É importante – mais do que isso, seminal – o debate sobre a história da imprensa brasileira produzido pelos artigos do jornalista Matías M. Molina no Valor Econômico. Por esta razão este observador tomou a liberdade de designá-lo respeitosamente como “bravo historiador” porque, com os 17 fascículos até hoje publicados, voluntária ou inconscientemente retirou o embargo e o sinete de tabu que pesavam sobre o assunto tanto na imprensa brasileira como na academia.
A imprensa brasileira não gosta de sua história. Envergonha-se dela, não gosta de estudá-la, prefere enterrá-la numa tabula rasa, órfã de pai e mãe. Isso foi cabalmente demonstrado em 2008, durante os festejos dos 200 anos da chegada da corte portuguesa ao Brasil, quando de cambulhada comemoramos dois séculos de tudo – da criação do Banco do Brasil, da abertura dos portos, do primeiro censo, do primeiro curso de medicina etc., etc. Só não celebramos o bicentenário da nossa entrada na Era Gutenberg com o estabelecimento da primeira tipografia, o início da circulação do primeiro periódico sem censura e o lançamento do primeiro jornal impresso na colônia.
O pecado não é venial, é grave. Uma instituição – mais do que isso, um poder – que não se estima e esconde seus feitos e defeitos, se desmerece e desqualifica. Ignorar que, apenas 14 anos depois de criada, a imprensa brasileira preparou o clima intelectual e político para a emancipação de Portugal é crime de lesa-história. Suprimir, secundarizar e obliterar a importância nesse processo do Correio Braziliense e do seu editor, Hipólito da Costa, é delituoso. Imagine-se o que poderia ter acontecido no país se em 1747 a tipografia de Antonio Isidoro da Fonseca não tivesse sido desmantelada por ordem do comissário do Santo Ofício no Rio de Janeiro.
Hipótese contrária
A ordem de censura sobre os festejos dos 200 anos não foi acidental. Este observador tem provas e é testemunha de que houve um sinal verde para as comemorações do bicentenário da imprensa, logo trocado pelo vermelho. Os bastidores dessa malograda efeméride precisam ser conhecidos, serão conhecidos. Em outra oportunidade e diferente motivação.
O que importa neste momento é registrar duas perguntas entrelaçadas:
** Qual a razão da surpreendente cortina de silêncio sobre os antecedentes e primórdios de uma imprensa geralmente tão festeira e deslumbrada?
** Qual o fato, fator ou fautor que agora, apenas três anos depois, levantou a interdição?
A resposta é única: apareceu finalmente uma versão historiográfica capaz de tirar a igreja católica e a Inquisição da incômoda posição de mordaça e censora-mor.
O Brasil foi uma das últimas colônias do Novo Mundo a ter uma tipografia instalada, como atestam os trabalhos de Carlos Rizzini (junto com Barbosa Lima Sobrinho, um dos poucos jornalistas-historiadores). A responsável por este desastroso atraso foi a igreja através do seu braço operacional, a nefasta e nefanda Santa Inquisição, instalada em 1536, logo depois do Descobrimento.
Há, portanto, uma inequívoca relação de causa e efeito entre nosso colossal atraso cultural-informativo e o estabelecimento da Inquisição. O Estado português era absolutista. E também teocrático. Isso ficou definitivamente marcado a partir de 1578, quando D. Henrique tornou-se um tríplice coroado – Cardeal, Inquisidor e Rei.
Matías M. Molina recusa a intimidade e a superposição do poder dito “secular” com o eclesiástico. Esqueceu que o verbo relaxar faz parte da linguagem secreta do terror inquisitorial desde o século 16. O condenado à pena capital pela Inquisição era relaxado, isto é, entregue à justiça civil, que o executava com as benções da Santa Madre Igreja.
A Inquisição incorporou-se ao aparelho do Estado num processo sinérgico estendido sem qualquer interrupção ou estremecimento ao longo dos seus 285 anos de funcionamento.
O patriarca da imprensa brasileira, Hipólito da Costa, foi preso em 1802 por ordem do abominado chefe da polícia Pina Manique e levado para o cárcere do Limoeiro com o falso pretexto de ter viajado ao exterior sem autorização. Em seguida foi trancafiado durante dois anos e meio nos cárceres da Inquisição porque era herege, maçom (tal como José Bonifácio, D. Pedro I e os primeiros expoentes da nossa imprensa).
A desinterdição, desembargo ou descensura ocorre agora porque a série “Jornais em Pauta” tem a finalidade precípua de mostrar a Coroa lusa como responsável pelo obscurantismo e a Santa Madre Igreja, incentivadora da arte de imprimir ideias. Quando aparece alguém capaz de afirmar solenemente que a coroa impediu o quanto pôde a difusão da palavra escrita no Brasil (fascículo 16) e, na quinzena seguinte, tenta emplacar a hipótese contrária de que as primeiras tipografias teriam sido iniciativa de padres jesuítas (fascículo 17), escancara-se o motivo da reversão e do inopinado impramatur.
Degredado no Rio
Aqui cabe um parênteses: na contestação ao primeiro texto deste observador (ver aqui), Matías M. Molina menciona que determinado questionamento será posteriormente esclarecido no livro que elabora. Jogada de marketing? Certamente não, seu livro está fadado a um estrondoso sucesso. Trata-se de claudicante recurso retórico, manobra narrativa de duvidosa validade. Trailer funciona em cinema, não em jornalismo.
Na imprensa periódica, vale o que está escrito: ou o profissional sabe consolidar o seu vasto saber no espaço que lhe foi concedido, ou usa as sobras em outra oportunidade. O leitor faz juízos sobre o que lhe é oferecido, não pode adivinhar o que virá depois, ainda mais em outro medium.
Assim somos advertidos de que na prodigiosa obra em elaboração haverá um “longo capítulo” dedicado a Hipólito da Costa. Mas aos leitores da douta série publicada no Valor Econômico, até o fascículo 17 só foi oferecida ao patriarca da imprensa brasileira uma referência en passant. É, evidentemente, uma forma sui generis de armar uma história da imprensa e do jornalismo no Brasil. É, igualmente, a chave para explicar por que nossa mídia foi finalmente autorizada a debater seu DNA, sua genealogia e etiologia.
Pouco importa ao leitor do Valor Econômico se Matías M. Molina está elaborando um longo capítulo na futura obra sobre o empastelamento da oficina de Antonio Isidoro da Fonseca, em 1747. Importa que no material oferecido ao distinto público não haja manipulação ou distorção. Neste caso houve.
O documento reproduzido neste Observatório (role a página e veja aqui), com o título de “Notificação aos Impressores”, desmente categoricamente a tese de que a Coroa portuguesa era a vilã e, santo, era o aparelho eclesiástico. Matías M. Molina conhecia o documento, admite isso na contestação, porém preferiu encaixá-lo no livro que em breve nos brindará. Cartão amarelo em matéria deontológica.
Este observador supõe que MMM esteja habilitado a entender a elaborada caligrafia do escrivão. Os leitores dificilmente. Em resumo, diz o seguinte: o comissário no Rio (padre José de Souza Ribeiro de Araujo) por determinação do Santo Tribunal do Santo Ofício [sic] notifica os impressores que “não imprimissem mais livros, conclusões ou outros quaisquer papeis sem a expressa licença do Santo Ofício” (grifo meu).
O Conselho Ultramarino entra nesta história como Pilatos no Credo. Apenas chancela, finge que manda. D. João V era um sacripanta, supersticioso, que obedecia cegamente aos delírios do cardeal-inquisidor, D. Nuno da Cunha, enquanto coabitava e emprenhava uma freira do Convento de Odivelas. Isto não é folclore, é fato histórico. Os descendentes do concubinato são conhecidos e foram reconhecidos.
O caso de Isidoro da Fonseca é importante não apenas pela comprovada atuação do Santo Ofício no controle da informação e da difusão cultural no território brasileiro, mas porque até meados da década de 40 do século 18 era um dos mais respeitados e bem equipados impressores lisboetas.
Imprimiu primorosamente, em duas cores, o primeiro volume da celebrada “Biblioteca Lusitana” de Diogo Barbosa Machado e também duas obras avulsas do desafortunado carioca Antonio José da Silva, o Judeu, garroteado pela Inquisição em 1739.
Impressor e autor eram amigos. Matías M. Molina acha isso irrelevante. Está sendo apressado: poucos anos depois da execução do comediógrafo e poeta, Antonio Isidoro da Fonseca aparece degredado no Rio, dono de uma precária tipografia, logo desmantelada por ordem do Santo Tribunal.
Debate que segue
Ao invés de se autoenganar, forçar interpretações e servir-se acriticamente de historiadores de baixo quilate (caso de Alfredo de Carvalho, acólito do conde Afonso Celso), mestre Molina deveria sujar os dedos com a inspiradora poeira dos arquivos documentais para tentar averiguar as razões que produziram o degradação do impressor.
Trabalhar com fontes primárias lhe fará um enorme bem, já que o uso que fez das fontes impressas no fascículo 16 deixa algumas dúvidas no tocante à sua acuidade visual. Impossível acreditar que não tenha reparado no primeiro parágrafo do primeiro capítulo do clássico de Nelson Werneck Sodré, A história da Imprensa no Brasil (“A Imprensa Colonial, O Pecado do Livro”, pp. 11-12, primeira edição), onde responsabiliza a “violência da Inquisição” como impedimento para a continuação da nobre arte [tipográfica]. Werneck Sodré vai ainda mais longe ao acusar o Santo Ofício de vitimar mais de trinta mil portugueses, a fina flor da intelectualidade e muitos dos homens de pecúnia. Curiosamente, este trecho contradita frontalmente o teor da citação extraída das páginas seguintes e inserida por MMM na sua diatribe contra a Coroa (fascículo 16).
Molina/Valor erraram, isso acontece. Este observador também encontrou preciosas opiniões de Sérgio Buarque de Holanda que se chocam com o trecho pinçado na contestação publicada neste Observatório. Vai oferecê-las ao longo deste debate que o “bravo historiador” teve a ousadia de promover. (segue)
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Nota pessoal, resposta ao post scriptum: MMM informa que na magna obra ora em elaboração pretende entrevistar “pessoas que moldaram a imprensa contemporânea” e que o nome deste observador consta da lista “pois foi em tempos passados uma figura importante do jornalismo”. Com franqueza inesperada reconhece que depois da crítica publicada neste OI “será difícil separar os fatos da fantasia”.
Poupe-se, bravo historiador: dilemas não fazem bem à alma. Sobretudo dos crentes. Se, porventura, carece de dados sobre os bons tempos do pretérito não terá dificuldade em encontrá-los nos depoimentos gravados no Museu da Pessoa, no CPDOC-FGV e no Sindicato dos Jornalistas do Rio.
O que chama atenção neste patético fecho é a sutil ameaça, em tudo semelhante à que este observador tem ouvido nos últimos 36 anos (desde que deixou de ser “uma figura importante no jornalismo”). Por osmose, mimetismo ou mera idiossincrasia, a mesma onipotência daqueles que não aceitam críticas, ceticismo, discordância: “Tá vendo, cara. Se fosse bem comportado, seria citado e lembrado”.
Mensagem compreendida e arquivada. Entre as seis ou sete “listas negras” em que este observador está incluído, é a primeira em que a censura se exerce sobre algo que sequer foi escrito.