No oitavo programa especial em comemoração aos 15 anos do Observatório da Imprensa na TV Brasil (02/07), Alberto Dines entrevistou o ministro Carlos Ayres Britto (vídeo aqui), que foi presidente do Supremo Tribunal Federal (STF). Nomeado ministro pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2003, foi eleito em de abril de 2012 para exercer a presidência do STF no biênio de 2012-2014. Aposentou-se compulsoriamente em novembro de 2012. É doutor em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. O ministro foi professor em diversas universidades, publicou quatro livros, dezenas de artigos jurídicos e realizou conferências e palestras no país e no exterior. É membro da Academia Sergipana de Letras e publicou seis livros de poesia entre 1980 e 2005.
Defensor da quebra de paradigmas e da abertura de novos horizontes no plano das ideias, Carlos Ayres Britto comandou o STF em processos históricos, como o da Ação Penal 470, a interrupção da gestação de fetos anencéfalos e a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Durante os nove anos em que foi ministro do STF, o Supremo discutiu a utilização de células-tronco embrionárias para a cura de doenças crônicas, o nepotismo, o reconhecimento da união civil entre pessoas do mesmo sexo, a legalidade da Marcha da Maconha, a reserva de vagas de universidade para alunos cotistas e a Lei Seca. A mídia também esteve no foco do Supremo nesses nove anos. O tribunal discutiu a exigência de diploma em Jornalismo para o exercício da profissão, a extinção da Lei de Imprensa, o limite do humor nas eleições e a criação de um conselho para regular a mídia foram temas debatidos na Suprema Corte.
Dines abriu a entrevista perguntando a opinião do ex-presidente do Supremo a respeito das recentes manifestações populares que tomaram o Brasil. E lembrou que, além de poupar o Poder Judiciário de ataques, os protestos defendiam a atuação do Ministério Público, entre outras bandeiras. Para Carlos Ayres Britto, as manifestações vitalizam a democracia, mas é preciso coibir atos de vandalismo, que demonstram péssimo caráter e temperamento. Inimigo de si mesmo, como consequência, o baderneiro é inimigo da sociedade.
“Tem que ser tratado como bandido, não no sentido da tortura ou da agressão física desmedida, desnecessária”, disse o ministro. O entrevistado ressaltou que a autenticidade e a espontaneidade dos movimentos sociais orquestrados nas últimas semanas impressionam, e que a democracia acaba fortalecida com os protestos: “Um povo visivelmente apático no plano cívico, de repente, turbina o seu civismo. Saiu de um polo e foi para o outro. A natureza vai equilibrar funcionalmente as coisas e vamos ter um ponto de convergência”.
Poder fora do palco dos protestos
A Justiça, de acordo com o ex-ministro, é o ponto de unidade possível entre os três poderes da União, uma vez que o Poder Executivo e o Legislativo são contrastantes por excelência. “Assim como a imprensa não pode deixar de dar a primeira palavra sobre as coisas, o Judiciário não pode deixar de dar a última. O Judiciário sempre aparece no imaginário coletivo como essa âncora firme de confiabilidade. Ele é poupado nessas ocasiões. Até porque eventuais excessos ou o próprio questionamento sobre a legitimidade desses movimentos se situam no âmbito da liberdade constitucional de reunião, legítima expressão da autonomia de vontade, que é indissociável da liberdade. Tudo isso afunila para o Judiciário”, explicou o ex-presidente do Supremo.
“A vida concilia dinamismo e estabilidade o tempo todo. Sempre buscando um ponto de unidade. Nós temos mil formas de regular os nossos comportamentos – a moral, a etiqueta, os costumes, as tradições. Cada família tem as suas regras, cada empresa tem as suas regras, mas tudo afunila para o Direito, que é o ponto de unidade. Dentro do Direito há mil leis, regulamentos, decretos, resoluções, medidas provisórias. Tudo afunila para a Constituição, o ponto de unidade dentro do Direito. Dentro da Constituição você tem liberdade, igualdade, fraternidade, Justiça, bem-estar, desenvolvimento, legalidade, transparência, mil valores. Tudo afunila para um valor, que é o ponto de união: a democracia. No âmbito da separação dos três poderes há um ponto de união: o Judiciário”, detalhou Carlos Ayres Britto.
O Projeto de Emenda Constitucional que visava limitar o poder de investigação do Ministério Púbico, conhecido como PEC 37, foi discutido no programa. Na avaliação do ex-ministro, o MP é a instituição que mais tem “dado conta do recado constitucional” que lhe cabe. “Quem nunca roeu a corda é que está sendo enforcado pela PEC 37”, criticou o entrevistado. O ex-presidente do Supremo ressaltou que todo inquérito policial é uma investigação, mas que nem toda investigação é um inquérito policial. Órgãos como tribunais de contas, Banco Central e agências reguladoras também promovem investigações: “É claro que o Ministério Público investiga ao lado da polícia. Uma coisa não briga com a outra”. O MP pode funcionar como órgão de controle da própria polícia, na avaliação de Ayres Britto.
“Todo inquérito policial mantém com as funções do Ministério Público – a denúncia, sobretudo – um vínculo funcional. Você abre o inquérito e encaminha para o MP denunciar ou não. Há um link entre inquérito policial e função ministerial pública. Não há um link necessário entre função ministerial pública e inquérito policial. O MP tanto denuncia a partir de um inquérito como pode denunciar a partir de uma investigação feita por ele mesmo”, explicou.
Mídia uníssona
Dines sublinhou que o ministro Joaquim Barbosa, atual presidente do STF, recentemente fez duras críticas à mídia, sobretudo à falta de pluralismo. Em linhas gerais, Carlos Ayres Britto concorda com as observações do colega. O ex-ministro ressaltou que a Constituição Federal exalta o pluralismo da mídia privada, estatal e pública. “O pluralismo é um elemento conceitual da democracia”, disse. O termo está ligado à cultura do debate e do pensamento crítico e contribui para a circulação da informação de forma holística. O ex-ministro relembrou que a decisão do Supremo favorável à união civil de pessoas do mesmo sexo foi uma homenagem ao pluralismo.
Há um vínculo direto entre a mídia e a sociedade civil e esta ligação não pode ser mediada pelo Estado, na avaliação de Carlos Ayres Britto. Se a imprensa promove injúria, difamação ou calúnia, destroça injustamente a biografia de uma pessoa, irá responder civil e penalmente por seus atos, podendo ser condenada a pagar indenizações. O ex-ministro pontuou que a Constituição reconhece direitos fundamentais à imagem, honra, intimidade e vida privada. Por outro lado, reconhece o direito à informação, à manifestação do pensamento e à expressão artística, científica, intelectual e comunicacional.
“Esses dois são polos contrastantes, tendem a entrar em rota de colisão, a tensionar, friccionar. Disse a Constituição: ‘eu tenho que estabelecer uma primazia, uma precedência’, e ela fez uma opção clara no artigo 220, parágrafo 1º, pela manifestação do pensamento, pela informação, pela expressão latu sensu, que são os conteúdos da liberdade de imprensa”, anotou o ex-presidente do Supremo. O ministro chamou a atenção para o fato de que se a prioridade for invertida, há o risco da censura prévia.
Autorregulação e controle remoto
Não há como controlar externamente a mídia sem ferir os direitos fundamentais, na opinião do ex-presidente do STF. “Em matéria de imprensa, só cabe a autorregulação. E alguns jornais e grupos têm feito isso”, ponderou Carlos Ayres Britto. A sociedade pode exercer algum tipo de controle por meio da seletividade, escolhendo a mídia que seja mais fiel à notícia. “Você pode ler um jornal mais autêntico, mais fidedigno, que não seja temperamental”, propôs o ministro. Para ele, é dever de cada um dos indivíduos colocar a moderação em primeiro plano. “É comprovado que derramamento de bílis não combina com produção de neurônios. E as nossas rugas aumentam para que as nossas rusgas diminuam”, comparou o entrevistado.
Dines relembrou que o ex-ministro chegou a propor que os meios de comunicação e a mídia deveriam se organizar em uma estrutura semelhante ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ). O ministro falou que há iniciativas parecidas no Ministério Público e nos tribunais de contas. “Um Conselho Nacional de Imprensa, concebido, constituído, funcionalizado pelos próprios órgãos de imprensa para evitar os seus excessos, o seu descomedimento, as suas injustiças flagrantes, as suas eventuais crueldades”, recomendou o Ayres Britto.
A iniciativa não pode ser confundida com censura e não poderia haver muita rigidez no controle, para não quebrar a espontaneidade da mídia e a fluência das informações. A ideia do conselho parte do pressuposto de que quem dá a última palavra, que é o Judiciário, tem um poder enorme; e que quem dá a primeira também detém um grande poder. “É evidente que é preciso um controle. Agora, não pode ser externo porque sendo externo é censura nua e crua”, explicou Carlos Ayres Britto. O ministro afirmou que não é complicado colocar em prática a ideia do conselho e sugeriu que seja adotado um autocontrole eficaz e não meramente retórico.
Religião e poder
Dines relembrou que em 2009, quando o Supremo Tribunal Federal decidiu extinguir totalmente a Lei de Imprensa, o ministro defendeu o debate em torno do direito de resposta. Na entrevista, Ayres Britto afirmou que a liberdade de imprensa não é uma “bolha normativa”, um vazio conceitual. Estão inseridos nela a liberdade de informação e de pensamento. Esses fatores são classificados pelo ministro como “relações nucleares da imprensa”, mas há também as que são periféricas, como o direito de resposta e de indenização. “Tudo pode ser objeto de lei. O núcleo duro é que não pode”, argumentou o ex-ministro.
Dines levantou a questão da laicidade do Estado diante da venda de horário da programação de emissoras – que são concessões públicas – a confissões religiosas. Ayres Britto contou que há uma causa tramitando no Supremo que pode coibir essa prática. Em 2008, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva firmou um acordo bilateral com a Santa Sé que, entre outros temas, tratava do ensino religioso em escolas públicas. Em seguida, o Supremo foi questionado se o Estado pode favorecer alguma confissão no espaço público.
De acordo com o ex-ministro, todo Estado republicano é secular, mas o Estado brasileiro não é antirreligioso O nome de Deus está no preâmbulo da Constituição. “Religião é religação da criatura ao criador. É esse direito que todo o mundo tem de ser crente, de acreditar em uma vida espiritual, em uma transcendência etérea, celestial”, disse Carlos Ayres Britto. O Estado, na sua opinião, confunde religiosidade com confessionalidade: “O Estado não pode favorecer nenhuma confissão, seita, religião como entidade. Religião como ideia é uma coisa. É uma instituição, uma locomotiva social, inspiradora dos nossos comportamentos que acreditamos em uma outra vida ultraterrena. Agora, religião entidade, religião aparelho, organismo, pessoa jurídica, é outra coisa. O Estado não tem que favorecer”. A Constituição permite colaboração, mas não favorecimento, como transferir dinheiro direta ou indiretamente para igrejas.
Carlos Ayres Britto ressaltou que é preocupante a concentração de poder político e religioso. “Parece que o mundo caminha para uma crise das mediações, das representações. Você não pode se comunicar direto com Deus porque vem uma igreja e quer fazer a mediação. Você não pode comprar diretamente do produtor porque vem o intermediário”, comparou. O ex-presidente do Supremo disse que apesar de acreditar em Deus, deixou de ser católico: “Eu quero uma linha direta do meu coração com aquilo que eu acredito que seja Deus. A figura do intermediário eu estou eliminando da minha vida. No que eu puder fazer isso, eu farei”.
Já no campo da política não é possível eliminar a intermediação, porque o Parlamento continuará sendo o “nervo e a carne da democracia”. Para Carlos Ayres Britto, a Casa do Povo precisa “tomar tento” e compreender que tem que cumprir o seu papel com eficácia, sob o risco de o povo pedir a extinção do Parlamento, o que seria péssimo para a democracia. Os recentes protestos, na avaliação do ex-presidente do Supremo, exemplificam o processo de eliminação dos representantes na sociedade. “É a protagonização direta da cidadania. O cidadão cansou da insinceridade e da ineficiência crônica das instituições”, disse.