Thursday, 14 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Grande mídia apóia ditadura do capital

Só não vê quem não quer. Como é o caso da grande mídia. A ditadura do capital financeiro tomou conta do Congresso. A paralisia legislativa é o seu discurso expresso em medidas provisórias. É a sua contra-face. O governo endividado, ao longo da Nova República, detonada pela crise monetária dos anos de 1980, da qual não recuperou até hoje, subordinou-se, completamente, ao mandamento número um dos credores, de que todo sacrifício deve ser feito, em primeiro lugar, para pagar os juros da dívida. Como se trata de uma tese polêmica, que gera antítese, que teria que ser resolvida no plano democrático autêntico, a fim de produzir a síntese, o melhor, mesmo, é evitar a democracia, no desenvolvimento dos seus próprios limites. Algo que as MPs fazem à perfeição, por enquanto.

Salvo o pagamento dos juros, todas as demais despesas, se for necessário, devem ser contingenciadas, para que aquela prioridade número um possa ser atendida. Qualquer menção ao assunto, a grande mídia desperta para denunciar perigos de calote. Constitucionalmente, esse status quo está estabelecido pelo artigo 166, parágrafo terceiro, item II, letra b, da CF, cujo autor intelectual, segundo os professores Adriano Benayon e Pedro Resernde, da Universidade de Brasília, é o atual ministro da Defesa, Nelson Jobim. Sua missão foi tornar pétrea a verdade do capital de que todos os demais itens orçamentários podem ser contingenciados, menos o pagamento dos serviços da dívida. Engessamento constitucional, diante do qual o mundo midiático conservador silencia. Nem sequer dá espaço para os ex-pefelistas, agora no Democratas, que resolveram assustar os banqueiros, destacando que se houver uma redução de 0,95% na taxa básica Selic, o governo economizaria R$ 15 bilhões, suficientes para sustentar o programa Bolsa Família, sem necessitar de manter a CPMF. O Democratas teria, aos olhos da grande mídia, se transformado em caloteiro?

Constituinte exclusiva

O uso do cachimbo deixou bocas tortas. De um lado, o Executivo, subordinado aos credores, despacha para o Congresso as medidas provisórias. De outro, as MPs, quando chegam ao Congresso, bloqueiam o debate amplo com a sociedade. Tudo tem que rolar rápido, porque as finanças debilitadas, expressas na dívida pública interna – que é a dívida externa internalizada – tocada ao juro real mais alto do planeta, não suportam o antagonismo social.

Os partidos precisam apodrecer, para que as posições sociais antagônicas não passem democraticamente no interior deles, oxigenando a discussão da realidade nacional. Cumpre às organizações partidárias apenas escolher aqueles que, futuramente, serão alvos de investigações nas CPIs dos mensalões, dos sanguessugas etc., pois chegam no Congresso propensos a dar custo negativo às suas sujas folhas corridas político-partidárias. Quem são os culpados pela infidelidade? Os políticos? Os eleitores que não sabem votar? Ou os partidos que escolhem os meliantes, indicando-os ao eleitorado? A governança provisória instaurada pelas MPs cria os desajustes que depois são discutidos como se suas causas não fossem decorrentes de tal governança mas de si mesmos, congenitamente defeituosos, como frutos de geração espontânea. O mote da corrupção, a subordinação do Executivo às MPs, que impõem sua centralização ditatorial sobre a heterogeneidade congressual, jamais é questionado em sua essência, emergindo, tão somente, a aparência.

A doença espalhou para os governos estaduais. As assembléias legislativas delegam – lei delegada – aos governadores a ação de governar. Ou seja, a lei delegada, no plano estadual e distrital, é repeteco das medidas provisórias. O país da democracia provisória é a mais conveniente situação adequada aos interesses do capital financeiro que, na sua fase atual de sobreacumulação sem limites, toca pra frente a monopolização e a oligopolização econômica. A Constituinte exclusiva, que o vice-presidente José Alencar Gomes da Silva defendeu na semana passada, sem grande repercussão midiática, seria a salvação, para fazer as reformas, capaz de romper o imobilismo estabelecido pelas MPs, que favorecem o sistema financeiro, ou teria objetivo oculto de viabilizar o terceiro mandato lulista?

Saudades de Montesquieu

A grande mídia, que se transformou em grande oligopólio, dada a uniformização do seu pensamento, focado para justificar, ideologicamente, a lógica da oligopolização que a prática da governança provisória favorece, na medida em que impede, no Congresso, o debate público sobre tal processo, é a primeira a bater palmas, porque, se criticasse, perderia anúncios, entraria em recessão por falta de demanda para a sua oferta.

O engessamento constitucional-financeiro da NPEP – Nova República Eternamente Provisória – confunde os comentaristas políticos e econômicos, porque não fazem a ligação da podridão ética congressual com a prática da governança provisória anti-democrática, já que, na fase atual da superacumulação do capital na esfera financeira, a prática democrática tornou-se desinteressante para o capital financeiro, na sua luta para sobrepor-se ao capital produtivo, especialmente nas economias capitalistas retardatárias. O avanço democrático, que nasce da controvérsia e segue adiante com a contradição tendente a ser superada pelo choque dos antagonismo de classe, os quais são refletidos nos partidos, bate de frente com a situação anti-democrática produzida pelo neorepublicanismo provisório. Seu objetivo é negar a realidade, a fim de fazer valer os interesses ligados ao processo de sobreacumulação de capital financeiro, em detrimento do conjunto da sociedade.

A grande mídia vive seu drama de consciência e os seus comentaristas entram em crise existencial. Gaudêncio Torquato, cientista político, no Estadão (21/10), em ‘A ruína moral da Nação’, mostra-se nostálgico em relação ao sistema imaginado por Montesquieu – o equilíbrio entre os poderes executivo, legislativo e judiciário no ambiente da democracia capitalista –, mas não destaca que o abastardamento, no Brasil, da pregação montesquieuniana, decorre da explosão da contradição entre superestrutura jurídica que o sistema imaginado pelo filósofo francês constrói e a efetiva organização da produção, que promove crescente exclusão social, cuja sustentabilidade, para se manter, requer governança provisória, apoiada pela grande mídia. Tal postura midiática é fundamental à preservação dos interesses financeiros, cujos efeitos são expansão da corrupção e desmoralização completa dos poderes republicanos. Torquato bate nos efeitos mas esquece as causas.

Ser inútil para mostrar-se útil

Os editoriais e os comentaristas – que comentam de forma semelhante aos editoriais, demonstrando que ambos vestem a mesma camisa, pois pulam de um campo para outro com elegância e ritmo – estão mergulhados em suas contradições dentro de uma areia movediça porque vêem o desenvolvimento da política separado da economia. Negam-se a interpretar a governança provisória como resultado natural da opção governamental por cumprir fielmente o artigo 166 da Constituição, destinado a privilegiar um setor, o financeiro, em detrimento dos demais, demonstrando que, em sua origem, a Nova República age de forma anti-democrática. A equidade está, intrinsecamente, fora de suas considerações. Essencialmente, é inconstitucional na prática de sua constitucionalidade. Nega a pregação de Tancredo Neves, que disse que não pagaria a dívida com o empobrecimento da sociedade. O que têm feito os governos neorepublicanos senão exatamente isso, com o aplauso da grande mídia?

Como, nos comentários dos áulicos do status quo, a realidade é separada do seu conteúdo e o conteúdo isolado da sua realidade, na aparência, no campo da economia, como no da política, ambos vistos como estranhos um ao outro, como conveniência para a eternização da governança provisória, o resultado não é outro senão um falso moralismo apodrecido. São seres cindidos, que se negam a ver a realidade em seu movimento dual, interativo, dialético. Subordinam-se ao mecanicismo, mesmo, talvez, sabendo do que disse Descartes a propósito do seu próprio cartesianismo mecanicista: a mecânica é uma ciência construída fora da realidade.

Os editoriais da grande mídia e seus comentaristas, salvo honrosas exceções, estão, sob a governança provisória, vivendo no mundo da lua. É nessa condição especial, de viajar na maionese, que melhor servem à ditadura do capital financeiro. Em tal mundo da imaginação se tornam úteis. Integram-se, dessa forma, como perfeito figurino, à ideologia maior do capitalismo: o utilitarismo. Ser inútil para mostrar-se útil, eis a principal utilidade da grande mídia na fase atual do capitalismo financeiro, que evita, via MPs, a emergência do antagonismo, para destruir os setores produtivos, nos quais o capital fianceiramente sobreacumulado não consegue mais se reproduzir, necessitando da especulação como oxigênio indispensável.

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Jornalista, Brasília, DF