O Holocausto, até agora não deu samba, mas já produziu duas comédias extraordinárias, comoventes (La Vita è Bella, de Roberto Benigni e Train of Life, de Radu Mihaileanu, de 1997 e 1998, respectivamente).
Antes de exibidas provocaram reações indignadas das comunidades judaicas do mundo inteiro. A qualidade artística de ambas, a mágica de manter juntos o riso e a lembrança da dor, calou os inconformados e intolerantes. Uma década depois, ninguém fala em desrespeito ao luto.
O filme A Queda, sobre os últimos dias de Hitler no bunker em Berlim, também foi precedido de críticas às tentativas de humanizar a besta. Depois verificou-se a sua inestimável contribuição para retratar as deformações mentais produzidas pelo nazi-fascismo.
O carro alegórico da Escola de Samba Viradouro (Rio) sobre o Holocausto dos judeus na Segunda Guerra Mundial dentro do enredo ‘É de arrepiar’ converteu-se numa ode à insensatez, à qual a mídia ofereceu significativa contribuição.
O episódio começou de forma civilizada. O carnavalesco Paulo Barros procurou a Federação Israelita do Rio de Janeiro (Fierj) para explicar a sua idéia e garantir a sobriedade da sua criação. Não haveria mulatas, alegria, ziriguidum. As conversas prosseguiram neste nível e tudo indicava um desfecho consensual. Até a mídia entrar em ação por intermédio do colunista Adriano Silva (Época, edição 506, pág.110).
Seu artigo ‘Ninguém deve censurar o Carnaval’, aparentemente bem-intencionado, porém tomado por aquela indignação fácil que hoje domina nossa mídia (nela compreendidos os mediados), contém uma coleção de atrocidades que provocou extremada reação de certas alas da Fierj. A justiça foi acionada, embargou o carro alegórico e Paulo Barros fez exatamente aquilo que se espera de quem é vítima de uma censura: driblou-a. Substituiu a alegoria contra o Holocausto numa alegoria a favor da liberdade de expressão.
Enredo ousado
O que escreveu o colunista de ‘Época’?
**
‘Os judeus não são os donos do Holocausto.’ – Correto: dono do Holocausto é o nazifascismo e seus diferentes subprodutos que continuam espalhando o ódio racial e religioso em todos os quadrantes do mundo.Os judeus são as maiores vítimas do Holocausto. Nesta condição, os judeus – observantes ou seculares, ortodoxos ou agnósticos, sionistas ou internacionalistas, de direita ou de esquerda – têm o direito e o dever moral, como seres humanos atingidos pelo sofrimento, de reagir às tentativas de negar, minimizar ou ridicularizar a catástrofe que atingiu suas famílias. Foi esta compreensão que levou Paulo Barros à Fierj.
**
‘Quem tem de decidir se o Holocausto pode ser tema de desfile são os carnavalescos, não a Federação Israelita.’ – Errado: os carnavalescos não têm legitimidade para representar a sociedade. Sua criatividade como artistas não pode colocá-los na contramão dos sentimentos gerais. Sobretudo porque um enredo de escola de samba não é obra individual, mas coletiva, montada (teoricamente) à custa do município. O carnavalesco Paulo Barros compreendeu isso de forma nobre, superior. Já o jornalista optou pela retórica fácil do trombone.**
‘Ninguém deve censurar o Carnaval’ (título do artigo) – A afirmação será validada no dia em que um carnavalesco ousar um enredo sobre a íntima relação de contravenção, corrupção e narcotráfico. Até lá a liberdade de expressão dos carnavalescos ficará no plano ideal.Dá samba
Quanto este observador soube da alegoria da Viradouro imaginou que nós, brasileiros, mais uma vez encontraríamos uma forma engenhosa, consensual e criativa de contornar eventuais divergências. Quando leu o texto de Época achou-o carente da indispensável delicadeza que o tema e a situação exigiam.
Este observador não se considera dono do Holocausto, é um dos enlutados por esta incomensurável violência. Perdeu na Ucrânia, em 13 de julho de 1942, cerca de 20 parentes de primeiro grau (avó paterna, tios e primos), 30 ou 40 no total, se computados parentes um pouco mais distantes. Não se revoltou contra a alegoria.
Já os radicais da Fierj leram o texto de Época como se fosse um desafio do carnavalesco Paulo Barros. O resultado é conhecido. O Holocausto vai dar samba.