Wednesday, 27 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Jornalismo de defesa do cidadão-consumidor

Você acha que vivemos na era da informação, do conhecimento? Na verdade, a definição mais apropriada para a nossa era seria a do consumo. Desde o útero materno, o bebê já é parte de um item do mercado consumidor, o de produtos infantis. Ou, quando a criança concebida por inseminação artificial ainda era um espermatozóide à procura de um óvulo, já fazia parte do comércio das clínicas de fertilidade. Ou na hora do nascimento, papai e mamãe podem ser felizes possuidores do plano de consórcio de partos – que, sim, existe, e em São Paulo.

Nesse mundo que tem como meta a produção e o consumo de bens, objetivo e motor da felicidade, como quer a publicidade – que hoje movimenta 430 bilhões de dólares por ano em todo o mundo –, o chamado consumismo coloca em risco a sanidade humana e o meio ambiente.

A sanha consumista é devoradora de mentes e de terras, águas, flora, fauna.

Ao contrário do antigo lema, que situava como opostos desenvolvimento e preocupações ambientais, hoje é uma questão de sobrevivência da raça a contenção da devastação e a educação para o consumo sustentável.

Em todo o mundo, amplia-se o que se denomina movimento consumerista (do inglês consumerism, sem boa tradução para nossa língua), uma iniciativa social que tem o objetivo de proteger direitos e interesses dos consumidores em suas relações de troca com qualquer tipo de organização, dos supermercados aos serviços públicos e agências reguladoras. O termo tem provocado confusões: há quem o faça sinônimo de consumismo, quando se trata exatamente do contrário, a defesa do consumo racional.

Lutas cotidianas

O Idec – Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor é uma ONG pioneira nessa atuação no Brasil. Criado em 1987 por Marilena Lazzarini, que vinha de uma atuação também pioneira no Procon, e por um grupo de ativistas da causa, hoje é uma entidade respeitada nacional e internacionalmente por sua atuação independente de governos, partidos e empresas. A participação da entidade foi fundamental na conquista do Código de Defesa do Consumidor (CDC), em 1991. Desde então, tem protagonizado lutas importantes e vitórias de David contra Golias, contra inimigos poderosos como bancos, operadoras de planos de saúde e prestadores de serviços públicos privatizados, entre outros.

Em 1989, a primeira ação judicial do Idec exigiu a proibição de um hormônio cancerígeno utilizado no gado. Com os planos Verão (1989) e Collor (1990), o instituto ganhou projeção nacional e juntou milhares de pessoas em busca de alternativas para reaver o dinheiro subtraído pelo governo de suas cadernetas de poupança. Até agora, o Idec recuperou mais de 10 milhões de reais para seus associados.

Um teste com preservativos em 1993 revelou que a política pública que regulamentava a produção de preservativos tinha normas defasadas, e várias marcas não eram eficientes. O resultado foi, em plena era de explosão da Aids, a reformulação dessas normas para a produção de material confiável.

Os testes mais recentes do Idec denunciam descumprimento da lei por parte de operadoras de planos de saúde; reprovam a ação de desinfetantes domésticos – marcas consagradas como Pinho Sol, Pinho Bril e Lysol não conseguiram eliminar Salmonella choleraisuise Staphyilococus aureus. Uma pesquisa reprovou a atuação de agências reguladoras (Aneel, ANS, Anvisa, Anatel, Inmetro).

Além do braço jurídico, o Idec também coloca ênfase na educação para o consumo. Por isso, afora as publicações na área de livros e cartilhas, criou a revista Consumidor SA, em 1995, com circulação bimestral, dirigida aos seus associados. Neste mês de maio, a periodicidade da publicação passa a mensal e o nome muda para Revista do Idec, com novo projeto gráfico e as mesmas 48 páginas.

Com tiragem de 25 mil exemplares, a revista não tem publicidade. É bancada pelas mensalidades dos associados e eventualmente pela verba de algum projeto de entidades financiadoras internacionais. Caso raro de independência, além de reportagens a Revista do Idec traz orientações da base técnica do instituto nas áreas de saúde, economia, serviços públicos e outras. Uma seção fixa, ‘Caso Real’, retrata as lutas cotidianas de consumidores lesados e que conquistaram seus direitos por meio de orientação do Idec. Pesquisas realizadas pelo instituto entre associados revelam aprovação de mais de 90% ao veículo.

Aprendendo a lição

Das 19 entidades representadas no Fórum Nacional das Entidades Civis de Defesa do Consumidor, 18 têm hoje presença na mídia e 11 editam publicações próprias.

A cobertura dos direitos do consumidor pela mídia se intensificou a partir da década de 1990, com a entrada em vigor do CDC. Especialistas como o advogado Josué Rios – também um dos pioneiros fundadores do Idec – defendem que a governo começou a se fazer presente nas questões do consumidor a partir de pressões da sociedade civil. Em sua dissertação de mestrado, defendida em 1998, Rios dedicou um capítulo à atuação da mídia no assunto e, segundo sua pesquisa, dos 9 veículos analisados, 7 criaram editorias de defesa do consumidor após o advento do CDC. Ele verificou que, já em 1972 e 1973, matérias veiculadas pelos jornais Folha de S.Paulo e Estado de S.Paulo discutiam a necessidade de uma regulamentação e abordavam temas como publicidade enganosa e produtos de má qualidade.

No inicio dos anos 90, as matérias eram mais institucionais, vindas de fontes oficiais, e algumas poucas cartas de reclamações. Hoje, toda a grande imprensa têm sua seção ou página de direito do consumidor, com o papel principal de denunciar abusos e orientar o leitor.

Ainda segundo a pesquisa de Josué Rios, no fim da década de 1990 cerca de 2 mil consumidores recorriam mensalmente às seções de jornais com notícias ou reclamação contra empresas. O estudioso verificou que o índice de resolução das reclamações via jornais chegava a 90% dos casos, enquanto o percentual dos Procons, os órgãos governamentais de defesa do consumidor, atingia a 75%.

Em um país em que o Estado raramente prima pela defesa do cidadão, este recorre a outras formas de representação – como os movimentos sociais, as associações de consumidores e a mídia. Mas os meios de comunicação têm uma atuação ainda limitada: a prestação de serviços e o papel de advogado de defesa do leitor, por meio das cartas com reclamações da compra de produtos com defeitos. Os leitores ficam felizes com a resolução de seus problemas, é claro. Entretanto, os temas não são aprofundados e não atingem o ponto central da questão: a ausência de políticas públicas que ajudem a viabilizar os direitos dos consumidores.

Este, porém, como sabemos, não é um problema apenas das páginas de direito do consumidor, mas de toda a imprensa. Naturalmente há exceções: o caso dos preservativos citado acima é uma delas, pois a partir de uma denúncia de má qualidade, a pressão da sociedade civil e da imprensa colocou em xeque uma política pública.

Por outro lado, a pressão do poder econômico é sentida especialmente quando se trata de denúncias contra lobbies poderosos, como o dos bancos – grandes anunciantes e patrocinadores de noticiosos. Para esses casos, a cobertura diminui sensivelmente.

Mas a imprensa está aprendendo a lidar com a defesa do consumidor, segundo o coordenador executivo do Idec, Sezifredo Paz. O espaço para essa questão tem se ampliado em O Globo, Estadão, Jornal da Tarde, Gazeta do Povo de Curitiba, rádios Eldorado e Cultura e Agência Estado. Não há um dia da semana em que os técnicos do Idec não atendam a jornalistas de diversos órgãos de vários estados.

Disciplina inovadora

Emissoras como a Globo, Futura, canal 21, Gazeta, Rede TV veiculam, gratuitamente, filmes de divulgação do Idec e suas campanhas. O primeiro foi com a atriz Beatriz Segall, depois com o jornalista Juca Kfouri, o ator Edwin Luisi e, desde março último, a atriz Cássia Kiss. Em três peças de 30 segundos cada, Cássia destaca a importância de uma postura ativa por parte dos consumidores para que seus direitos sejam respeitados e oferece algumas orientações. Naquele mês, com o início da veiculação, 40% dos que se associaram ao Idec viram essa peça na TV.

Isso é muito importante, pois ao contrário do espaço que o Idec conquistou na mídia, orientando e prestando serviços, há pouco espaço para mostrar o trabalho feito pela entidade e, assim, conquistar mais associados. Como no Brasil não temos a tradição de associativismo, a luta da entidade independente é mais difícil. Nos Estados Unidos, por exemplo, a Consumer’s Union, entidade de defesa de consumidores criada há cerca de 40 anos a partir de um sindicato, tem tem 5 milhões de associados.

Também a Consumer’s International, com sede em Londres – atualmente presidida por Marilena Lazzarini, cargo ocupado pela primeira vez por um latino-americano – congrega mais de 250 associações de consumidores de 115 países.

A prática do boicote é uma arma usada com eficiência nos EUA e na Europa, e mostra o grande poder dos consumidores quando recusam um produto, seja porque viola direitos humanos, promovendo trabalho escravo, ou porque agride o ambiente, ou porque representa políticas condenáveis.

Se ainda estamos engatinhando nessas práticas de resistência, temos exemplos em países da América Latina de populações que já se mobilizaram, por exemplo, contra altas taxas de luz das empresas privatizadas e, com isso, têm obtido grandes conquistas.

Essa prática da cidadania pode ser incentivada a partir da introdução de matérias curriculares nas escolas, conscientizando as crianças sobre a racionalidade no consumo e a defesa dos direitos. O Idec dá grande importância a essa questão, editando livros, cartilhas e manuais por meio dos quais se capacitam multiplicadores nas escolas públicas do país. De outra parte, uma cartilha como O SUS pode ser o seu melhor plano de saúde, distribuída em estabelecimentos de saúde pública, escolas e movimentos sociais, defende a melhoria desse serviço pelo qual o povo brasileiro paga – e muito, há muitos anos – para ter o que bem conhecemos em troca.

E, por fim, já se torna necessária a introdução de uma disciplina inovadora nos currículos de graduação ou de especialização dos cursos de Jornalismo: Jornalismo de Defesa do Cidadão Consumidor. Essa disciplina cumprirá um importante papel social se, além de instrumentar os futuros profissionais sobre como atuar na área, formar jornalistas com visão crítica em relação a esta questão crucial e polêmica, que abrange não apenas relações de compra e venda de produtos em magazines, mas a viabilização de políticas públicas de defesa do cidadão consumidor.

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Jornalista, editora da Revista do IDEC