Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Joaquim Furtado

‘O mais recente, importante, episódio do relacionamento entre o poder político e o jornalismo, decorreu em Espanha, tendo como cenário mais de 200 mortos, quase milhar e meio de feridos e um acto eleitoral.

Consumada a tragédia e contados os votos, jornais influentes acusam um presidente de governo de, pessoalmente, lhes mentir, a propósito da autoria do mais mortífero atentado terrorista realizado no país.

A intenção seria manipular a vontade popular na hora do voto, mas o plano não resistiu o tempo suficiente para vingar, porque a liberdade de informação prevaleceu sobre a tentativa do seu controlo, transformando em castigo o que o autor pretendia que fosse prémio: José Maria Aznar e o PP perderam umas eleições cujas sondagens lhes davam a vitória.

Deixemos de lado as análises estritamente políticas dos acontecimentos de Espanha e observemos a comunicação social. Vítima ingénua de tentativa de instrumentalização no relacionamento entre a política e os media?

Nas sociedades democráticas, o poder político e o contra-poder jornalístico – se se aceitar a designação – são dois mundos ligados, interdependentes que, embora tendo objectivos diferentes, influenciam e se influenciam mas que, por vezes, se confundem, confundindo os cidadãos.

Os choques são ilustrados, frequentemente, com episódios não circunscritos partidária nem geograficamente. Há dias, a Associação dos Jornalistas alemães acusou o chanceler Gerard Schroeder de boicotar jornais e jornalistas críticos da acção do seu governo, tal como recentemente a revista ‘New Yorker’ garantia que a Casa Branca apenas fornece aos jornalistas o noticiário que prepara para eles, recusando responder a quaisquer pedidos de outras informações.

Afinal, a versão actualizada de uma prática que John Keane descrevia há mais de uma década (‘A Democracia e os Media’, 1991, edição ‘Temas e Debates’), referindo-se às conferências de imprensa na Casa Branca: ‘Certos repórteres são acreditados; as perguntas são feitas; as perguntas que permitiriam desenvolver os assuntos são rejeitadas; os temas frouxos têm prioridade; e desde o tempo de Truman que as declarações introdutórias, cuidadosamente preparadas, ajudam a marcar a agenda para os repórteres que aguardam’.

Analisando as formas de interferência do Estado nos media das democracias ocidentais, o professor da Universidade de Westminster identifica, ‘cinco tipos de censura política’, sendo um deles a mentira (onde inclui o exemplo citado ).

‘MATANZA DE ETA EN MADRID’ era a manchete da edição especial do jornal espanhol ‘El País’, no fim da manhã do próprio dia do massacre de Atocha.

Outros jornais informaram de forma similar, citando o ministro do Interior, mantendo-se a autoria da ETA quando já emergia a possibilidade de se tratar de um atentado da Al-Qaeda, pista que, no dia seguinte, prevaleceria em toda a imprensa.

O director do ‘El Periódico’, Antonio Franco, viria a revelar, já depois das eleições, que fora o próprio José Maria Aznar a pressioná-lo (tal como aconteceu com outros jornais) com a tese da autoria da ETA, através de dois telefonemas. No segundo, o presidente do governo incluíu um pedido de desculpas por, no primeiro, não ter aludido à pista da Al-Qaeda, mas insistiu: ‘Ha sido ETA, no tengas la menor duda’.

O mesmo tipo de contacto foi estabelecido com Jesús Ceberio, o director do El País (e, segundo foi noticiado, com directores de outros órgãos de informação). Após um primeiro telefonema para Ceberio, às 13 horas de dia 11, em que ‘afirma rotundamente que ETA está detrás del atentado’, mais tarde, às 20.45 horas, Aznar ‘de nuevo en conversación con EL PAÍS, ratifica que el atentado es obra de ETA’(‘filme’ das declarações institucionais, publicado na edição do ‘El País’ de 19 de Março).

A revelação da existência destas conversas fora feita no domingo, dia 14, nas páginas do jornal. Singularmente, na coluna da defensora del lector (equivalente ao provedor do leitor). Numa crónica em que descreve, vista do interior da redacção, a forma como o jornal acompanhou os acontecimentos e os cobriu nas primeiras horas, Malén Aznárez explica, o que os leitores ainda não sabiam: ‘El titular de portada a cinco columnas es contundente: ‘Matanza de ETA en Madrid’. En qué se basava EL PAÍS para afirmar tal cosa si todavía el ministro del interior no lo había confirmado ? Mui sencillo. Al margen de distintas fuentes de Interior que así lo habían asegurado, el presidente del Gobierno, José María Aznar, había llamado al director del periódico, Jesús Ceberio para confirmar esta autoria’.

E, respondendo a um leitor que critica o editorial de 6ª feira, 12, ( onde já se põe em dúvida a autoria da ETA ), dizendo que é preciso acreditar nas instituições, a defensora do leitor, conclui a crónica: ‘Este periódico creyó al presidente del Gobierno en sus dos afirmaciones al director. Pero la confianza tiene un límite, la realidad’.

Malén Aznárez remete assim o comportamento do presidente do governo para um dos vários tipos, interligados, de censura política, definidos por Jonh Keane: ‘Mentir. O hábito desagradável de mentir em política é uma característica dos regimes democráticos (e outros). A convicção dos políticos de que metade da política é imaginação e a outra é a arte de levar as pessoas a acreditarem em fantasias, sejam quais forem ‘os factos’, é extravagante; a velha máxima de que só poderemos entender os políticos se lhes olharmos para os pés e não para a boca continua a ser verdadeira’.

E quanto à conduta dos jornalistas? Foi irrepreensível naquela situação, profissionalmente difícil?

Como revela Malén Aznaréz, a manchete que compromete o jornal na afirmação peremptória que atribui à ETA a autoria do massacre, tem uma fonte. Chama-se José María Aznar. Não foi citada. Nem foi invocada nenhuma fonte confidencial, nem referida nenhuma confidencialidade requerida ou aceite. Aznar não quis? Porquê, se o seu ministério estava a insistir na mesma tese? Citou provas que convenceram o jornal?

O jornal assumiu uma informação como se estivesse certo da sua veracidade. E não estava. Acreditou na fonte, tal como outros.

Revelá-la depois, como aconteceu, poderá encerrar a questão do lado do político. E do lado do jornal, agora que o problema das fontes leva títulos tão importantes como o ‘New York Times’ a definir novas regras?

Quanto à política, os eleitores tiraram as suas conclusões. Quanto ao jornalismo, serão os leitores a tirar. E os jornalistas.’