O FNDC publicou, em 19/1, o manifesto ‘O que o governo despreza no debate sobre a TV Digital’ no qual apresenta elementos para a recuperação do interesse público no projeto estratégico da digitalização das comunicações no Brasil. O documento foi entregue na reunião do Comitê Consultivo (CC) do Sistema Brasileiro de TV Digital (SBTVD), realizada na quinta-feira (19/1), e distribuído para outras instâncias do governo federal. O Fórum, juntamente com a Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ), que também assina o manifesto, sugere que o governo federal adie a tomada de decisão acerca do modelo de TV Digital a ser implantado no Brasil (prevista para o próximo dia 10/2), a fim de desencadear ‘ações coordenadas no sentido de sanar as lacunas e omissões que ainda persistem no debate sobre o tema, e estabelecer o prometido diálogo com a sociedade civil’ representada dentro do SBTVD.
O manifesto traz propostas concretas para a universalização dos serviços digitais, que são, para as entidades, uma questão de Estado da qual dependem a democracia e a própria afirmação da cidadania. Faz uma crítica à condução do processo de discussão do SBTVD – uma iniciativa ousada do governo Lula em promover um espaço público de debate com a sociedade civil, através do Comitê Consultivo do SBTVD, integrado por 23 entidades representativas – alterado bruscamente pela crise de governabilidade que passou o Brasil em 2005, e que trouxe, como conseqüência a inversão de prioridades no processo de decisão. A entrada de Hélio Costa – alinhado aos interesses dos empresários de radiodifusão – na pasta das Comunicações foi apontada pelas entidades signatárias do manifesto, como uma conseqüência da crise que transformou o Ministério em ‘balcão de negócios’. Com isso, o ‘SBTVD passou a ser tratado pela ótica exclusiva da operação privada e comercial’, entendem o FNDC e a FENAJ. A íntegra do manifesto pode ser lida clicando aqui [em formato PDF].
As propostas do FNDC
A digitalização tem uma agenda variada.
Em princípio, é preciso construir uma política nacional de produção de semicondutores. Eles são a ‘matéria-prima’ industrial que assegurará o controle nacional sobre a produção de conteúdo, o maior grau possível de interatividade, oferta de soluções de multisserviço, multiprogramação e o desenvolvimento do mercado de BECs.
O Brasil deve desenvolver um modelo de implantação dos serviços digitais valendo-se de parcerias internacionais com países que tenham como critério a transferência de tecnologia e a inserção do País nos consórcios que estudam e propõem evoluções nos padrões tecnológicos existentes. Até o presente momento, a única perspectiva de efetivação de uma negociação nesses termos seria a China, país até agora olimpicamente ignorado pelo governo Lula, que direciona suas opções exclusivamente à Europa e ao Japão.
Naturalmente, o desenvolvimento da indústria, a participação no desenvolvimento de semicondutores e no desenvolvimento da plataforma de serviços digitais só terá sentido se isso redundar em uma digitalização que reafirme a democracia e a cultura nacional.
É preciso que haja um controle público de todo o processo, em todas as suas etapas e no funcionamento dos sistemas e mercados de comunicação. Nesse sentido, é de importância capital a criação da figura de um operador de rede de caráter público. Assim como acontece em outros países, principalmente de um punhado de democracias européias, sua função é gerir a infra-estrutrura e regular a qualidade da prestação dos serviços digitais.
A regulação e a qualificação dos serviços digitais tornam-se elementos críticos considerada a palheta de recursos disponibilizada pela digitalização. É o caso, por exemplo, da oferta de serviços, aplicações e conteúdos (SAC) através de uma plataforma que contemple as características de multisserviços e multiprogramação. Ambas possuem incidência crucial sobre a produção e a difusão dos bens culturais e da emergente necessidade de inclusão de novos atores nas atualmente verticalizadas cadeias de valor dos setores audiovisual e de telecomunicações/radiodifusão.
As perguntas do FNDC
A digitalização tem prazos variados.
Até hoje, as entidades do Comitê Consultivo do SBTVD só tomaram conhecimento de quatro dos oito documentos elaborados pela Fundação CPqD, e que deveriam subsidiar o processo de decisão sobre o modelo de referência a ser adotado. Um dos mais importantes, o que trata da política regulatória do novo sistema, sequer foi apresentado formalmente a quem, de acordo com o Decreto 4.901, deveria determinar as diretrizes estratégicas dos trabalhos das outras duas instâncias (Comitê de Desenvolvimento e Grupo Gestor). Como analisar os impactos e a viabilidade de um modelo sem ter acesso a todas as informações disponíveis e sem confrontar visões distintas sobre um mesmo problema uma vez que um lado está tendo privilégios de expor suas idéias aos agentes públicos?
Os resultados das pesquisas desenvolvidas pelos 22 consórcios de universidades e institutos nacionais sequer foram testados de forma sistêmica porque faltaram recursos para a criação de uma estação-piloto. Como orientar uma decisão de Estado baseada apenas em protótipos?
Diversos países do mundo, entre eles a China, não têm prazo final para decidir qual será o modelo da sua televisão digital. No Japão, lar do modelo preferido pela Globo e seu ministro, a transição iniciou há apenas dois anos. Mesmo os nossos vizinhos sul-americanos estão em compasso de espera. Portanto, em que está baseada a pressa do Brasil?
Até hoje, o governo não promoveu uma campanha de esclarecimento público de abragência nacional para informar à população o que está em jogo e qual o custo da introdução da tecnologia digital nas comunicações, bem como suas implicações na cultura e na economia do País. Como tomar uma decisão sem consultar o maior interessado?
Logo, não cabe ao governo colocar interesses particulares à frente do debate e fazer com que todos os persigam, dando ao processo uma falsa sensação de exigüidade de prazos ou de urgência inarredável. Criar uma situação de fato só contribui para descartar um leque de opções e oportunidades como as citadas anteriormente.
Esforço semelhante
Atuando na mesma linha, o Intervozes – Coletivo Brasil de Inclusão Digital produziu um documento onde também pede o adiamento da decisão por parte do governo federal. O texto, divulgado no dia 19/1, expressa o ponto-de-vista da entidade – formada por jornalistas e ativistas da área da democratização da comunicação – sobre a digitalização da radiodifusão, considerada um novo horizonte de possibilidades, defende propostas tecnológicas, políticas de subsídio para aquisição de terminais de acesso para a população de baixa renda e incentivo à produção audiovisual com linhas de crédito próprias para realizadores independentes e canais comunitários e universitários.
‘Antidemocráticos e irresponsáveis’
Hélio Costa recebeu mal o manifesto do FNDC e abriu a reunião do Comitê Consultivo do SBTVD, na manhã de ontem, criticando a entidade, que não estava presente. De acordo com relatos de representantes de outras entidades, o ministro taxou o Fórum de ‘irresponsável e antidemocrático’. Para Celso Schröder, coordenador-geral do FNDC, ‘antidemocrática é a atitude do ministro, que sabotou o Comitê Consultivo, transferindo as atribuições garantidas por Decreto para uma relação informal e privilegiada com os radiodifusores’. Mais uma vez, a reunião foi convocada em cima da hora, apenas três dias antes de acontecer. Mais uma vez, a reunião esteve esvaziada.
Apesar do Minicom afirmar que a fase da discussão técnica já acabou e que agora será tomada uma decisão política pelo Presidente da República em conjunto os ministros – considerando os padrões americano, europeu e japonês – fontes presentes à reunião do Comitê Consultivo do SBTVD saíram com a sensação de que a decisão já foi tomada. O ministro praticamente indicou que a escolha recairá sobre o padrão japonês, inclusive revelando que já estaria em negociações com fabricantes daquele país para a importação de alguns equipamentos, revoltando os representantes das indústrias nacionais de produtos eletroeletrônicos.
Desrespeito ao decreto
Conforme matéria do site Tela Viva, em 19/1, ‘melancólico’ foi um dos adjetivos mais mencionados por alguns dos participantes do Comitê Consultivo para qualificar a reunião que, ao que tudo indica, pode ter sido a última. Outro participante, entretanto, representante de uma das entidades que compõem o CC, relatou ao e-Fórum que ‘melancólico’ é um termo muito brando para definir o ânimo dos que estiveram na reunião. Ele conta que o ministro agradeceu o trabalho do Comitê (já se despedindo) e pediu desculpas por não poder apresentar os documentos completos com o conteúdo do que foi levantado nos estudos, porque os contratos assinados com as instituições que os desenvolveram, em resguardo à propriedade intelectual, garantem a confidencialidade dos conhecimentos gerados. Para a fonte ouvida pelo e-Fórum, que preferiu não se identificar, esta cláusula presente nos contratos só vem demonstrar a fragilidade do Sistema, uma vez que impossibilita a sociedade científica e industrial representada no Comitê de realizar suas análises sobre os aspectos levantados nos estudos. ‘O Comitê Consultivo foi praticamente dispensado sem, enfim, conhecer o material’, lamentou o representante.
Nos últimos dois anos, não foi apenas esta a demonstração de que o governo federal não pretende respeitar o decreto nº 4.901 que ele mesmo editou em novembro de 2003. O e-Fórum enumera, abaixo, os objetivos do SBTVD originalmente expressos na norma e como eles foram encaminhados pela administração pública federal.
Objetivos do Decreto nº 4.901/03 | Como foi encaminhado |
Artigo 1º | |
I – promover a inclusão social, a diversidade cultural do País e a língua pátria por meio do acesso à tecnologia digital, visando à democratização da informação; | Cultura nacional e democratização da informação não foram objeto de estudo, apesar das reivindicações de entidades do Comitê Consultivo. Inclusão social está sendo discutida de forma secundária. |
II– propiciar a criação de rede universal de educação à distância; | Solução proposta por consórcio de pesquisa não aborda a rede universal. Foi desenvolvido um aplicativo para ensino a distância. |
III – estimular a pesquisa e o desenvolvimento e propiciar a expansão de tecnologias brasileiras e da indústria nacional relacionadas à tecnologia de informação e comunicação; | Foram contratados 22 consórcios de pesquisa para criar tecnologia própria para os subsistemas do SBTVD em seis áreas. Soluções criaram inteligência local de pesquisa e desenvolvimento (P&D). Protótipos não foram testados de forma sistêmica e não estão articulados com a indústria nacional de bens eletroeletrônicos de consumo (BECs). |
IV – planejar o processo de transição da televisão analógica para a digital, de modo a garantir a gradual adesão de usuários a custos compatíveis com sua renda; | Não existe uma política de financiamento formulada para a aquisição de equipamentos e não foi apresentado o chamado modelo de implantação. Governo não sabe qual será o preço final de uma unidade receptora-decodificadora (set-top-box), que inicialmente será acoplada aos cerca de 60 milhões de televisores que existem no Brasil. |
V – viabilizar a transição do sistema analógico para o digital, possibilitando às concessionárias do serviço de radiodifusão de sons e imagens, se necessário, o uso de faixa adicional de radiofreqüência, observada a legislação específica; | Foi garantida apenas para os atuais concessionários. Existem interpretações distintas se esta possibilidade é prevista na legislação ou exige nova regulamentação. |
VI – estimular a evolução das atuais exploradoras de serviço de televisão analógica, bem assim o ingresso de novas empresas, propiciando a expansão do setor e possibilitando o desenvolvimento de inúmeros serviços decorrentes da tecnologia digital, conforme legislação específica; | Não existe previsão de como se dará a inserção de novos candidatos a outorgas no espectro. Não existe política coordenada que garanta a evolução das atuais emissoras de forma equilibrada e igualitária. |
VII – estabelecer ações e modelos | Governo ainda não possui ações para esta etapa. Modelo de negócios não está desenhado e nem foi discutido com a sociedade civil. Modelo de serviços ficou em segundo plano. |
VIII – aperfeiçoar o uso do espectro de radiofreqüências; | Não há previsão de aperfeiçoamento. Pressão dos radiodifusores é para que seja mantido o status quo a fim de barrar a entrada de novos concorrentes. |
IX – contribuir para a convergência tecnológica e empresarial dos serviços de comunicações; | Governo não garantiu formas de promover este objetivo. Cenário que prevê a convergência, desenhado pela Fundação CPqD, vem sendo criticado pelos empresários de radiodifusão que vêm na entrada das teles como prestadoras desses novos serviços uma ameaça a seus negócios. |
X – aprimorar a qualidade de áudio, vídeo e serviços, consideradas as atuais condições do parque instalado de receptores no Brasil; e | Valorização excessiva de altas resoluções para áudio e vídeo tem simpatia por parte do governo. Prioridade para a alta definição pode se chocar com a baixa capacidade e qualidade de resolução do parque de receptores instalado. |
XI – incentivar a indústria regional e local na produção de instrumentos e serviços digitais. | Não há estímulo para a produção industrial local e, muito menos, regional. Ministro declarou interesse em reduzir ou zerar alíquotas de importação para trazer equipamentos de outros países, despotencializando o parque industrial instalado no Brasil. Decisão pode causar fuga de empresas multinacionais. |
Competências do Comitê Consultivo | Como foi encaminhado |
Artigo 5º | |
O Comitê Consultivo tem por finalidade propor as ações e as diretrizes fundamentais relativas ao SBTVD e será integrado por representantes de entidades que desenvolvam atividades relacionadas à tecnologia de televisão digital. | A instalação do Comitê Consultivo se deu cerca de 9 meses desde a publicação do Decreto em pleno andamento dos trabalhos. Instância funcionou de forma precária, sem secretaria para as reuniões. Em nenhum momento, foram levadas em conta as proposições de ações debatidas pelo Comitê nem os questionamentos dirigidos ao governo e à Fundação CPqD. O governo não ouviu o Comitê na proposição das diretrizes fundamentais relativas ao SBTVD. |
§ 1º Os membros do Comitê Consultivo serão designados pelo Ministro de Estado das Comunicações, por indicação das entidades referidas no caput deste artigo, de acordo com critérios a serem estabelecidos pelo Comitê | Foram nomeadas 23 entidades da sociedade civil em 2004. Com entrada do ministro Hélio Costa, foi formado um comitê ad hoc onde apenas os radiodifusores passaram a ser ouvidos. |
§ 2º O Comitê Consultivo será presidido pelo Presidente do Comitê de Desenvolvimento do SBTVD. | Comitê Consultivo foi esvaziado depois da entrada do terceiro presidente do Comitê de Desenvolvimento. Opiniões e formulações ali apresentadas foram desconsideradas. |
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Da Redação FNDC