Elio Gaspari, com freqüência, reencaminha a seus leitores da Folha, Globo e outros jornais os e-mails que figuras públicas ‘recebem’ de personagens históricos já desaparecidos, diretamente de algum lugar onde estes se perpetuam, no astral superior (ou inferior, nunca se sabe). Da mesma forma, Vitor Knijnik psicografa os grandes mortos de todas as eras, na coluna ‘Blogs do Além’, de CartaCapital.
É em boa companhia, portanto, que faço chegar aos leitores deste Observatório da Imprensa um intrigante manifesto, procedente da mesma região imaginária do estilismo jornalístico onde meus colegas transitam tão bem. Vamos dizer que o texto seria obra de um grupo de ativistas da mídia ‘neocon’ e que, conforme explicações de seu suposto preâmbulo, esses militantes cogitariam lançá-lo de aviões sobre Brasília durante a Conferência Nacional de Comunicações, para atingir seu público-alvo com o espalhafato típico daquela linha de imprensa.
Sem mais delongas, vamos ao manifesto, vazado em linguagem que remonta a períodos sombrios de nossa história recente:
‘Censores, obscurantistas, autoritários, stalinistas, velhacos, oportunistas, canalhas, fascistas, sanguessugas, catães, pulhas, inconseqüentes, pústulas, estatistas, vilões e malfeitores de todo tipo, alegrai-vos! Vem aí a I Conferência Nacional de Comunicação. De 14 a 17 de dezembro, o Centro de Convenções Ulisses Guimarães, em Brasília, será o vosso covil, valhacouto, aparelho. Sob os auspícios de um governo sabidamente antidemocrático e agressor das liberdades, será armado o circo para a vossa ignomínia. Lá podereis, juntos e felizes, locupletar-vos no ataque aos mais sagrados direitos da indivíduo e da livre empresa. Lá podereis articular a grande conspiração nacional, que lançará o país irremediavelmente no reino das trevas, no estado totalitarista e fundamentalista da opinião vigiada, controlada e manipulada.
‘Exultai! É chegada a vossa hora de escrever e cantar, talvez a nossas derradeiras noites de luar. Cobrireis com o manto da escuridão as luzes que, diligentemente, lutamos para manter acesas, sobre questões básicas da vida nacional. Nós, o grande sistema da mídia corporativa e nossos aliados na política e na sociedade, seremos derrotados em vosso plenário ilegítimo. Nossos candentes esforços, em prol da educação, da informação e do fortalecimento da cidadania em nosso amado Brasil, serão pisoteados pela vossa súcia de radicais inconseqüentes, pregadores da imprensa encabrestada e do Estado Big Brother.
‘Não pensais, entretanto, que o vosso pequeno triunfo nos causará abalo. Será vitória de Pirro, como todas quantas supusestes lograr, em toda a história da regulação das comunicações. Se esta infeliz Confecom realiza-se sob o signo da ilegitimidade, é porque tivemos a coragem cívica de denunciá-la, já no início deste ano, ao retirarmos seis de nossas entidades nacionais representativas da comissão organizadora. Não poderíamos coonestar vossa tentativa canhestra de obter ponderação de votos e decisões eqüitativas, nas deliberações dos assuntos da comunicação social, nos quais sempre reinamos soberanos e incontestes, e sempre fizemos valer a nossa vontade. Melhor do que ninguém, sabemos o que convém ao nosso povo. Não este bando de celerados que, sem qualquer procedência, nos acusa de autismo, soberba e abuso de poder.
Futuro das criancinhas
‘Infelizmente, duas entidades empresariais – a ABRA, representando as redes de televisão Bandeirantes e RedeTV, e a Telebrasil, do setor de telecomunicações – não compreenderam os nossos elevados objetivos, a nossa intransigente defesa do interesse nacional acima de qualquer conveniência mercadológica, e permaneceram na malfadada conferência, negando-se a dividir conosco a trincheira. Ouviram o canto de sereia dos grupelhos radicais que se apresentam como representantes da sociedade civil, e desses tantos comunistóides que se enquistaram no Estado, ao longo do lamentável Governo Lula. Ficaram na organização da Confecom, e com ela seguirão até o ato final, julgando-a democrática.
‘Ora, democrática! Democratas somos nós, o grande bloco corporativo da mídia e nossos aliados, que tanto temos feito pela preservação das instituições, a defesa dos mais arraigados valores da Pátria e a felicidade da Nação! Acusam-nos de não permitir que a regulação do setor se faça e perpetue-se a legislação que julgam ultrapassada e inadequada. Qual o problema de não termos lei específica para a imprensa, se temos o Código Civil? Qual o problema de estarmos sob a égide do Código Brasileiro de Telecomunicações, que hoje regula apenas a Radiodifusão e foi publicado em 1962, quando o cenário da mídia eletrônica era radicalmente diverso do atual? A constituição norte-americana é de 1787 e isso não impediu que o grande país do norte se tornasse o líder do mundo livre. Por que alterar o caos regulatório, o vácuo legal em muitas matérias e a pulverização do controle estatal entre vários ministérios (Comunicações, Justiça, Educação, Casa Civil) e agências (Anatel, Ancine), se isso contraria a vontade dos setores dinâmicos da comunicação brasileira? Por que mexer em time que está ganhando?
‘E o que quereis vós, supostos democratas, auto-ungidos reformadores do que não carece de mudança alguma? Quereis a mamata de sempre! Quereis canal de TV para centrais sindicais fazerem proselitismo político e ideológico, algo que nem imaginamos praticar em nossos veículos. Quereis proibir as nossas responsáveis redes de TV de tocarem livremente seu negócio, vetando a sublocação da programação a igrejas ou empresas de telemarketing. Quereis criar mais um conselho, só de censores, para vetar tudo de bom que tão amorosamente damos ao público, no nosso desapego às coisas materiais e na nossa preocupação com o futuro das criancinhas. Quereis até recriar a funesta Embrafilme, a vaca leiteira dos cineastas sem idéias e sem público!
Argumentos e práticas
‘É isso o que quereis, vendilhões da liberdade! Não nos venhais com esse argumento falacioso, de que a ênfase que colocamos nos pontos acima é cortina de fumaça para ocultar o essencial: o nosso veto à regulamentação dos artigos contidos no Capítulo V da Constituição Federal. É fato que os artigos 220 a 224 não nos saíram muito a contento, naquele processo constituinte de 1987-1988. Excrescências como a finalidade educativo-cultural da TV, o aumento da produção independente, do conteúdo regional e do cinema brasileiro na programação, ou o tal Conselho de Comunicação Social no Senado, jamais deveriam ser aprovados. Queremos, sim, que o Capítulo V seja regulamentado! Queremos que tudo isso seja desbastado dele, em nome da democracia, da inclusão social e do desenvolvimento.
‘Desfrutai a hora que se anuncia, censores de toda ordem, mas tendes claro: não assistiremos calados. Nos próximos dias, tudo faremos, em nossas reportagens dirigidas, nossos comentários indignados e nossos editoriais apocalípticos, para alertar o bom povo brasileiro de vossos desígnios malignos. Tudo faremos para ridicularizar, folclorizar, diminuir e neutralizar essa Confecom, que cobriremos jornalisticamente com o máximo de nosso empenho conservador.
‘E caso tenhais algum sucesso nos trabalhos, aprovando teses que contrariem as nossas doutas considerações e atrapalhem nosso tranqüilo exercício do bem público da comunicação em estrito interesse privado, vossa alegria terá curta duração. Faremos como na Ancinav, acuando o governo com o nosso poder de chantagem, para não levar nenhuma deliberação adiante. Faremos como sempre, controlando o Congresso para votar apenas consoante as nossas orientações.
‘Este ainda é o Brasil, múmias do marxismo extinto. Aqui ainda mandamos nós.’
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Esta é, pois, a exortação que fazem dos recônditos da ficção jornalística os supostos extremistas neocon, contrários à Conferência Nacional de Comunicação. Evidentemente – e não apenas por ser o redator no qual incorporou-se essa estranha entidade, esse fantasma dos tempos autoritários – não me é possível dar crédito a nenhuma palavra do que o texto contém. Tenho certeza de que os argutos leitores o receberão com o mesmo descrédito.
Como sabemos todos, os argumentos e as práticas dos que se opõem à Confecom são completamente contrastantes com esses delírios de autossuficiência, intolerância e agressão à democracia. É o que nos faz confiar cegamente em seu papel afirmativo para o avanço do Brasil.
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Jornalista