Para o bem ou para o mal, as relações entre mídia e saúde estão longe de ser triviais. É conhecido entre os pesquisadores de comunicação o fato de as matérias de Saúde situarem-se entre aquelas de mais alta taxa de leitura na mídia.
Isso já foi provado cientificamente. Uma revisão sistemática de estudos sobre o tema conduzida pela Cochrane Collaboration já identificara, somente até 2002, cinco estudos que avaliaram a utilização de cuidados de saúde antes e depois da cobertura midiática de determinados eventos. A referida revisão concluiu que relatos midiáticos desempenham importante papel ao influenciar o uso pelo público de intervenções relacionadas aos cuidados em saúde. No entanto, a qualidade do que é publicado na imprensa acerca de estudos divulgados em revistas científicas é variável. Jornalistas especializados em saúde enfrentam desafios de toda natureza visando traduzir a linguagem muitas vezes complexa destes artigos para seu público leitor, em sua maioria, leigo. Assim, já foram publicadas pesquisas que revelam que certas matérias em saúde exageram nos benefícios e negligenciam os riscos de determinadas intervenções, “sensacionalizam” uma variedade de riscos em saúde ou dão destaque demasiado a estudos bastante preliminares sobre este ou aquele tema.
Jornalistas sempre tratam a ciência como um empreendimento mais sólido e certo do que realmente é. Fazem isso de diversas maneiras, segundo alguns estudos acadêmicos. Menos limitações do estudo original (caveats) são relatadas em um texto jornalístico quando comparado ao artigo científico que lhe deu origem. A impressão que se tem é que o jornalista tende a achar que o valor de sua notícia será depreciado se as limitações do estudo original forem apresentadas ao grande público. Além disso, muitas matérias jornalísticas carregam mais certeza sobre prognósticos de pesquisas do que a realidade permite inferir. Carol Weiss e Eleanor Singer verificaram que jornalistas tendem a tratar achados provisórios como resultados definitivos. Além disso, versões popularizadas de artigos científicos exageram as pretensões científicas e menosprezam as contingências apontadas no original.
Por conta disso, resolvemos nos dedicar à tarefa de semanalmente verificar a precisão da cobertura do assunto mais relevante em saúde no período. Passados cerca de 15 dias do anúncio da mastectomia profilática de Angelina Jolie, a semana que passou foi relativamente morna em termos de destaques em saúde. Como possível exceção, apenas duas notícias com impacto mais significativo sobre a vida dos leitores. A primeira delas foi a constatação publicada na British Medical Journal de que à medida em que se aproxima o fim de semana, as cirurgias eletivas (aquelas com data marcada, não caracterizadas por uma emergência) tendem a ter um prognóstico mais letal. A segunda foi a suposta correlação entre a ingestão de café e a obesidade ou diabetes.
Fins de semana sinistros?
Entre os dois assuntos, o de maior destaque na mídia brasileira foi, segundo uma rápida pesquisa no Google News, o risco das cirurgias nos fins de semana (BBC Brasil, Diário de Pernambuco, G1 e o site do jornalista Sidney Rezende). Nesses veículos, a cobertura não apresentou maiores problemas de precisão. A matéria foi veiculada inicialmente na quinta-feira (30/5).
No entanto, é necessário ressaltar, para colocar a conclusão do estudo em adequada perspectiva, que, no sistema de saúde pública inglês, são muito raras as mortes em cirurgias eletivas, ainda que se observe um incremento constante nos óbitos à medida que nos afastamos da segunda-feira. Para se ter uma ideia das cifras envolvidas, basta dizer que entre 2008 e 2011 foram realizados na Inglaterra mais de 4 milhões de procedimentos desta natureza e apenas 27,6 óbitos ocorreram (o que dá uma cifra de 0,67% de mortes).
Qualquer pessoa que tenha ligação mais estreita com um profissional de saúde que trabalha em hospital público no Brasil poderia também ter esta mesma impressão (na medida em que se desconhecem estudos semelhantes em solo brasileiro). A redução das equipes nos fins de semana e eventuais complicações do pós-operatório que tendem a ocorrer até 48 horas após as cirurgias poderiam explicar este aumento gradual do risco ao longo da semana.
Por via das dúvidas, caro leitor(a), agende sua próxima cirurgia para a segunda ou terça-feira, se possível.
Café aumenta risco de obesidade?
Outra notícia, que poderia preocupar os cafeinomaníacos, foi divulgada na quarta-feira (29/5). Trata-se de estudo publicado no Journal of Agricultural and Food Chemistry que, apresentado no G1 e no site NotíciasBR, daria conta de suposta relação entre substância encontrada no café e o diabetes tipo 2 e o aumento de peso.
Reproduzimos abaixo trecho da matéria publicada no G1:
“Segundo a pesquisa do Instituto de Pesquisa Médica do Oeste da Austrália e da Universidade do Oeste da Austrália, o consumo diário de ácido clorogênico em quantidades equivalentes às encontradas em mais de seis xícaras de café por dia pode levar a um aumento no acúmulo de gordura nas células
“O ácido clorogênico vinha sendo associado à redução[grifo nosso] do risco de diabetes, de hipertensão arterial e acúmulo de gordura corporal, daí a surpresa dos cientistas. (…)
“Nela, os estudiosos submeteram camundongos obesos a uma dieta rica em gordura durante 12 semanas.
“Eles tinham sua dieta diária enriquecida com ácido clorogênico em uma quantidade equivalente à encontrada em seis xícaras de café. A expectativa era de que eles teriam menos resistência à insulina e perderiam peso.
“No entanto, os resultados sugerem o oposto – que o consumo do ácido não só cria condições para um ganho de peso, como também uma maior intolerância à glicose e um aumento da resistência à insulina.”
Avaliação
De um ponto de vista formal, o relato feito pelo G1 e reproduzido acima apresenta algumas imprecisões. Na realidade, os camundongos machos (e que não eram obesos) foram divididos em três grupos. Cada um deles recebeu um tipo diferente de dieta durante 12 semanas. Um recebeu dieta normal, outro dieta com alto teor de gorduras e o restante, dieta com alto teor de gorduras e ácido clorogênico.
No que se refere a seres humanos, seria mais apropriado dizer que o referido estudo, realizado com animais de laboratório, buscava investigar o papel do ácido clorogênico, um polifenol presente no café e em algumas frutas, no tratamento e prevenção da síndrome metabólica, uma combinação de diabetes, hipertensão e obesidade.
Outro aspecto a ser destacado é que o artigo original que deu origem à matéria no G1 não nos permite concluir que “ingerir mais de seis xícaras de café podelevar a um aumento de gordura nas células”. O que o artigo demonstra é que uma dieta com alto teor de gorduras torna os camundongos mais gordos, mas não que o ácido clorogênico (e o café, por extensão) torna você, leitor(a), mais gordo(a).
Aliás, na citação acima vemos o emprego do verbo “poder”. Nas aulas de Jornalismo costumamos aprender que “poder, tudo pode”. Eu, por exemplo, posso ficar rico amanhã, mas isto não necessariamente corresponde à verdade. O verbo “poder” é bastante empregado em reportagens científicas, que deveriam se caracterizar por certa precisão em seu relato.
Outro tópico relatado na matéria do G1 e que deveria nos fazer suspeitar da robustez do estudo em questão é o fato de os achados atuais divergirem daqueles observados em pesquisas anteriores, como afirmam os próprios autores. Como foi dito, segundo o redator do G1, “o ácido clorogênico vinha sendo associado à redução (grifo nosso) do risco de diabetes, de hipertensão arterial e do acúmulo de gordura corporal, daí a surpresa dos cientistas”.
Ora, tal resultado conflitante entre o atual estudo e os anteriores poderia sinalizar que os processos biológicos envolvidos na situação em análise ainda não são bem conhecidos. Desta forma, os resultados deste estudo não seriam muito confiáveis, exigindo a realização de estudos posteriores para se confirmar a hipótese ora apresentada: a de que o ácido clorogênico mantém uma relação positiva com o diabetes tipo 2 e o aumento de peso.
Outros detalhes também lançam dificuldades para quem quer saber até onde pode extrapolar os resultados deste estudo preliminar: Que variedade de café foi empregada no estudo? Sua infusão era forte ou fraca?
Com relação aos resultados apresentados pelo artigo e replicados de algum modo pela matéria do G1 convém restabelecer o óbvio: ratos são diferentes de homens. Normalmente ratos são empregados em fases bem preliminares de estudos. São excelentes para investigar as bases biológicas de doenças, mas péssimos para se concluir algo sobre seres humanos. Para tal, é necessário testar diretamente a substância em humanos e observar seus efeitos. Talvez, por esta razão, o redator do G1 tenha feito questão de mencionar que o mesmo estudo estava sendo agora conduzido em humanos, informação não constante do artigo original.
Em suma, os resultados do estudo que ganhou algum destaque na imprensa brasileira são pouco conclusivos e bastante preliminares, o que desaconselharia sua divulgação junto ao público em geral, sem que se mencionasse enfaticamente suas limitações.
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Cláudio Cordovil é jornalista especializado em Ciência e Saúde, com doutorado em Comunicação e Cultura pela UFRJ e pós-doutorado em Comunicação e Informação em Saúde pela Fiocruz; autor do blog “Conhecimento Prudente“