Estado e Igreja católica sempre estiveram muito próximos no Brasil. Herdamos dos colonizadores portugueses esse vínculo e não foi por acaso que fomos chamados de ‘Terra de Santa Cruz’ e o primeiro ato solene em solo brasileiro tenha sido a celebração de uma missa.
A Constituição outorgada de 1824 estabelecia o catolicismo como religião oficial do Império. Essa condição perdurou até o início da República, quando Deodoro da Fonseca assinou o Decreto 119-A, de 7 de janeiro de 1890 (disponível aqui). Desde então, instaurou-se a separação entre Igreja e Estado e nos tornamos, do ponto de vista legal, um Estado laico (do latim laicus, isto é, leigo, secular, neutro, por oposição a eclesiástico, religioso).
Embora no Preâmbulo da Constituição de 1988 conste que ela foi promulgada ‘sob a proteção de Deus’, o inciso I do artigo 19, é claro:
‘Artigo 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.’
Comercialização do horário nobre
É exatamente por ser a Constituição de um Estado laico – e em coerência com o Artigo 19 – que a alínea b, do inciso VI, do artigo 150 proíbe a tributação sobre ‘templos de qualquer culto’ para não ‘embaraçar-lhes o funcionamento’ do ponto de vista financeiro.
Esta breve introdução histórico-legal vem a propósito de notícias que têm sido veiculadas na grande mídia nessas últimas semanas.
O jornalista Daniel Castro, por exemplo, informa em sua coluna ‘Outro Canal‘ na Folha de S.Paulo (18/9/2008):
‘A Band se abriu de vez para o mercado da fé. No mês passado, vendeu 22 horas da grade da Rede 21, emissora do mesmo grupo, para a Igreja Mundial do Poder de Deus. O negócio deverá render à TV R$ 420 milhões nos próximos cinco anos.
Desde o último dia 1º, o Ministério (sic) Silas Malafaia (Assembléia de Deus) ocupa a grade da Band da 1h30 às 7h. Pagará cerca de R$ 7 milhões por mês ou R$ 336 milhões em quatro anos (duração do contrato)’.
A Igreja Mundial do Poder de Deus, além das 22 horas semanais na Rede 21, já veicula seus programas na RedeTV! e na Rede Boas Novas, esta vinculada à Igreja Evangélica Assembléia de Deus (IAD), que controla 36 emissoras de televisão, sendo sete em VHF e 29 em UHF, em 24 estados e no Distrito Federal.
A Band comercializa também boa parte de seu horário nobre com a Igreja Internacional da Graça de Deus (IIGD), do pastor R. R. Soares, na telinha diariamente como resultado de um contrato que se estima girar em torno de 5 milhões de reais/mês. Esta igreja controla 85 canais de televisão, sendo que 77 em UHF, sete em VHF e um canal a cabo, em 24 estados [dados sobre a IAD e a IIGD coletados por Valdemar Figueredo Filho para dezembro de 2006].
Sublocação de serviço público
Segundo Daniel Castro, ‘a Band (rede de televisão) tem hoje 40 horas e 30 minutos de programação religiosa por semana, apenas três a menos do que a Record, que pertence à Igreja Universal. A campeã de aluguel de horário a igrejas é a Rede TV!. Tem 58 horas semanais de orações e exorcismos’.
E mais: a Rede SBT – a única que ainda não veicula programação religiosa – recebeu, pelo menos, uma proposta do missionário R. R. Soares, o mesmo que está no horário nobre da Band todos os dias.
Diante das evidências – que não se restringem aos dados citados e envolvem tanto igrejas evangélicas como católicas – não há como escapar de duas questões que, leiga e ousadamente, gostaria que fossem consideradas como ‘constitucionais’:
Primeiro, é correto (no sentido de legal) que grupos privados possam negociar e auferir lucro do aluguel, sublocação (ou seria subconcessão?) de ‘partes’ de um serviço público que lhes foi outorgado pelo Estado?
Segundo, retorno à pergunta já feita em texto recente publicado neste Observatório (ver ‘O coronelismo eletrônico evangélico‘): um serviço público que, por definição, deve estar ‘a serviço’ de toda a população, pode continuar a atender interesses particulares de qualquer natureza – inclusive, ou sobretudo, religiosos? Ou, de forma mais direta: se a radiodifusão é um serviço público cuja exploração é concedida pelo Estado (laico), pode esse serviço ser utilizado para proselitismo religioso?
E, por fim, uma curiosidade: a Lei 9.612/1998 proíbe o proselitismo de qualquer natureza (§ 1º do artigo 4º) nas rádios comunitárias. Será que a norma que vale para as outorgas desse serviço público de radiodifusão não deveria valer também para as emissoras de rádio e de televisão pagas e/ou abertas?
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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor/organizador, entre outros, de A mídia nas eleições de 2006 (Editora Fundação Perseu Abramo, 2007)