No final de abril, a imprensa brasileira e mundial noticiou a descoberta daquele que seria o primeiro planeta habitável fora do Sistema Solar. Na impossibilidade de divulgar uma foto de verdade, o pessoal dos centros de pesquisa envolvidos fez circular, como é de praxe nessas ocasiões, uma ‘reconstituição artística’ do novo astro [ver, por exemplo, matéria da Agência Estado, ‘Descoberto planeta habitável fora do Sistema Solar‘, de 24/4/2007]. Tudo bonitinho, tudo muito bem articulado e a notícia, claro, correu o mundo…
A rigor, no entanto, o novo planeta não foi e nem será fotografado. Sua descoberta foi feita de modo indireto, graças ao acúmulo de evidências do tipo ‘alterações sutis no movimento de tais e tais estrelas, monitoradas com equipamentos de alta-precisão, me permitem concluir que há um objeto a certa distância com tais e tais características’. Explorar evidências indiretas desse tipo faz parte da rotina de trabalho dos astrônomos e envolve cálculos e estudos abstratos bastante sofisticados. O problema é que relatos detalhados ou cálculos abstratos, ao contrário de reconstituições artísticas, dificilmente capturam a atenção do público que lê jornais ou assiste ao ‘shownoticiário’ da TV.
A bobagem de Hawking
Uma coisa puxa a outra e as agências governamentais (Nasa, nos EUA, ou Inpe, no caso do Brasil, por exemplo) passam a justificar seu próprio trabalho disputando a atenção do público por intermédio dos canais de comunicação. A exploração do espaço sideral – um empreendimento caro, que compete por recursos (dinheiro público ou privado) em um cenário já povoado por diversas outras agências e repartições – tem algumas justificativas que são aparentemente óbvias para muito de nós, como a busca de vida extraterrestre ou a idéia de colonizar planetas distantes.
Muita gente especula em torno desses assuntos de boa-fé. Afinal, vivendo em um mundo dominado por um sistema econômico tão anárquico, permanentemente em crise e gerador de tantos problemas, a possibilidade de abandonar o barco e começar tudo do zero em outro lugar – quem sabe, fora do Sistema Solar – soa para muitos como uma possibilidade bastante atraente. Meses atrás, por exemplo, o físico inglês Stephen Hawking anunciou que a colonização de planetas distantes representaria a única chance de salvação a longo prazo para a ‘espécie humana’ [ver, por exemplo, matéria reproduzida pela Agência Folha, ‘Humanidade precisa colonizar outros planetas, diz Hawking‘, de 1/12/2006, outro exemplo de notícia que correu o mundo…].
Hawking é um físico brilhante e notável, mas uma declaração dessas é não só risível como deveria merecer um comentário crítico à altura. (Não vi nada parecido publicado em português.) Para grande parte da mídia, ao que parece, sua ‘autoridade’ como físico – para não dizer sua aura como personagem do mundo midiático – seria suficientemente ampla e vigorosa a ponto de sustentar qualquer bobagem que ele venha a declarar sobre qualquer assunto. (A mídia brasileira faz a mesma coisa por aqui todos os dias, embora prefira despejar sobre o público a visão de mundo, digamos assim, de jogadores de futebol, cantores, atores, escroques e assemelhados.)
Um exercício de aritmética
Quando alguém – seja um cientista brilhante, como Hawking, ou um político oportunista qualquer – fala em salvar a ‘espécie humana’, cabe sempre a pergunta: a quem exatamente ele está se referindo? Quais os critérios de inclusão adotados em sua definição do que seja a espécie humana? Todos, verdadeiramente todos, os seres humanos vivos em determinado momento histórico serão de fato incluídos e, digamos, salvos?
Para começo de conversa, vamos admitir que o pessoal que vê um futuro promissor para nossa espécie em planetas distantes esteja agindo de boa-fé. (O sucesso da literatura e dos filmes de ficção científica leva a crer que um bocado de gente pensa assim.) Vamos, então, imaginar o seguinte: com o agravamento da situação planetária (superaquecimento, esgotamento das fontes de água potável, surtos epidêmicos etc.) e tendo já previamente selecionado um conjunto de planetas habitáveis nas vizinhanças do Sistema Solar, decidimos de modo consensual pela completa evacuação da Terra. De quanto tempo precisaríamos para completar essa empreitada?
A população humana em escala planetária está hoje na casa dos 6,5 bilhões de indivíduos. Completa evacuação significaria, portanto, retirar todos esses habitantes. Por simplificação, vamos deixar de lado certos penduricalhos, como os animais de estimação (cães, gatos, peixinhos dourados, pôneis, galinhas etc.). Vamos admitir também que o tamanho da população humana permaneça constante durante todo o processo. Além disso, teremos de incluir uma simplificação um tanto exagerada: vamos admitir que a tecnologia das naves espaciais e dos combustíveis seja tal que conseguiríamos enviar ao espaço 100 mil seres humanos por dia, durante todos os dias do ano, ao longo de muitos anos consecutivos.
‘Nós’ e ‘eles’
O xis da questão poderia, então, ser resumido na seguinte pergunta: a um ritmo de 100 mil passageiros por dia, de quanto tempo precisaríamos para enviar toda a população humana (6,5 bilhões) para outros planetas? (Em termos operacionais, vamos admitir que os passageiros seriam escolhidos por sorteio – nesse caso, cerca de 33 mil chineses e indianos embarcariam todos os dias, ao lado de uns 3 mil brasileiros –, os sorteados seriam em seguida imediatamente recrutados e enviados ao espaço.)
Pois bem, para responder à pergunta anterior, precisamos dividir 6,5 bilhões (6.500.000.000) por 100 mil (100.000). [Sem esquecer de prestar atenção ao número certo de algarismos; ver ‘Milhões, bilhões, trilhões‘] O resultado nos diz quantos dias seriam necessários para esvaziar todo o planeta, a saber: 6.500.000.000 / 100.000 = 65.000.
Para converter o resultado em anos, bastaria dividir 65 mil por 365 (ou, mais precisamente, por 365,25), o que resulta em algo próximo a 178 anos. Em resumo, para esvaziar por completo o planeta e salvar a ‘espécie humana’ levaríamos, a um ritmo alucinante de 100 mil passageiros por dia, cerca de 178 anos. [Para uma crítica semelhante à literatura escapista, ver Hardin, G., org. 1967. População, evolução & controle da natalidade. SP, Companhia Editora Nacional & Edusp.]
Esse resultado assombroso, no entanto, pode ser facilmente convertido em um intervalo de dias ou semanas. Para isso, bastaria que estreitássemos a definição adotada para ‘espécie humana’ – ‘nós’ somos humanos, ‘eles’ não são. Ou, alternativamente, poderíamos ainda evitar o sorteio e deliberadamente escolher alguns indivíduos como os ‘melhores’ representantes da espécie no processo de colonização de planetas distantes…
Não são, definitivamente, alternativas muito nobres. Não seria, então, mais sensato e produtivo lutar antes contra a deterioração das condições de vida aqui na Terra?
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Biólogo, autor de Ecologia, evolução & o valor das pequenas coisas (2003, Edição do autor) e A curva de Keeling e outros processos invisíveis que afetam a vida na Terra (2006, Editora Moderna)