Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Entender o futuro ou se refugiar no passado

O governo anunciou oficialmente na quarta-feira (7/6) a criação do Fundo Setorial do Audiovisual e de outros mecanismos – em particular a ampliação do artigo 3º da Lei do Audiovisual – que têm o propósito específico de facilitar a produção brasileira independente para televisão. Até aqui, o meio mais eficiente para encorajar esse tipo de produção era o artigo 39 da Medida Provisória 2128-1 – que permite às programadoras estrangeiras de TV por assinatura optar por transformar o Condecine de 11% em apenas 3% para aplicação em produções brasileiras.


Bem ou mal, o governo está enfrentando de maneira realista uma distorção dos mecanismos de produção para TV. Essa distorção é antiga e tende a se agravar com pelo menos três novas situações: a implantação da TV digital terrestre; a inevitabilidade da convergência de mídias; e o multifacetamento do conteúdo audiovisual – o crescimento espantoso do mercado de videogames, por exemplo.


Ela pode ser resumida em duas evidências: (a) a TV brasileira produz quase tudo o que exibe, o que não é habitual no resto do mundo; (b) na média, o que a TV brasileira tem produzido é muito ruim, ao contrário da fanfarronice de uma campanha de marketing, repicada pelo ministro Hélio Costa, voltada para a idéia de qualificá-la como a melhor do mundo.


Os que passaram a defender essa incrível tese, se o fazem em boa-fé, acreditam que a TV brasileira se resume ao horário nobre da Globo, esquecendo-se de que isso representa menos de 3% do espaço total de programação gerado pelas seis principais redes privadas e pelas duas principais redes públicas do país. [Ver ‘Não temos a melhor televisão do mundo‘, neste OI]


Sinal discreto


O fato de a cultura televisiva brasileira aceitar como natural o concentracionismo da produção acabou inibindo não apenas o florescimento de idéias, mas também o surgimento de mecanismos de produção estranhos à lógica comercial das emissoras. Afetou-se tanto a criação quanto o mercado e, principalmente, as próprias televisões. Perderam com isso a produção, as emissoras e a sociedade.


Para que se entenda a importância da criação de mecanismos diversificados de produção, deve-se levar em conta o fato de que com a implantação da TV digital surgem resumidamente duas possibilidades de modelos de negócio.


** A primeira é a que foi adotada nos EUA: quem transmite hoje em VHF passa a ter a possibilidade de gerar sua programação em HDTV e tudo o mais permanece como está.


** A segunda é a que foi abraçada pela Europa: o espectro é redimensionado, amparando mais canais abertos em definição standard.


Isso implica uma demanda maior por conteúdo, embora possa resultar também na fragmentação das receitas das emissoras. O mais importante, porém, é que existe nesse caso a opção por modelos de conteúdo que utilizem fortemente canais de retorno, permitindo a interatividade sincrônica. Tal procedimento vai gerar não apenas maior demanda por programação, mas principalmente a demanda por modelos originais de conteúdo, irredutíveis ao ambiente analógico.


Se este cenário acontecer agora, duas coisas vão ter que mudar rapidamente: a primeira é a legislação, que por enquanto trata radiodifusão, telecomunicações, serviços de distribuição de sinais por cabo, microondas (MMDS) ou satélite (DTH) não apenas de forma diferente, mas através de instrumentos completamente desiguais (decretos, leis e portarias). Outra são os mecanismos de produção para a televisão. A digitalização vai exigir fortes investimentos em novos equipamentos, inclusive de alta-definição. Antes mesmo que isso aconteça, sabe-se que a maioria das emissoras não tem caixa para investir em programação de qualidade e muito menos cultura para isso.


Se a qualidade é ruim e o resultado comercial também, não é difícil concluir que o modelo não está funcionando. E que esse quadro será ampliado tanto com a demanda por novos patamares tecnológicos quanto por mais programação.


O que o governo acaba de fazer é uma pequena sinalização de que alguma coisa tem que ocorrer para que a televisão brasileira possa diversificar a sua programação – e assim se modernizar. Mecanismos de incentivo à produção cultural, contudo, são paliativos – não podem durar para sempre.


Abrigo anacrônico


A televisão não é a única indústria do mundo que tem que apresentar resultados satisfatórios e se adequar a novos ambientes para sobreviver. Sua particularidade é que ela é também uma indústria cultural. Não pode se meter num casulo e pretender que as mudanças no mundo lá fora não lhe atinjam.


O encorajamento, pelo Estado, à diversificação da programação – sem leis impositivas, restrições, interferências na liberdade de cada um programar o que quiser – pode ser um grande presente às emissoras. Elas vão ter a possibilidade, se assim o quiserem, de construir parte da sua programação com subsídios públicos, ou seja, em parceria com a sociedade. Não são obrigadas a aceitar, mas não há razão para que deixem de fazê-lo. Caso isso aconteça, é de se esperar que, em contrapartida, dêem à sociedade uma programação melhor, mais diferenciada, mais competitiva. Em resumo: as emissoras vão poder mostrar que qualidade e competitividade não são questões que se resolvem com marketing publicitário ou retórica ministerial, mas metas que podem ser efetivamente atingidas.


Outro aspecto é o do multifacetamento do produto audiovisual. É mais fácil acreditar em Papai Noel do que imaginar que radiodifusão e telecomunicações possam hoje ser tratadas como setores estanques. Da mesma forma, fica cada vez mais difícil imaginar produtos audiovisuais que atendam a algumas formas de distribuição e não sirvam a outras. Contam-se nos dedos os projetos audiovisuais modernos que não sejam multiplataforma.


Ou descobrimos quem vai financiar a adequação da produção audiovisual brasileira ao século 21, ou damos um jeito de procurar abrigo rapidinho no confortável mundo analógico do século passado.