sua paródia: a Folha de S. Paulo. O processo começou em 2010, quando os irmãos Lino e Mário Ito Bocchini decidiram fundar um espaço na internet para satirizar o diário dirigido por Otavio Frias Filho. “Não duramos nem um mês”, lamenta Lino. “A empresa pediu multa de R$ 10 mil por dia. Depois conseguimos diminuir para R$ 1.000. Obviamente, não continuamos. Como pegaria mal cercear a liberdade de expressão de um blog, a Folha resolveu alegar razões comerciais, propriedade industrial, uso da marca.”

Para Lino, essa camuflagem é uma “tática manjada”. A ordem de prisão emitida contra o criador do WikiLeaks, Julian Assange, seria o maior exemplo dessa ânsia censória. “Não conseguiram pegá-lo pelo vazamento dos telegramas diplomáticos dos Estados Unidos, inventaram um suposto caso de abuso sexual”, lembra. “Os que criticaram a Globo não podiam ser processados pelas críticas, então apareceu o episódio do ator pornô e Kamel resolveu se aproveitar. Tanto que o diretor jamais pediu direito de resposta a críticas feitas por Azenha ou Vianna”, observa.

“Se o maior bem jurídico é a verdade, como essas pessoas podem pretender apenas uma indenização e dispensar a publicação do desmentido? Como podem querer apenas dinheiro, e não a reparação da verdade?”, questiona o jornalista Fábio Pannunzio, que não integra o grupo dos “blogueiros sujos” – assim batizado pelo tucano José Serra –, mas também tem sido prejudicado financeiramente por processos judiciais. “É uma empreitada para calar os jornalistas.” Pannunzio é repórter da Band há seis anos. ­Como funcionário, segue a linha editorial da emissora. Em 2009, decidiu expressar suas opiniões num blog pessoal. A atividade já lhe rendeu sete processos. Sufocado pelos honorários advocatícios, decidiu interromper as postagens.

Velho de guerra

Pannunzio nunca foi processado por grandes empresas de comunicação. “Ao contrário do que dizem, acredito que a imprensa faz um trabalho maravilhoso no Brasil. Sem ela não teríamos mensalão nem impeachment do Collor”, defende. “Nossa mídia é bastante madura para a democracia que temos.” Ainda assim, o bolso do blogueiro sangrou. Um dos responsáveis é o ex-secretário de Segurança Pública do estado de São Paulo Antonio Ferreira Pinto, que não gostou quando o jornalista quis responsabilizá-lo pela onda de violência na região metropolitana da capital, ano passado. Antes, a família de uma estelionatária paranaense e um político mato-grossense já haviam pedido reparações financeiras por artigos publicados no Blog do Pannunzio.

“Em 2011, tive de desembolsar R$ 53 mil para pagar advogados em Cuiabá, em Curitiba e em São Paulo. No ano passado, foram mais de R$ 60 mil. Isso só com processos de primeira instância. Depois, quando recorrer aos tribunais superiores, em Brasília, vai ficar mais caro”, contabiliza. “Acabou ficando caro manter acesa a chama da liberdade de expressão.”

Um dos campeões em processos está na Amazônia. Criador do Jornal Pessoal, em 1987, que considera precursor dos blogs, Lúcio Flávio Pinto carrega nas costas 33 ações judiciais, 19 delas movidas pelos diretores de O Liberal, jornal do maior grupo de comunicação de Belém. O jornalista frequenta os tribunais paraenses há 21 anos e confessa que tantos ataques o liquidaram pessoal e profissionalmente. “Minha vida é fazer das tripas coração para que o jornal não pare de circular.” O Jornal Pessoal é um caso atípico. Ao contrário das iniciativas on-line que florescem em todo o país, o “blog” de Lúcio Flávio Pinto circula em papel. “A publicação só existe porque fala de coisas que a imprensa tradicional esconde”, diz.

Apesar da artilharia, Lúcio Flávio só teve de pagar uma indenização até agora: de R$ 25 mil, em março. Mas não tinha um real para desembolsar. “Fiz uma coleta nacional pela internet e mais de 700 pessoas contribuíram.” O dinheiro arrecadado foi transferido para a conta dos herdeiros de Cecílio do Rego Almeida, a quem o jornalista classifica como maior grileiro do Brasil. “A Justiça se transformou no capitão do mato da elite brasileira.”

Para o jornalista Altamiro Borges, autor do Blog do Miro e presidente do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé, os ativistas devem estar preparados: “Conforme vão aumentando o acesso da população à internet e o número de pessoas que produzem conteúdo na rede, aumentam também as ações de perseguição e cerceamento a essas vozes.”

Essa perspectiva motivou o Barão de Itararé a estabelecer uma parceria com a ONG internacional Artigo 19 para formular um “mapa da perseguição” no país­. A organização encabeça também a criação de um fundo, baseado em doações espontâneas, destinado a socorrer financeiramente colegas que sejam alvo de processos judiciais, ameaças ou violência em todo o Brasil.

Verdades e versões

O professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP Eugênio Bucci adiciona outros entraves à plena liberdade de expressão para todos os cidadãos – e não apenas para as grandes empresas de comunicação – no Brasil. “Temos uma cultura que convive bem com a ideia de censurar a imprensa”, critica.

Bucci considera que a defesa da liberdade de imprensa deve ser abraçada por todas as correntes de opinião. “Seja simpático ou contrário ao governo, todo blog ou jornal que precisa fechar porque está sob censura judicial ou porque levou uma multa desproporcional, que não pode pagar, é vítima de uma mentalidade censória inaceitável. A liberdade deve ser para todos, sem critérios ideológicos, porque se trata de um direito humano.”

A ideia parece elementar. Mas os processos movidos por grandes corporações jornalísticas e a contrariedade de muitas empresas do setor de submeter-se a um marco regulatório para as comu­nicações expõem indisposição de parte poderosa do mundo das comunicações quanto à amplitude da liberdade de expressão para todas as correntes de pensamento.

A diversificação de vozes na mídia brasileira é uma necessidade apontada por movimentos sociais, sindicatos, partidos políticos e intelectuais – e reconhecida pela ONG Repórteres Sem Fronteiras, que em março soltou um relatório sobre a concentração dos meios de comunicação no Brasil. O nome do estudo, O País dos Trinta Berlusconis, remete ao magnata e ex-premiê italiano Silvio Berlusconi e aos grupos familiares que dominam a mídia brasileira.

“O Brasil apresenta um nível de concentração midiática que contrasta fortemente com o potencial de seu território e a extrema diversidade de sua sociedade”, aponta o relatório. “O país ainda está longe de oferecer a todos os seus cidadãos um igual acesso aos novos suportes da informação, apesar de seu aparente nível de desenvolvimento.”

Como nem Lula nem Dilma mostraram disposição de mexer nesse vespeiro, os movimentos reunidos no Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) decidiram elaborar um projeto de lei de iniciativa popular que regulamente os artigos da Constituição que proíbem, por exemplo, a propriedade cruzada dos meios de comunicação. “Vamos recolher 1,3 milhão de assinaturas para que o direito à comunicação seja uma realidade no Brasil”, afirma a secretária de Comunicação da CUT, Rosane Bertotti, coordenadora-geral do FNDC.

O assunto está tão presente na agenda das entidades sindicais que o mote “Quero falar também” foi escolhido para uma manifestação do 1º de Maio da CUT na região do ABC paulista. “Nosso objetivo é despertar o senso crítico, para que a população perceba o quanto a comunicação afeta a educação dos nossos filhos, ou o quanto o sistema comercial condiciona até os horários dos jogos de futebol aos interesses de emisoras e anunciantes, e não dos atletas e torcedores”, diz Valter Sanches, diretor de Comunicação do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e responsável pelo jornal ABCD Maior e pela emissora TVT.

“É sensacional que essa manifestação seja em São Bernardo do Campo, no mesmo lugar onde a luta pela redemo­cratização do país deslanchou”, lembra Conceição Oliveira. “No Brasil, o que existe é uma liber­dade de monopólio. Somos obrigados a ouvir sempre as mesmas pessoas emi­tindo as mesmas opiniões, num dis­curso único e emburrecedor”, argumenta ­Miro, do ­Barão de Itararé. “Nós queremos políticas públicas que estimulem a plura­lidade. Assim, mais vozes poderão chegar ao grande público.”

Mas o diretor executivo da Associação Nacional dos Jornais (ANJ), Ricardo ­Pedreira, não vê a concentração midiática como anomalia. “A existência de grandes grupos de comunicação é própria das economias contemporâneas”, justifica o representante dos maiores diários do país. “Vemos esse fenômeno com extrema naturalidade – até porque ele não impede a verbalização de todos os tipos de opinião.” Pedreira está convencido de que Globo ou Abril, por exemplo, só conseguiram ser grandes porque têm aceitação e audiência do público. “Não há nenhum reparo a fazer nesse sistema.”

O empresário Eduardo Guimarães, que trabalha com comércio exterior, que começou a militar na área criando um “movimento dos sem-mídia” e o Blog da Cidadania, admite a crescente evolução dos canais alternativos de difusão de informação. “Mas tudo o que criamos é com nossos próprios parcos recursos, nossa capacidade de ­pro­dução é muito inferior à das grandes redes, que ainda por cima recebem polpudos recursos da publicidade estatal”, ressalva. “Os principais canais de comunicação, a TV e o rádio, são concessões públicas que não refletem a pluralidade da sociedade. E, como não há controle remoto que resolva isso, ainda considero que somos, sim, sem-mídia.”

Para Venício Lima, da UnB, o que está em jogo no debate sobre a comunicação brasileira é a própria noção de liberdade de imprensa. “A liberdade em que acreditam (os empresários da mídia comercial) é individualista, só pensa em si própria. Numa democracia efetiva, o Estado deve assumir um papel de garantidor de direitos sociais”, compara.

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Democratizar a verba

A ideia do professor Venício Lima guarda relação com recentes ações do poder público em outras searas: as cotas para negros nas universidades federais, por exemplo, ou a emenda constitucional que garantiu direitos trabalhistas às empregadas domésticas. Se é fato que estudantes negros não têm as mesmas oportunidades que os brancos, então a política pública entra em cena para reduzir a brecha. “Se não houver políticas públicas, quem já é forte ficará ainda mais forte. A inexistência de regras sempre favorece os poderosos”, reflete Altamiro Borges. “Não pode existir liberdade de expressão se não há igualdade de condições.”

Além da elaboração e aprovação de um marco regulatório que impeça a formação de monopólios e divida a frequência radioelétrica entre meios públicos, comunitários e comerciais, como está expresso na Constituição, o professor Eugênio Bucci chama atenção para outras medidas que considera urgentes: “Deveríamos nos preocupar com a crescente mistura de igrejas com emissoras de comunicação e partidos políticos, e também com o abuso de dinheiro público para fazer publicidade em veículos privados”.

As verbas da publicidade oficial são um dos objetos de disputa entre as diferentes visões sobre liberdade de imprensa. As grandes empresas abocanham o grosso dos recursos da publicidade oficial. De acordo com dados da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, cerca de 5 mil veículos recebem verbas publicitárias da União, mas as emissoras de TV concentram mais de três quintos de todo o dinheiro. A Globo, por exemplo, recebeu R$ 6 bilhões nos últimos 12 anos.

“O governo acaba financiando a concentração midiática”, critica o jornalista Renato Rovai, presidente da Associação Brasileira de Empresas e Empreendedores de Comunicação (Altercom) e editor da revista Fórum. “Nós reconhecemos que o número de veículos que receberam recursos cresceu nos últimos anos, mas a distribuição continua injusta.” De acordo com o jornalista, de 2000 para 2012, o investimento no meio TV saltou de 54,5% da verba estatal para 62,63%. “Isso apesar da queda de audiência na TV e do fortalecimento da internet. E mesmo no meio internet saltou de 39% para 49% o dinheiro pago aos grandes portais. Outra contradição, concentrar recursos enquanto a diversidade na rede se amplia”, observa.

A Altercom propõe como política a destinação de 30% das verbas publicitárias às pequenas empresas de comunicação, como forma de apoiar os meios não tradicionais e de fomentar a diversidade. “Por lei, 30% da merenda escolar servida nas escolas estaduais e municipais deve ser preparada com alimentos cultivados por pequenos proprietários. É uma ação positiva do Estado para proteger produtores familiares. Fazer algo parecido com a comunicação seria um passo sensacional”, defende Rodrigo Vianna.

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Tadeu Breda, da Revista do Brasil