Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Falta falar mais de prevenção

A maneira como a incidência de dengue no estado de São Paulo foi noticiada nas três primeiras semanas de maio por jornais paulistas – aqui representados pela Folha de S.Paulo e pelo Estado de S.Paulo – sobrecarregou hospitais e deu muito pouca importância à tarefa estratégica de insistir na prevenção da doença, ou seja, recomendar medidas que devem ser tomadas em cada domicílio ou propriedade para evitar a reprodução do mosquito, o famoso, feio e funesto Aedes aegypti.

Os epidemiologistas preferem que pessoas com sintomas que as façam suspeitar de dengue vão aos prontos-socorros ainda que tenham apenas, na maioria dos casos, gripe ou resfriado. Primeiro, esse é o procedimento correto: evitar o autodiagnostico e, pior, a automedicação. Segundo, quem de fato tiver dengue receberá assim o tratamento, em geral simples. Quase sempre, a dengue mata quando as pessoas contaminadas demoram para ir ao médico. Terceiro, isso dá às autoridades sanitárias um quadro mais real do contágio. Portanto, alarmar um pouco é melhor do que silenciar ou subestimar.

Manipulação e numeralha

Duas características do noticiário, porém, incomodam médicos da saúde pública que lidam com o problema. A primeira, já mencionada, é a escassez de recomendações sobre o modo de evitar a proliferação do inseto, cada vez mais restrita a mensagens de propaganda governamental de discutível qualidade publicitária (porém as mais bem remuneradas do mercado) e efeito decrescente.

A segunda é a politização exacerbada da cobertura das políticas públicas, entre elas as de saúde, estimulada pela proximidade da campanha eleitoral e temperada por uma cada vez mais patética “síndrome da numeralha”.

Do uso enviesado e desatinado de estatísticas é exemplo uma reportagem da Folha na qual as informações são manipuladas para permitir um título negativo. Saiu n na terça-feira (13/5):

A linha fina contraria a manchete (da página C6). Eis os dois primeiros parágrafos da reportagem, cada um puxando para um lado:

“Dados do Ministério da Saúde apontam um aumento de 184,68% [sic] no número de casos graves de dengue no Estado de São Paulo entre o início de janeiro e 19 de abril.

O número de mortes e o total de casos no Estado, neste ano, são mais baixos do que os registrados em 2013.”

Parágrafos adiante se encontra a informação de que, até a data de encerramento da contagem, tinha havido um total de 170,5 mil casos em 2013 ante 117 mil em 2014 (quase um terço menos), e 59 mortes em 2013 ante 11 no mesmo período deste ano (cinco vezes menos).

Além da feição manipulatória, a matéria faz o cérebro do leitor se engasgar com números: são 19 (sem contar os que representam datas) em 85 linhas.

No fundo, trata-se aqui da influência do marketing eleitoral não apenas na agenda como na estrutura das matérias sobre serviços públicos. E usar números a torto e a direito, “entrevistando” press releases, é mais fácil (e mais barato, principalmente) do que apurar melhor o assunto.

Busca de antagonismos

Não que a Folha tenha resolvido dar uma forcinha para o governo federal (Ministério da Saúde, PT) às custas do estadual (PSDB) e dos municipais. É que o clima vigente acaba criando estímulos para a busca de antagonismos, nem que seja de um ano “contra” outro. Se a matéria seguisse a lógica dos dados, o título não teria “força”. Teria de ser algo como “SP tem mais casos graves de dengue, embora número total seja menor e mortes mais raras”.

Alguns dados muito relevantes aparecem de modo fugaz. Dos 645 municípios paulistas, 267 não haviam registrado em 2014 nenhum caso de dengue. Que tal explicar aos leitores a que se atribuem esses bons resultados? Dos casos registrados no território paulista, 70% foram detectados em oito municípios (Estado, 10/5).

Em Jaú a situação se agravou porque no início de maio havia 25 médicos e outros 85 funcionários da saúde pública contaminados, num contexto em que o atendimento da Santa Casa, em média de 350 pessoas por dia, havia subido para 500 pessoas. A situação mais grave era a de Campinas, mas a capital – e, portanto, cidades-dormitórios da Região Metropolitana de São Paulo – também enfrentava dificuldades.

Ensinamentos negligenciados

O Observatório da Imprensa fez uma breve pesquisa com 16 reportagens da Folha e 12 do Estado sobre dengue no território paulista entre 1 e 21 de maio (meios impresso e digital: há mais de uma matéria por dia). Só em duas, da Folha, fala-se em prevenção. A primeira saiu na versão impressa em 9/5. Faz recomendações básicas:

Entretanto, esse serviço vem acompanhado por duas fotos que mostram situações externas às residências, extremamente desalentadoras e fora das possibilidades de ação de moradores, individualmente ou em grupo. São problemas que só governos podem resolver:

Abaixo, a imagem da página:

No dia 12, apenas na edição online, a Folha ofereceu “Dicas para se prevenir”, por sinal um infográfico bem-elaborado:

Entre as demais 24 matérias, pouquíssimas fazem referência ao papel que a população deveria ter. Numa reportagem online da Folha sobre o grave surto epidêmico em Campinas, o prefeito Jonas Donizette declara que 80% dos criadouros do mosquito na cidade estão em residências e 20% em locais públicos (dado fornecido pela Secretaria estadual da Saúde). Numa segunda reportagem, publicada na mesma data (9/5), é reproduzida uma recomendação das autoridades: “Por isso, é fundamental que a população também combata os criadouros em água parada”. Em outra matéria, o coordenador da Vigilância Sanitária de Araraquara, Feiz Mattar, declara que “um dos motivos da ocorrência da epidemia é a falta de conscientização da população” (Folha, 20/5).

O pai Estado

A tônica é sempre colocada na ação estatal: faltam agentes sanitários, ou os agentes não têm equipamento adequado para trabalhar etc. Relatam-se também casos em que, pior, os agentes são impedidos de trabalhar: segundo a copeira Ana Lúcia de Jesus Santos, moradora da Vila Catarina, distrito paulistano do Jabaquara, “na rua abaixo da sua moradores não permitem que agentes da prefeitura façam visita dentro das casas” (Folha, 16/5).

Tudo muito brasileiramente pendurado no Estado. Gastam-se rios de dinheiro com visitas de agentes às casas. E já faz quinze anos que a dengue voltou a ser diagnosticada no Brasil, tempo suficiente para qualquer campanha de esclarecimento.

Numa das reportagens, uma moradora diz: “Só depois que os casos dispararam [na capital] é que os agentes da prefeitura começaram a passar nas casas dando orientações” (Folha, 9/5). Se ainda é preciso que agentes andem de casa em casa dando orientações, fracassaram a mídia, escolas, igrejas e outras instituições capazes de disseminar informação adequada.