Uma disputa de mercado, sem que os verdadeiros propósitos dos protagonistas sejam explicitados. Assim as emissoras de radiodifusão e as empresas de telecomunicações rivalizam no Congresso Nacional pela regulamentação de um setor que vive ancorado em uma legislação fragmentada e cada vez mais anacrônica diante da convergência tecnológica. Na contramão dos países desenvolvidos, o Brasil não apenas consagra em suas leis interesses particulares casuístas como insiste em protelar a discussão a respeito de uma legislação ampla para as telecomunicações, que englobe a radiodifusão e garanta a democratização das comunicações no país. Nesse contexto, o suposto conflito entre os empresários é apenas a ponta de um enorme iceberg que envolve bilhões de reais.
À luz dos holofotes da imprensa, a Abert (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão) diz defender a cultura nacional ao se negar a aceitar a participação de capital estrangeiro na produção de conteúdos audiovisuais. Enquanto isso, as empresas de telefonia expandem seu acesso à casa de milhões de pessoas, tendo a possibilidade de disponibilizar conteúdo e se aproveitar da convergência tecnológica. E os fatos: segundo dados da Telebrasil (Associação Brasileira de Telecomunicações), o faturamento das empresas de telefonia atingiu em 2006 a casa dos R$ 140 bilhões, enquanto o das emissoras de rádio e TV aberta girava em torno de R$ 10 bi.
Contra o ímpeto das empresas de radiodifusão em continuar controlando o que os brasileiros assistem, o poder econômico das teles chama a atenção pelo seu alto poder de investimento também na TV a cabo. Hoje, por exemplo, a mexicana Telmex – que controla a Embratel – é sócia da Rede Globo na operadora de TV a cabo Net, e a espanhola Telefônica acaba de comprar a maior parte das operações da TVA.
Leis anacrônicas
A Emenda Constitucional 08, aprovada durante o governo Fernando Henrique Cardoso, em 1995, separou a radiodifusão do restante das telecomunicações, mantendo o rádio e a televisão atrelados ao Código Brasileiro de Telecomunicações (CBT), de 1962, construído basicamente pelos empresários do setor, num dos primeiros acordes da sinfonia golpista executada dois anos depois em conjunto com os militares. Por sua vez, a telefonia passou a ser regulamentada pela Lei Geral de Telecomunicações, de 1997, e a TV a cabo pela chamada Lei do Cabo, de 1995.
Os 45 anos do CBT e a convergência tecnológica sugeririam uma revisão ampla deste arcabouço regulatório e, quando da discussão sobre o modelo para TV digital, no ano passado, parecia haver um consenso entre os diferentes setores (governo, parlamentares, radiodifusores, empresas de telefonia, operadores de cabo e organizações da sociedade civil) sobre a necessidade de instituição de uma nova e ampla legislação para o setor.
Tal consenso, entretanto, pouco durou: interesses econômicos e a pouca (ou nenhuma) vontade do governo em contrariar setores historicamente poderosos têm dificultado qualquer iniciativa nesse sentido. Não à toa, o destino dos projetos de lei que estão sendo analisados hoje na Câmara dos Deputados que tratam das regras para a produção, programação e provimento de conteúdos será mesmo a resignação numa lei que abranja apenas os serviços de comunicação social eletrônica de acesso condicionado – as TVs por assinatura – como já anunciou o deputado Jorge Bittar (PT-RJ), relator dos projetos pela Comissão de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática.
São quatro os projetos atualmente em tramitação na Câmara: o PL 29/07, do deputado Paulo Bornhausen (DEM-SC), que dá às empresas de telefonia o direito de produzir e distribuir conteúdo eletrônico; o PL 70/07, do deputado Nelson Marquezelli (PTB-SP), que tenta garantir que a produção, programação, provimento e comercialização de conteúdo brasileiro sejam reservados a brasileiros natos ou naturalizados; o PL 332/2007, dos deputados Paulo Teixeira (PT/SP) e Walter Pinheiro (PT/BA), uma espécie de ‘mediação’ entre os dois primeiros; e, mais recentemente, o PL 1.908/07, do deputado João Maia (PR-RN), que cria um ‘Serviço de Comunicação Eletrônica de Massa’.
Outros indícios que evidenciam o esforço para adiar ao máximo uma decisão que envolva a radiodifusão foram o lobby dos empresários do setor para que o tema fosse tratado antes na Comissão de Desenvolvimento Econômico (em função da pretensa ligação do deputado Bittar com as empresas de telecomunicações) e a apresentação de novo projeto de lei sobre o tema tramitando no Senado (por meio do senador Flexa Ribeiro, do PSDB). ‘Os donos de emissoras estão tentando ganhar tempo, acumular forças, pois sabem que a convergência é inexorável’, opina o deputado petista, que justifica sua opção por um substitutivo que abranja somente a TV por assinatura em função da ‘correlação de forças’ no Congresso. ‘Há um dispositivo constitucional que separa radiodifusão e telecomunicações, portanto é necessária uma emenda constitucional. Isso significa ter que aprová-la na Câmara e no Senado com maioria qualificada. Acho mais produtivo agora passar este projeto e nos credenciar para, no futuro, discutir a TV aberta’, afirma.
Entretanto, não é o que acredita o pesquisador Murilo César Ramos, coordenador do Laboratório de Políticas Públicas de Comunicação da Universidade de Brasília (Lapcom-UnB). Para ele, propor regulações sem alterar o capítulo sobre comunicação social da Constituição Federal é inócuo. ‘Não adianta construir um novo marco regulatório em cima de uma base podre. A revisão da legislação é mais do que imperativa, mas não antes de uma revisão constitucional’, afirma.
‘Convergência’
O capítulo mais recente desta história foi escrito durante esta semana, na Conferência Nacional Preparatória de Comunicações, em Brasília. O presidente da Anatel – Agência Nacional de Telecomunicações, Ronaldo Sardenberg, afirmou no evento que ‘chegamos a um tempo que pede uma lei abrangente, que reúna várias leis, capazes de contemplarem pela ótica da evolução experimentada, a telefonia fixa e móvel, o rádio e a televisão aberta e fechada, além da internet’. O ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social, Franklin Martins e o próprio ministro das Comunicações, Hélio Costa, também foram no mesmo sentido ao afirmarem que existe um ‘consenso’ entre o governo e o Congresso de que é necessária uma nova regulamentação para o setor.
Quando questionados a respeito, emissoras e empresas de telecom apresentam suas teses a partir de uma pretensa busca em defender o interesse público. O vice-presidente de relações institucionais das Organizações Globo, Evandro Guimarães, por exemplo, chegou a afirmar no mesmo evento, sobre a questão da convergência, que ‘qualquer marco regulatório deve iniciar-se por uma visita ao Capítulo V da Constituição. É isso que deve nos orientar, para que a convergência não se estabeleça como fato consumado, e sim como um projeto para os brasileiros’.
A Telebrasil não tem o mesmo entendimento. Em sua apresentação na Conferência Preparatória, a associação das teles fixas e móveis afirmou que a convergência tecnológica é sim um fato, e ela deve ser vista como um instrumento para a realização de ‘objetivos nacionais’, aproveitando, portanto, as ‘oportunidades de desenvolvimento do mercado’. Ou seja, propõe que a abertura do mercado para a produção de conteúdo deva ser uma política para o próximo período.
Nessa disputa, duas coisas parecem se consolidar. De um lado, o poder de influência das emissoras no Congresso. De outro, o crescente poder econômico das empresas de telecomunicações, que vai progressivamente também se transformando em poder político. E, entre um e outro, os parlamentares brasileiros parecem que vão, uma vez mais, acomodar interesses privados, esquecendo-se que sua principal tarefa como representantes dos brasileiros é a discussão e aprovação de uma nova lei geral para as comunicações.
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Do Observatório do Direito à Comunicação