A batalha em torno do Ministério da Cultura (MinC) ecoa a guerra que se desenrola ao redor do mundo sobre a propriedade intelectual. O clima tenso no ministério, que levou fontes ligadas ao MinC a falar ao Valor em ‘luta pela sobrevivência’, dá sequência a conflitos que surgiram em todos os países onde a legislação de direitos intelectuais foi posta em questão. Segundo Vítor Ortiz, secretário-executivo do Ministério da Cultura, a celeuma quanto à nova gestão do MinC sob a ministra Ana de Hollanda e, em particular, a reforma da lei de direitos autorais, foi insuflada por radicalismos no meio digital, Twitter em particular, e não corresponde à vontade da ministra de manter ‘uma posição mais magnânima e aberta ao debate’. Porém, o debate da propriedade intelectual não costuma ser magnânimo.
Nos EUA, na Europa e em outros países, legisladores sofrem pressões restritivas e liberalizantes. De um lado, corporações da indústria cultural, como a MPAA (Associação Cinematográfica da América) nos EUA, e a Sacem (Sociedade dos Autores, Compositores e Editores de Música) na França, exigem o reforço das penalidades para quem contorna medidas de bloqueio à cópia eletrônica, como a DRM (Gestão Digital de Direitos). De outro, bibliotecas, artistas digitais e universidades pedem a legalização de práticas que, embora corriqueiras, não são contempladas pela lei.
O impasse da cultura eletrônica suscitou iniciativas de diversos matizes. Os exemplos mais vistosos são de repressão a usuários que infrinjam as regras vigentes. O mais recente foi a lei francesa Hadopi, de combate à transferência não autorizada de arquivos, adotada em 2009. Nos EUA, a já rigorosa lei de 1998, chamada ‘Digital Millenium Copyright Act’, ganhou em 2007 artigos pelos quais usuários que praticam engenharia reversa de software, um procedimento pelo qual o código de funcionamento é descoberto, podem ter seus computadores apreendidos.
O selo da Creative Commons
Também há países que introduziram dispositivos para flexibilizar o uso de obras protegidas. A nova lei chilena, implantada em 2010, ‘não só oferece um quadro flexível para usuários, mas também para criadores’, diz o advogado Alberto Cerda, da Universidad de Chile. ‘A lei define exceções que dão agilidade ao processo criativo. Primeiro, nas citações, fundamentais para a academia e o mercado editorial. Segundo, para a colagem e o mash-up, relevantes nas artes visuais. Enfim, na engenharia reversa, essencial para desenvolvedores de software.’
O cartaz de Obama feito pelo artista Shepard Fairey é a imagem mais lembrada da campanha eleitoral americana de 2008 e rendeu um processo contra o artista.
A disputa brasileira está centrada no anteprojeto de reforma da Lei de Direitos Autorais (9610/98), preparado na gestão de Juca Ferreira no MinC, durante o governo Lula, e enviado no fim de 2010 para a Casa Civil. O novo ministério, conduzido por Ana de Hollanda, trouxe o anteprojeto de volta para o MinC para nova análise. Para Ortiz, ‘a tramitação foi lenta. O anteprojeto só foi para a Casa Civil no fim de dezembro, quando já se sabia que haveria uma nova ministra’.
Embora o anteprojeto tenha sido tocado por meio de uma consulta pública e uma série de seminários nacionais e internacionais entre 2007 e 2010, o tema ultrapassou o universo de especialistas no início deste ano, graças a um detalhe no rodapé do site do Ministério da Cultura. Ali figurou, nas gestões de Gilberto Gil e Juca Ferreira, um selo da licença Creative Commons. Agora, vê-se apenas a autorização do ministério para reproduzir os textos do site. A retirada gerou protestos de ativistas digitais, do antropólogo Hermano Vianna e do líder do PT na Câmara dos Deputados, Paulo Teixeira (SP). A ministra justificou a atitude dizendo que o licenciamento já é previsto pela lei brasileira e não necessita de uma iniciativa em particular. Vítor Ortiz, lembrando que a ONG Creative Commons é uma iniciativa privada, argumenta que o selo não poderia estar no site de um órgão do governo sem um debate público prévio.
Padrão aberto indica mais flexibilidade
Especialistas em propriedade intelectual não concordam que seja redundante fazer uso de um sistema específico, como é o caso do Creative Commons, para organizar a circulação de criações. O advogado Pedro Paranaguá, da Universidade Duke, nos EUA, ressalta que, embora o licenciamento esteja previsto na lei, ‘para que ocorra, é preciso dizê-lo expressamente. Sem licença ou contrato, todos os direitos ficam reservados’.
Em novembro, a vice-presidente da Agenda Digital da Comissão Europeia, Neelie Kroes, traçou uma linha histórica de revoluções culturais e econômicas: a primeira foi a invenção da imprensa por Johannes Gutenberg, no século 15; a segunda, a Revolução Industrial, no século 18; a terceira é a ‘revolução das tecnologias da informação e da comunicação’. A Comissão Europeia mantém uma pesquisa pública sobre eventuais reformas legislativas para adequar seu sistema de proteção à propriedade intelectual na ‘sociedade da informação’. As pressões para reformar a legislação surgem da necessidade de estabelecer um ambiente legal e econômico confortável para práticas criativas que permeiam a indústria cultural. Francis Gurry, diretor-geral da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (Ompi), reconhece que a questão atravessa campos tão diversos quanto o econômico, o jurídico, o artístico e o tecnológico. Por isso, resume-o como um impasse. ‘Como a sociedade pode tornar as obras disponíveis a preço acessível e também assegurar a existência econômica digna aos criadores e intérpretes?’, questionou em evento internacional.
Existem outros sistemas de licenças como o Creative Commons, mas a iniciativa de Lawrence Lessig, da Universidade Harvard, é a mais empregada por jovens criadores em todo o mundo. O motivo é a clareza com que define diversos tipos de licença, facilitando a escolha. ‘A vantagem das licenças Creative Commons é que são conhecidas mundo afora. Formam um padrão adaptado para cada ordenamento jurídico, têm sido reconhecidas por tribunais em diversos países e facilitam a vida de todos’, diz Paranaguá. O advogado Luiz Henrique Souza, do escritório PPP, especializado em propriedade intelectual, afirma que ‘a adoção dessa licença por órgãos do governo representa a promoção do padrão de licenças permissivas’. Se o momento é de reforma da lei que trata de propriedade intelectual, a adoção de um padrão aberto indica que o governo está mais inclinado para a flexibilidade do que para o recrudescimento.
A economia criativa
A celeuma das licenças Creative Commons resulta mais de sua simbologia que de seus efeitos sobre a arrecadação de direitos autorais. Os usuários de licenças abertas negam que queiram abrir mão desses direitos. Artistas jovens enxergam na flexibilização uma oportunidade de difusão de seu trabalho. Os caminhos oferecidos pelo mercado tradicional lhes parecem lentos e difíceis, mas a divulgação livre, ou parcialmente livre, de obras na internet se revela um meio mais eficaz e simples de atingir o público. ‘Deixar a música na internet foi fundamental para ficarmos conhecidos’, explica Vicente Machado, baterista da banda pernambucana Mombojó. ‘Nosso primeiro disco teve 2 mil cópias. Elas não chegaram muito longe, mas, pela internet, a música se espalhou pelo Brasil todo. Quando íamos tocar em algum lugar, as pessoas conheciam as músicas porque copiaram da internet.’ O formato aberto da distribuição não significa, porém, que os músicos abdiquem da receita dos direitos autorais, particularmente nas execuções de rádio. ‘Às vezes entramos no sistema do Ecad [Escritório Central de Arrecadação] e, se tem algum dinheiro, é uma surpresa boa.’ O Ecad vê nas emissoras de rádio a maior fonte de desrespeito aos direitos autorais e desenvolveu com a PUC-RJ um sistema digital de monitoramento.
O exemplo da banda pernambucana ilustra o impasse de Francis Gurry. Os papéis do autor, do editor e do receptor se tornam menos evidentes quando, de um lado, o criador tem o poder de editar por conta própria e, de outro, o público encontra o que busca com muita facilidade, sem passar por um mercado que regule os fluxos. ‘Todos os membros da banda estão na faixa dos 24 aos 28 anos. Crescemos cercados pela internet, nada mais natural do que colocar nossa música online’, explica o músico.
Para o advogado Peter Jaszi, da Universidade de Washington, o desafio da indústria cultural é reformular modelos de negócios estabelecidos sobre a criatividade. Se os suportes – livros, discos, fitas etc. – aproximavam os bens imateriais do regime material, o mesmo não vale para arquivos como os que circulam em computadores e outros aparelhos. ‘Os livros eletrônicos têm funcionado como modelo. Os editores foram agressivos ao fazer a transição, porque receberam ajuda da Amazon [livraria virtual que lançou o leitor Kindle]. No caso do programa iTunes [de transferência de arquivos musicais], o resultado segue em aberto. As gravadoras têm conduzido muito mal seus negócios. Para os usuários, elas perderam o contato com o que as pessoas querem escutar’, explica Jaszi.
A economia criativa – conceito que engloba as atividades que sobrevivem da propriedade intelectual – é o território em disputa na guerra que chegou ao MinC em 2011. Segundo a OECD (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), as indústrias criativas movimentam US$ 3 trilhões no mundo. Em 2008, a Firjan (Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro) divulgou que o setor representa cerca de 16,4% do PIB brasileiro. A ministra Ana de Hollanda anunciou a criação de uma Secretaria de Economia Criativa, a ser comandada pela ex-secretária de Cultura do Ceará, Cláudia Leitão.
‘Todo o conhecimento em um único lugar’
Segundo Vítor Ortiz, a Diretoria de Direitos Intelectuais, que será assumida pela advogada Márcia Regina Barbosa, ficará subordinada à nova Secretaria. Ortiz diz que caberão à diretora as ‘possíveis mudanças’ na lei de direitos autorais. Ativistas da cultura digital argumentam que Márcia Regina tem um histórico de proximidade com o Ecad, parte interessada na questão – para o escritório, a lei atual não precisa de reforma porque ‘é uma das mais modernas e completas do mundo, com pouco mais de dez anos de existência’, segundo sua superintendente-executiva, Gloria Braga. Ortiz nega que Márcia Regina seja próxima ao Ecad. Nos anos 1980, a advogada pertencia ao Conselho Nacional de Direitos Autorais, órgão federal extinto no governo Collor.
Assim como o Ecad, outras entidades se opõem ao anteprojeto desenvolvido pelo MinC até 2010. Sônia Machado Jardim, presidente do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Snel), considera ‘afoita’ qualquer modificação de uma lei ‘sem um amplo e profundo debate’ porque os tribunais estaduais ainda estão desenvolvendo os mecanismos de interpretação dos dispositivos legais. O sindicato acrescentou à sua pesquisa anual sobre produção e venda de livros no país um questionário sobre a penetração do livro digital no mercado.
A fusão dos universos material e digital está na pauta das discussões em todo o mundo. Neelie Kroes chegou a dizer que a tecnologia digital ‘torna realidade o sonho renascentista de Pico della Mirandola: todo o conhecimento em um único lugar’. Em seguida, arrematou: ‘Assim como o cinema não matou o teatro e a televisão não matou o rádio, a internet não vai matar nenhuma outra mídia.’ Falando especificamente de direitos autorais, Neelie não deixou espaço para dúvidas. ‘Por 200 anos, eles se revelaram uma forma poderosa de remunerar nossos artistas e construir nossas indústrias criativas. Mas não são um fim em si mesmos. É preciso garantir que funcionem como tijolos para construirmos, não pedras para tropeçarmos.’
Merchandising clandestino
Para Jaszi, iniciativas repressivas são fruto do aspecto estritamente econômico da questão. ‘O que atinge as corporações não são as técnicas digitais em geral, mas usos particulares. Entretanto, quando uma indústria diz `estamos perdendo dinheiro´, logo isso é traduzido para `estamos perdendo empregos´, o que impacta a economia e a política como um todo. Frases marcantes têm um efeito forte sobre os políticos’, afirma.
Além da tecnologia digital, práticas artísticas também põem sob pressão a forma tradicional de lidar com a autoria. Uma exposição do fotógrafo e advogado Eduardo Muylaert em São Paulo explora uma área de fronteira autoral. Em cartaz na galeria Fauna, ‘As Mulheres dos Outros’ exibe reproduções de fotografias compradas na feira de antiguidades do Museu de Arte de São Paulo (Masp). O artista conta que encontrou as imagens dos anos 1950 em péssimo estado. Fotógrafos e modelos eram anônimos. A exposição consiste em ampliações que realçam os efeitos do tempo e da má conservação.
Segundo uma leitura possível da lei atual, a exposição seria considerada ofensiva aos direitos autorais dos fotógrafos de 60 anos atrás, que não foram consultados quanto ao uso de seu trabalho nem serão pagos. No entanto, a iniciativa do fotógrafo é corrente entre criadores que, na linha de Andy Warhol e Jean-Luc Godard, em vez de criar imagens, retrabalham a infinidade de imagens já disponíveis. Como advogado, Muylaert estava ciente do possível impasse jurídico. Apoiou-se sobre o oitavo parágrafo do artigo 46 da lei atual, que permite a reprodução de ‘pequenos trechos’ de obras preexistentes quando não houver ‘prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores’. ‘Sinto que meu trabalho é legítimo com base nesses artigos’, afirma o artista, que também se muniu de um arsenal teórico para sustentar seu argumento. São textos de Roland Barthes, Gérard Genette, Douglas Crimp, Richard Misrach e outros.
Juristas que se debruçam sobre o assunto não consideram os artigos citados por Muylaert tão seguros. Para Guilherme Varella, do Idec (Instituto de Defesa do Consumidor), a lei autoral brasileira está entre as mais restritivas do mundo e o trecho em questão deixa em aberto o sentido de ‘pequeno trecho’, ‘exploração normal’ e ‘prejuízo injustificado’. O resultado é uma incerteza jurídica desnecessária. Um dos objetivos da nova lei autoral seria resolver impasses como esse. As fotografias garimpadas por Muylaert seriam ‘obras órfãs’, isto é, cujo autor é desconhecido ou não pode ser encontrado. Para casos assim, seriam concedidas ‘licenças não voluntárias’. Os direitos econômicos seriam recolhidos em juízo, mas os morais seriam dispensados temporariamente. O mesmo procedimento se aplicaria a marchinhas de carnaval da década de 1930 de que não se conhece o autor.
No plano internacional, encerrou-se em janeiro um caso judicial emblemático das tensões sobre o direito autoral. A agência Associated Press (AP) e o artista plástico americano Shepard Fairey anunciaram um acordo extrajudicial que pôs fim a uma disputa iniciada em 2008. O objeto do desentendimento foi um dos ícones mais conhecidos do século 21: o pôster de Barack Obama com a palavra ‘Hope’ (esperança). A imagem original foi realizada em 2006 pelo fotógrafo Manny Garcia, contratado pela AP. Fairey copiou a imagem, pintou-a novamente e a imprimiu em grande escala. Mais tarde, quando a imagem já tinha se tornado um dos símbolos do processo eleitoral americano, passou a aparecer reproduzida em camisetas e souvenires. Ou seja, entrou pela porta dos fundos no mundo comercial.
Na declaração oficial emitida por Fairey e pela AP, as duas partes afirmaram que não abriam mão de suas perspectivas. A agência sustentava que o artista tinha infringido as leis americanas de copyright. Fairey manteve sua avaliação de que seu caso entrava na categoria de fair use, um regime indeterminado de exceções às restrições de cópia. O artista e a agência decidiram explorar juntos as possibilidades econômicas da obra, isto é, o merchandising que vinha sendo feito clandestinamente por fabricantes de camisetas e suvenires em todo o mundo.
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Jornalista