‘O governo está elaborando uma crise, lenta, gradual e seguramente. E, ao que tudo indica, inconscientemente, embora nada haja de percepção e compreensão muito difícil.
Uma chuva de boatos, boatos para todos os gostos, inundou o ambiente nos últimos dias e chegou a dois resultados. Um evidente, que foi o reaparecimento do ministro Antonio Palocci para servir um pretenso tranqüilizante, e outro, por ora menos evidente, porém já mais eficaz, que é o fortalecimento das razões criadoras dos boatos.
Palocci negou a possibilidade de mudança na política econômica, negou divergências no governo em torno dessa política e negou que seus dois principais assessores, que de fato conduzem a política econômica, corram qualquer risco em seus poderes. Palocci pareceu convicto de que desfazia os boatos.
Não foi geração espontânea que os boatos surgiram e se propagaram com rapidez. Muitos dos sinais que os produziram vieram de dentro do governo mesmo, e caíram no terreno propício da insatisfação crescente no empresariado industrial e comercial, além de boa parte do que chamam de base do governo. Nesses territórios os boatos prosperaram com ânimo e facilidade.
A constatação inicial, portanto, é a da falta de fundamento na negação, por Palocci, de divergências no governo motivadas pela política econômica e acirradas pela recente recusa, da Fazenda e do Banco Central, de continuar, por mínimo que fosse, a redução dos juros estrangulantes.
A constatação seguinte é mais significativa. Palocci, em mais uma reprodução da mesma entrevista que dá desde sua posse, em vez de aplacar as insatisfações e aspirações que já transbordam sob a forma de boatos, reafirmou, até com certo desafio, tudo o que as provoca. Ainda que nada pretenda conceder, aos que anseiam pelo fim da paralisia econômica, não precisava levar tão longe a inabilidade política.
A entrevista de Palocci predispõe os já inquietos para reagir pior aos dados e fatos que confirmarão a continuidade do recessivismo -como o corte de mais de um terço, agora mesmo, dos já escassos recursos de investimento previstos no Orçamento que mal começou a vigorar. Os métodos de engodo governamental podem ser eficientes, mas limitados, e se esgotam.’
Dora Kramer
‘A Justiça fora da palanque’, copyright O Estado de S. Paulo, 4/02/04
‘Adianta pouco, porque Maurício Corrêa está para deixar a presidência do Supremo Tribunal Federal, mas já é um alento o fato de o presidente da República e o presidente do STF evoluírem da troca de desaforos para a divergência civilizada.
Os espetáculos de falta de educação explícita protagonizados por ambos no ano passado foram substituídos nesta semana pela exposição de posições divergentes a respeito da reforma do Judiciário, ao que tudo indica, prestes a sair do papel.
Luiz Inácio da Silva mais uma vez defendeu a tese do controle externo do Judiciário e Maurício Corrêa, como sempre, manifestou-se contrário. O Legislativo vai decidir no voto delegado pela representação popular e ponto, parágrafo, voltando o debate, assim, à normalidade.
Não que o assunto não vá render polêmica, caso o Congresso leve mesmo adiante a tramitação da reforma ainda este ano, mas pelo menos saímos do terreno da má-criação para o campo do embate de idéias.
Mas, para que tudo saia a contento, seja qual for o resultado em relação a esse e outros pontos da reforma, é fundamental que os interlocutores envolvidos cuidem de evitar a contaminação do tema pelo debate eleitoral.
Haverá distorções graves e conseqüências indesejáveis se deputados, senadores e políticos temporariamente residentes no Executivo cederem à tentação de transformar o Judiciário, cuja popularidade anda a dispensar apresentações, em saco de pancadas das demagogias costumeiras. Se for o emocionalismo eleitoral o motor do debate parlamentar da reforma, melhor deixar o assunto – que já ficou no Congresso durante dez anos, ao sabor de todos os lobbies – para o ano que vem.
Apenas por uma questão de precaução – até excessiva, talvez -, já que de caso pensado, por iniciativa consciente, nem ao Executivo nem ao Legislativo ocorreria fazer da reforma do Judiciário um tema de campanha, aproveitando-se do humor do eleitorado ante as óbvias e imensas deficiências da Justiça.
A discussão torna-se ainda mais arriscada em um ano de eleição, quanto mais próxima e potencialmente atritosa podem ser as relações do Judiciário com os políticos por causa das querelas inerentes ao processo eleitoral.
Neste aspecto, o Poder Executivo, em todos os níveis, também por diversas vezes poderá ser parte em litígios envolvendo o uso e o abuso da máquina administrativa.
Claro que nem passa pela cabeça de partidos ou de políticos impor constrangimentos ao Judiciário no debate da reforma no Congresso e, com isso, inibir a ação de juízes nos contenciosos eleitorais.
Mas nunca é demais prevenir situações difíceis de remediar.
Mordaça Procuradores federais continuam recebendo, de ministros de tribunais superiores e até de gente governista graúda no Congresso, informações de que o presente empenho na reforma do Judiciário inclui também um esforço para subtrair do Ministério Público atribuições conquistadas na Constituição de 1988.
Por exemplo, retirar dos procuradores o poder de investigação, deixando a função exclusivamente para a Polícia Federal. O MP só poderia, então, trabalhar com o prato feito pela polícia, o que, na avaliação dos procuradores, os impediria de exercer com independência a defesa dos interesses da sociedade e representaria um retrocesso à situação pré-Constituinte.
A PF é subordinada ao Executivo e o Ministério Público, pela norma atual, tem autonomia administrativa.
Na reforma, os procuradores querem é discutir formas de consolidar a independência. A principal delas, eleição do procurador-geral através de lista tríplice resultante da votação na categoria e não, como ocorre hoje, por indicação direta do presidente da República.
Partidário desta tese, o procurador-geral, Cláudio Fonteles, lembra que, por vício de origem, os presidentes costumam se referir aos ocupantes do cargo como ‘o meu procurador’.
Da onça
O vice-governador do Rio de Janeiro, Luiz Paulo Conde, não vê só boa-fé nas defesas da candidatura de José Serra a prefeito de São Paulo.
‘Como presidente do PSDB, ele poderia aparecer nos programas do partido em todas as capitais. Como candidato, fica restrito a São Paulo.’
Mercado futuro
Ontem Lula de novo pediu calma na cobrança de resultados do Fome Zero, lembrando que a Muralha da China foi construída pedra a pedra.
Considerando os quase 300 anos transcorridos entre o início e o término da obra, é o que se pode chamar de expectativa de longo prazo.’