Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Folha de S. Paulo

ECOS DA DITADURA
Clóvis Rossi

Memória não é revanche

‘SÃO PAULO – Para quem lidou tantas e tantas vezes com o tema da repressão durante o ciclo militar, chega a ser surpreendente a hipótese de que pudesse haver alguma reação das Forças Armadas ao livro ‘Direito à Memória e à Verdade’, que acaba de ser lançado pelo governo federal.

O título, aliás, é daqueles que proíbem qualquer contestação: todo país tem o direito inalienável à memória, ainda que possa ser tenebrosa em alguns momentos (ou muitos momentos), e à verdade, por desagradável que possa ser.

Na verdade, o que deveria surpreender é a tardança do Estado brasileiro em dar um passo na direção da ‘memória e da verdade’. O país é o último dos sul-americanos que foram submetidos à ditaduras militares a examinar com a devida lupa os abusos ocorridos.

Houve, sim, esforços particulares ou da sociedade civil. Sob comando da Arquidiocese de São Paulo, quando dom Paulo Evaristo Arns era o cardeal-arcebispo, publicou-se o ‘Nunca Mais’, ampla compilação das violências praticadas.

Livros, saíram muitíssimos, inclusive de autoria de oficiais que participaram do mecanismo repressivo. Nunca é demais louvar o extraordinário trabalho do jornalista Elio Gaspari nos quatro volumes (até agora) sobre o período militar, em que o mecanismo repressivo foi bastante esmiuçado, não só do ponto de vista operacional mas também sobre a, digamos, formatação da repressão nos escalões superiores.

Mas esses livros, justamente por terem sido elaborados do lado de fora do aparelho de Estado, não puderam dar conta completa do quesito ‘memória’. Não puderam, por exemplo, como é óbvio, devolver os corpos de ‘desaparecidos’ às famílias. Seria absurdo confundir esse ato, profundamente humanitário, com revanchismo. A memória só é revanchista para quem tem consciência culpada.’

Eliane Cantanhêde e Kennedy Alencar

Ministro há um mês, Jobim tem primeira crise com militares

‘Seis dias depois de completar um mês no cargo, o ministro da Defesa, Nélson Jobim, enfrentou ontem a primeira crise militar no cargo. O Alto Comando do Exército se reuniu extraordinariamente e divulgou nota reagindo contra o lançamento de um livro sobre tortura no regime militar. ‘Fatos históricos têm diferentes interpretações’, afirma o texto.

A nota condena a possibilidade de mudança na Lei da Anistia para permitir o julgamento de militares envolvidos com torturas e mortes durante a ditadura de 1964, como ocorreu no Chile e na Argentina.

‘A Lei da Anistia, por ser parâmetro de conciliação, produziu a indispensável concórdia de toda a sociedade (…). Colocá-la em questão importa em retrocesso à paz e à harmonia nacionais’, diz a nota, assinada pelo comandante do Exército, general Enzo Martins Peri, que a entregou a Jobim. Conforme a Folha apurou, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva determinou cautela a Jobim.

Quem aventou a hipótese de mudar a Lei de Anistia foi o presidente da Comissão de Mortos e Desaparecidos, do Ministério da Justiça, Marco Antonio Barbosa, no lançamento do livro ‘Direito à Memória e à Verdade’, sobre torturas e mortes de opositores à ditadura, quarta, na presença de Lula. Para Barbosa, tortura é ‘crime imprescritível’.

Em resposta à versão de que o Exército de hoje é diferente do que é acusado de crimes durante a ditadura, a nota diz: ‘Não há Exércitos distintos. Ao longo da história, temos sido o mesmo Exército de Caxias, referência em termos de ética e de moral, alinhado com os legítimos anseios da sociedade’.

O texto foi transmitido a todos os comandos do país. Ele foi uma reação ao livro, ao seu lançamento no Planalto e principalmente ao recado de Jobim, na cerimônia, vetando manifestações contrárias ao trabalho nas Forças Armadas.

Apesar de Lula ter feito na cerimônia de lançamento do livro um discurso considerado ‘apropriado’ por militares, Jobim fez o que eles classificaram internamente de ‘afronta desnecessária’, ao avisar que não admitiria reclamações contra o livro: ‘Não haverá indivíduo que possa reagir e, se houver, terá resposta’, disse o ministro.

Foi isso que mais irritou os generais. A reunião do Alto Comando foi convocada e presidida pelo comandante Enzo, que chegou de Buenos Aires por volta de meia-noite e meia e se reuniu com os seus integrantes a partir das 13h. O calendário do Alto Comando prevê reuniões bimestrais, e a de ontem não estava prevista.

Extraordinária

Mais alto foro de decisão militar, ele é integrado por 14 generais-de-Exército. Sete são de fora de Brasília e foram convocados na quinta. Conforme a Folha apurou, o clima da reunião foi de indignação e a primeira versão da nota era mais dura, mas foi alterada até ficar ‘elegante, porém firme’, na expressão de um participante.

Eles reclamaram de Jobim, que consideraram ‘arrogante’, e destacaram que ameaças do ministro são inócuas, pois ele não tem autoridade para punir as Forças Armadas. Seu poder se resume à possibilidade de poder pedir ao presidente a troca de um comandante.

Na reunião, eles também fizeram uma comparação das Forças Armadas com a Agência Nacional de Aviação Civil, que está sendo desmontada por Jobim: ‘Nós não estamos mortos nem somos a Anac’, disse um dos presentes à reunião.

Apesar de também incomodadas, Marinha e Aeronáutica não convocaram reuniões contra a iniciativa da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência. Até ontem à noite, estava confirmado o embarque de Jobim e do comandante do Exército, juntos, amanhã, para o Haiti. Eles voltam na quinta.’

***

‘Fatos históricos têm diferentes interpretações’

‘Confira a íntegra da nota do comandante do Exército, general Enzo Martins Peri, distribuída a todos os comandos da Força e ditada por telefone à Folha:

‘O Alto Comando do Exército reuniu-se em Brasília no dia 31 de agosto para tratar de assuntos de interesse da Força e de fatos divulgados recentemente pela mídia.

Com concordância unânime, decidiu reafirmar que o Exército brasileiro, voltado para suas missões constitucionais, conquistou os mais elevados índices de confiança e credibilidade junto ao povo brasileiro.

Nossos comandantes, em todos os níveis, ensinam diuturnamente em nossos quartéis os valores da disciplina, da hierarquia e da lealdade, os quais têm sido cultuados como orientadores das ações permanentes da Força.

A Lei da Anistia, por ser parâmetro de conciliação, produziu a indispensável concórdia de toda a sociedade, até porque os fatos históricos têm diferentes interpretações, dependendo da ótica de seus protagonistas. Colocá-la em questão importa em retrocesso à paz e à harmonia nacionais, já alcançadas. Reitero aos meus comandados que:

Não há Exércitos distintos. Ao longo da história, temos sido o mesmo Exército de Caxias, referência em termos de ética e de moral, alinhado com os legítimos anseios da sociedade brasileira.

Estamos voltados para o futuro e seguimos trabalhando incansavelmente pela construção de um Brasil mais justo, mais fraterno e mais próspero’.’

LÍNGUA PORTUGUESA
Ruy Castro

Expulsos da língua

‘RIO DE JANEIRO – Ainda sobre a reforma ortográfica a entrar em vigor em 2008 e que se propõe a ‘unificar’ a escrita no Brasil, em Portugal e nos países africanos onde a língua portuguesa disputa algumas bocas com dezenas de dialetos locais. Exceto pela volta à legalidade do ‘k’, do ‘w’ e do ‘y’, continuo sem entender a que ela virá.

Não me consta, por exemplo, que nossos países escrevam certas palavras como enjôo, jibóia, desmilingüido e anti-social de forma diferente. Mas, pelo visto, é o que acontece. Daí que, a partir da ‘unificação’, as ditas palavras se tornarão enjoo, jiboia, desmilinguido e antissocial.

Pena que, para isso, o acento circunflexo, o agudo do ditongo aberto, o trema e o hífen, de tantos serviços prestados, tenham sido quase que expulsos da língua. Mas imagino que, com essa medida, nossos cadernos literários, que mal têm espaço para escritores brasileiros, poderão abrir suas páginas para a literatura do Timor Leste e da Guiné-Bissau.

E como ficam certas idiossincrasias lingüísticas como, digamos, o nome Bahia? No Brasil, o ‘h’ de Bahia sobreviveu graças a uma convenção. Mas, para os portugueses, a Bahia sempre foi a Baía, mesmo -talvez porque precisassem daquele ‘h’ para escrever húmido. Bem, agora que o ‘h’ de húmido caiu, eles também terão de escrever Bahia?

Sem falar na confusão que se instalará por lá ante a queda do ‘c’ mudo. Com isso, facto (acontecimento, evento, realidade) passa a se escrever como fato (roupa, indumentária, traje). Pergunte a um inglês se ele admite perder o ‘u’ de ‘colour’.

Essa reforma privilegia o português do Brasil, e não é por acaso que Portugal hesita em assiná-la. Mas, com a adesão e os votos de Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, o Brasil pode e vai aplicá-la na marra. Que ‘unificação’.’

SOBRE O ISLÃ
Paulo Daniel Farah

Ali Kamel enfoca afinidades monoteístas

‘‘Como podem [os extremistas] envolver Deus nisso? Que processo leva essas pessoas a criar, a partir de uma religião que se quer pacífica, um dos movimentos políticos mais violentos que o mundo já viu, uma das maiores ameaças ao nosso estilo de vida, às liberdades essenciais do ser humano? Quem são essas pessoas? O que elas pensam?’ Essas são algumas das questões que Ali Kamel formula nas páginas iniciais do livro ‘Sobre o Islã – A Afinidade entre Muçulmanos, Judeus e Cristãos e as Origens do Terrorismo’.

O autor se propõe uma missão dupla: ressaltar que há mais pontos em comum do que discórdia entre as religiões monoteístas (os títulos e os subtítulos dos capítulos explicitam questões vinculadas ao islã e que são abordadas no texto com analogias ao cristianismo e ao judaísmo) e oferecer respostas a questionamentos contemporâneos complexos.

Embora as análises políticas sejam tema de divergência (sobretudo no que concerne às motivações de ocupações territoriais), perpassa a obra o argumento de que deturpações das mensagens religiosas provocam ações radicais. Destarte, os textos considerados sagrados comportam muitos significados e as distintas interpretações geram ações e movimentos adaptados a interesses particulares movidos por ‘uma espécie de Alcorão sob medida’.

‘É evidente que há elementos de fé que não são passíveis de discussão, como a unicidade de Deus, para citar apenas um, nas três religiões monoteístas.

Mas a revelação é tão rica e a vida é tão cheia de possibilidades que, em torno de pontos imutáveis sem os quais uma fé não é uma fé, toda sorte de nuances é possível’, afirma Kamel sobre a diversidade do campo religioso monoteísta.

O autor cita o historiador inglês Paul Johnson, que descreve o islã como violento com base no quinto versículo da nona surata do Alcorão (‘Matai os idólatras onde quer que os encontreis, e capturai-os e cercai-os e usai de emboscadas contra eles’); esse trecho corânico o impele a uma conclusão taxativa: ‘Paz não é uma palavra que possa se encaixar facilmente nessa forma de pensamento’, alega Johnson.

Passagens do Pentateuco

Em seguida, Kamel menciona diversas passagens do Pentateuco (a Torá judaica que corresponde a parte do Antigo Testamento cristão, seguido também pelos muçulmanos) que incitam à hostilidade. Uma delas sentencia: ‘Se teu irmão -filho do teu pai ou da tua mãe-, teu filho, tua filha, ou a mulher que repousa em teu seio, ou o amigo que é como tu mesmo, quiser te seduzir secretamente, dizendo: ‘Vamos servir a outros deuses’, deuses que nem tu nem teus pais conheceram, deuses de povos vizinhos próximos ou distantes de ti, de uma extremidade da Terra à outra, não lhe darás consentimento, não o ouvirás, e que teu olho não tenha piedade dele; não uses de misericórdia e não escondas o seu erro. Pelo contrário, deverás matá-lo! Tua mão será a primeira a matá-lo e, a seguir, a mão de todo o povo apedreja-o até que morra…’ (Deuteronômio, 13, 7-11).

Em ambos os casos, argumenta o autor, retirar do contexto histórico a passagem provoca impressões falsas. A mensagem consiste em que, quando o Reino da Terra assume prerrogativas e atributos do Reino do Céu, independente da inspiração, a mistura revela-se freqüentemente explosiva.

PAULO DANIEL FARAH é professor na Faculdade de Filosofia , Letras e Ciências Humanas da USP

SOBRE O ISLÃ – A AFINIDADE ENTRE MUÇULMANOS, JUDEUS E CRISTÃOS E AS ORIGENS DO TERRORISMO

Autor: Ali Kamel

Editora: Nova Fronteira

Quanto: R$ 34,90 (320 págs.)

Avaliação: bom’

TELEVISÃO
Marcelo Bartolomei

Novela das oito da Globo terá deputado honesto

‘A próxima novela das oito da Globo, ‘Duas Caras’, que estréia no dia 1º de outubro, terá um político honesto. É a maneira que o dramaturgo Aguinaldo Silva, 63, encontrou para criticar os sucessivos escândalos de corrupção que têm acontecido no país. ‘Ele coloca a ética e a moralidade acima de tudo, não é purista, demagogo nem corrupto.’

Em ‘Senhora do Destino’ (2004), sua última novela -que teve a maior audiência da história-, um prefeito corrupto foi apedrejado no final.

O político de ‘Duas Caras’, cuja trama também inclui golpes de um estelionatário que faz cirurgias para mudar de fisionomia, será o deputado federal Narciso Telerman, vivido por Marcos Winter.

O ator, que é engajado politicamente e tem uma ONG de direitos humanos, ainda não teve muito contato com o personagem, mas diz ter esperanças na vida real. ‘Ainda quero apertar a mão de um grande presidente do Brasil, se é que ele já nasceu’, diz. ‘Achamos que o Lula mexeria onde deveria, mas não foi bem assim.’

Winter acha difícil fazer comparações entre realidade e ficção, mas afirma que os honestos existem, embora muitos entrem na política por ver a possibilidade ‘crescer na vida e se dar bem’.

O autor diz estar frustrado com a política e com a violência. Nos últimos anos, tem passado algumas temporadas em Portugal, para onde pretende se mudar e até mesmo escrever uma novela.

Ele admite que pensou em abandonar a carreira durante uma crise pessoal e que, por conta disso, trocou a narrativa fantástica, vista em novelas como ‘Pedra sobre Pedra’ (1992), pelo realismo. Ex-repórter policial, Aguinaldo Silva guarda jornais para escrever suas peças de ficção.

‘Um político honesto é praticamente um peixe voador. Isso é realismo fantástico’, brinca. ‘As pessoas podem dizer que isso não existe, mas eu digo que, se não existe, deveria.’

Outros dois personagens não mudarão de personalidade na novela, além do político: um pastor evangélico e uma mãe-de-santo. ‘No meio de todas as perversões, o Aguinaldo pensa em personagens que têm saída’, comenta Wolf Maya, diretor-geral da produção.

TELEVISÃO: MORTE DE TAÍS EM ‘PARAÍSO TROPICAL’ NÃO ELEVA IBOPE

A exibição da cena em que a gêmea má Taís (Alessandra Negrini) aparece morta, que vai desencadear o ‘quem matou’ final de ‘Paraíso Tropical’, não alavancou o ibope da novela. O capítulo da última quinta-feira manteve os habituais 46 pontos de média, com pico de 49 pontos.’

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Folha de S. Paulo – 1

Folha de S. Paulo – 2

O Estado de S. Paulo – 1

O Estado de S. Paulo – 2

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