Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Inversão de pauta

Ao utilizar as redes sociais para divulgar a mensagem do governo aos trabalhadores no dia 1º de maio, a presidente Dilma Rousseff quebrou uma tradição de, pelo menos, 80 anos no Brasil. Desde meados de 1930 que o rádio se tornou a opção dos governantes para se dirigirem aos trabalhadores. Opção à qual se somou a televisão, décadas depois. Ano após ano, em regimes democráticos ou autoritários, lá estavam os presidentes e seus pronunciamentos em cadeia nacional de rádio e televisão. As próprias emissoras se incumbiam de repercutir estes discursos, com os jornais do dia seguinte completando o processo através de reportagens, comentários e editoriais.

Foi Artur Bernardes quem declarou o 1º de maio feriado, em 1925, mas coube a Getúlio Vargas, nos primeiros anos da década de 1930, dar início à tradição de dirigir-se aos trabalhadores brasileiros no dia mundialmente a eles consagrado. Seus discursos tinham como palco o estádio do Vasco da Gama, na Zona norte do Rio de Janeiro, então capital da República. O 1º de maio com Getúlio passou a ser caracterizado por celebrações, desfiles e festas populares, oportunidade em que anunciava o aumento anual do salário mínimo. Em 1943, nesta data, ele anunciou a criação da própria Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

Durante todo este tempo, esta iniciativa permaneceu a reboque da mídia, a quem competia, em última instância, não só divulgar como analisar e atribuir sentido às palavras oficiais. E se esta lógica parecia fadada a durar, a decisão de Dilma Rousseff significou, para usar um termo do próprio jornalismo, uma espécie de inversão de pauta, cujas proporções e consequências podem vir a ser mais amplas do que se possa imaginar.

Desconforto visível

Pegas de surpresa, as emissoras de rádio e TVs não tiveram alternativa a não ser noticiar que a fala presidencial seria substituída por três vídeos postados pelo próprio Palácio do Planalto em sua página no Facebook, ao longo do dia 1º de maio. O desconforto de âncoras, comentaristas e analistas ao darem a informação era visível. Talvez eles tenham percebido o alcance do que está em jogo.

De coadjuvantes, as redes sociais adquirem, a cada dia, maior presença na cena midiática nacional. Pesquisas tão diversas quanto as realizadas pelo Ibope e pela Fundação Perseu Abramo, do Partido dos Trabalhadores, exibem resultados semelhantes. A internet, na soma de portais, blogs e redes sociais já ultrapassa em muito o jornal como meio habitual para se informar. A televisão ainda lidera este processo, mas o declínio de audiência experimentado por emissoras tradicionais como a TV Globo indicam que o quadro está se modificando com rapidez. E é dentro deste contexto que se pode analisar a decisão de Dilma Rousseff quanto ao 1º de maio.

Não é novidade para ninguém que a mídia comercial brasileira (TV Globo e revista Veja à frente) não mediu esforços para derrotar Dilma Rousseff durante a campanha eleitoral. Também não é nenhuma novidade que, mesmo depois de eleita, Dilma Rousseff tenha continuado a enfrentar campanha contrária desta mídia, que jogou tudo na viabilização do “terceiro turno”, convicta que ele poderia resultar em impeachment ou em um “sangramento” tal da presidente que seu governo, na prática, terminaria antes de começar. Aos poucos, no entanto, a presidente dá sinais de que não só está conseguindo contornar a crise política, como sai das cordas e passa a assumir o protagonismo em várias situações. E a comunicação pode ser uma delas.

Antes mesmo da posse do novo titular da Secretaria de Comunicação da Presidência da República (Secom), Edinho Silva, o Palácio do Planalto já havia decidido pela suspensão da publicidade oficial na Veja e na TV Globo. Mesmo que a fala de Edinho Silva enfatize o diálogo com todos os veículos e profissionais de comunicação, fica nítido que o governo pretende priorizar os sites e blogs da chamada “mídia progressista”. Em duas oportunidades, nestes primeiros quatro meses de seu segundo mandato, Dilma abriu espaço em sua agenda para entrevista coletiva com jornalistas destes veículos.

Esta aproximação pode ser um primeiro passo para que uma velha reivindicação do setor seja atendida. Desde 2009 que as mídias não ligadas aos grandes monopólios lutam para que a verba oficial de publicidade seja democratizada. Em 15 de janeiro, a Associação Brasileira de Empresas e Empreendedores da Comunicação (Altercom), que congrega estes setores, divulgou manifesto que tinha por objetivo reivindicar, da Secom, a aplicação legal de 30% das verbas publicitárias em mídias e plataformas independentes.

O governo federal não é só o maior anunciante público do país. Como assinala o jornalista e sociólogo Venício A. Lima, professor aposentado da UnB, o Estado brasileiro tem sido o fiador do sistema privado vigente de mídia, tanto através da publicidade oficial, de subsídios, isenções fiscais, suporte financeiro, quanto por se omitir em relação à regulação do setor.

Em 2013, o governo federal investiu R$ 2,3 bilhões em publicidade, dos quais R$ 1,5 bilhão foi para a TV. Desse valor, R$ 1,3 bilhão, ou 86%, foi direcionado para as cinco grandes redes de sinal aberto, sendo que a TV Globo abocanhou, sozinha, cerca de R$ 570 milhões. Jornais e revistas receberam R$ 309 milhões, rádio, R$ 176 milhões, internet, R$ 139 milhões, e outras mídias R$ 176 milhões. O critério adotado pelo governo é o da chamada “mídia técnica” que tem sido alvo de muitas críticas, por contribuir para reforçar e ampliar o monopólio midiático existente.

Governo não é empresa

Para a cientista política Larissa Ormay, especialista em temas relacionados à comunicação, a distribuição das verbas oficiais não deveria se resumir apenas a uma questão de audiência. De acordo com ela, “se o direito à liberdade de expressão está garantido na Constituição Federal, cabe ao Estado brasileiro trabalhar para que essa liberdade fundamental se efetive plenamente, ao invés de se escorar em critérios que, aparentemente neutros, só beneficiam os poderosos”.

Ormay vai além ao assinalar que o governo federal não pode atuar como se fosse uma empresa, mas sim, compreender seu papel de agente formulador de políticas públicas. “A distribuição de recursos públicos para a mídia vai muito além de levar a mensagem do governo ao maior número de pessoas possível. Ela deve ter em conta um compromisso de Estado com a democracia, com a promoção da ampla liberdade de expressão e, assim, seguir uma lógica distinta da lógica privada de remuneração da mídia por publicidade.”

É esta lógica distinta que parece ter presidido a decisão de Dilma ao optar pelas redes sociais para se comunicar com os trabalhadores neste 1º de maio. Foi de olho no compromisso do governo brasileiro com a democracia que a presidente decidiu “falar” com os trabalhadores sem a intermediação da mídia comercial. Mídia que, vale destacar, aderiu e apoia com entusiasmo o Projeto de Lei 4330 (já aprovado pela Câmara dos Deputados) que permite a terceirização em todas as atividades. Terceirização que, na prática, significa precarização do trabalho, uma espécie de revogação branca dos direitos que constam da CLT.

Ao optar pelas redes sociais, Dilma Rousseff igualmente contribuiu para valorizar e destacar o papel das novas mídias, indicando-as não só como um espaço de liberdade de expressão que não se rege apenas pela lógica do mercado, mas igualmente como um espaço confiável em relação às informações e notícias do interesse da maioria da população.

Segundo a Pesquisa Brasileira de Mídia 2015, 48% dos brasileiros já usam a internet e ficam cinco horas conectados por dia (tempo superior ao gasto com televisão). Entre esses, 92% estão conectados por meio das redes sociais, sendo as mais utilizadas o Facebook (83%), o Whatsapp (58%) e o YouTube (17%). No entanto, esta mesma pesquisa mostra que em relação às novas mídias ainda reina desconfiança. Fato que o governo, ao utilizá-las, contribui para reduzir.

É importante lembrar que foi no primeiro mandato de Dilma Rousseff que o Brasil passou a contar com o Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014), que regulamentou direitos e deveres para o uso da rede mundial de computadores no país. Por orientação do Palácio do Planalto, os integrantes do primeiro escalão do governo e dirigentes de empresas públicas estão, cada dia mais, se valendo das redes sociais em sua comunicação com os diferentes públicos.

Informar, por exemplo, aos gestores municipais sobre aspectos dos programas do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome deixou de ser problema com o uso destas redes. O mesmo pode ser dito em relação às principais ações realizadas por ministérios tão diferentes como o do Turismo e o do Desenvolvimento Agrário. Os próprios ministros têm dado entrevistas a sites e blogs com maior frequência, com as redes sociais passando a veicular, em primeira mão, informações oficiais e opiniões que a mídia tradicional, se não quiser ficar por fora, tem que correr atrás e repercutir.

Medo e fraqueza?

Se Dilma e a Secom têm o que comemorar, entre setores do PT e dos demais partidos que apoiam o governo as opiniões, num primeiro momento, se dividiram. Não faltou nem mesmo quem acreditasse que Dilma não foi à TV, “por medo de novo panelaço” e que ao preferir as redes sociais “acabou demonstrando fraqueza”. Não está descartado que um dos motivos que levaram a presidente a buscar as novas mídias tenha a ver com os “panelaços”. Claro que o risco deles ocorrerem foi devidamente analisado em suas reuniões com assessores e com o ex-presidente Lula, mas não foi esta preocupação que prevaleceu. Tanto que a presidente falou sobre a valorização do salário mínimo, empreendida pelos governos do PT, teceu críticas à terceirização tal como está posta e sobre manifestações, aproveitando o tema para alfinetar o governador do Paraná Beto Richa (PSDB), após o Centro Cívico de Curitiba se tornar palco de violência policial contra professores na quarta-feira (29/4).

Num contexto de desregulamentação praticamente absoluta da mídia brasileira – levando-se em conta que o Código de Radiodifusão em vigor é de 1962 e está caduco, que a Lei de Imprensa foi revogada e o próprio exercício do jornalismo não exige mais diploma específico na área – as redes sociais passam a ter papel importante, funcionando como contrapesos aos velhos monopólios do setor. A título de exemplo, se no passado, as retificações de informação, os desmentidos e os direitos de resposta ficavam ao sabor dos donos da mídia tradicional, agora eles podem ser realizados imediatamente.

Foi o que aconteceu, por exemplo, no dia 01/05, com o dirigente do Instituto Lula Paulo Okamoto em relação à revista Época. Apesar de a revista ter sido atendida prontamente em sua solicitação sobre informações e atividades do instituto, bem como as de seu principal membro, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, aí incluídas suas palestras e viagens ao exterior, ela publicou apenas parte das respostas, provocando erros de informação.

Ao invés de ficar à mercê dos editores de Época para que as correções fossem feitas, o Instituto Lula divulgou, nas redes sociais, comunicado no qual disponibiliza a íntegra das respostas que a revista, em sua versão eletrônica, não publicou. Em outras palavras, as redes sociais estão funcionando como espaço para a desconcentração simbólica do pensamento, ao possibilitarem que outras visões circulem na sociedade e garantindo o direito de resposta que a mídia tradicional insiste em negar a seus desafetos e a amplos setores sociais.

Estes movimentos são, sem dúvida, ainda tímidos, levando-se em conta a necessidade de se democratizar a comunicação no Brasil, talvez a única das grandes democracias no mundo em que a mídia comercial atua sem praticamente prestar contas a quem quer que seja. A presidente Dilma sabe disso, mas igualmente saber das condições políticas de que dispõe no momento.

Novas inversões

Numa das conversas que teve com blogueiros, um deles lembrou-lhe que um de seus compromissos de campanha havia sido justamente com a regulação democrática da mídia. Dilma não negou o compromisso. Para alguns dos presentes, sua resposta foi quase uma pá de cal no assunto, ao assinalar que não havia, naquele momento (meados de março) a menor condição de se abrir esta discussão por conta da situação vivida pelo país.

Outros presentes àquela reunião fizeram avaliação menos pessimista. Lembram que foi a própria Dilma quem disse que havia sido informada que estava em preparação um projeto de lei de iniciativa popular envolvendo a democratização da mídia. E mesmo frisando que “não sei como ele é, nunca vi mais gordo”, considerou que poderia ser algo “interessante”.

Ao longo do tempo, os governos brasileiros adotaram posições no mínimo dúbias em relação à imprensa, enquanto a concepção liberal, que atribui às elites dirigentes o papel de intérprete dos interesses da nação, colocou a imprensa em primeiro plano. Assim, a imprensa, através dos seus diversos segmentos, foi construindo junto à população, a visão de que seria a instituição mais identificada com os anseios da opinião pública, quando não a própria opinião pública.

Esse tipo de discurso, formulado e divulgado pelos mais diversos meios de comunicação tradicionais, acabou por valorizar o papel da mídia em detrimento inclusive dos poderes constituídos. Apesar do rádio e da TV serem concessões públicas, os concessionários no Brasil agem com se fossem donos, cobrando, a preços de mercado, até pelas campanhas publicitárias oficiais de interesse público que veiculam.

A título de exemplo, em 2013 a Secom aprovou a veiculação de 22 campanhas publicitárias, sendo programados 4.775 veículos em todo o território nacional. Deste total, o meio TV ficou com nada menos do que 72% das verbas. A atual campanha do Ministério da Saúde sobre vacinação contra a gripe, só em termos de veiculação, vai consumir mais de R$ 10 milhões aos cofres públicos. E é a possibilidade de perder a primazia também nestas veiculações e suas respectivas verbas o quê mais preocupa, de imediato, a velha mídia. Até porque, se a ordem no governo federal é conter gastos, não há motivo para os gastos com veiculação na mídia tradicional ficarem de fora.

Nesta linha, não faltaram postagens dando conta que o governo teria economizado R$ 90 mil reais aos cofres públicos ao não convocar cadeia de rádio e televisão neste 1º de maio. Não se sabe como esta cifra foi calculada, mas uma coisa é certa: mesmo que o governo tenha a prerrogativa de convocar, sem custos, cadeia nacional de rádio e televisão, existem os gastos com produção e pós-produção que em televisão e rádio são muito superiores aos dos vídeos para a internet.

Por tudo isso, o certo é que esta inversão de pauta parece ter funcionado e pode abrir espaço para que novas e mais inversões aconteçam em futuro próximo.

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Ângela Carrato é jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG. Este artigo foi publicado no blog Estação Liberdade