Sem pirotecnias. Esse é o mínimo de respeito que a situação exige. Seja ela atiçada por parte da imprensa ou de políticos e oportunistas de plantão. Há dez anos, no dia 22 de agosto de 2003, o Brasil apresentava ao mundo sua prova de ineficiência, de descaso e irresponsabilidade sob a denominação de Programa Nacional de Atividades Espaciais. Na base de lançamentos de Alcântara, no Maranhão, o foguete de propulsão sólida, denominado Veículo Lançador de Satélites (VLS), teve ignição espontânea em um de seus motores e matou, destruiu e silenciou tanto pela tragédia como pelo cinismo.
O VLS era visto como um imenso troféu do nacionalismo ufanista, triunfal e exibicionista como desejavam uma parcela de militares da velha guarda e uma parte da esquerda retrógrada. Os dois extremos enfim estavam unidos, num foguete de 20 metros de altura e 50 toneladas de peso. A simbologia perfeita para analogias em discursos demagógicos.
Uma corrente elétrica que já havia sido constatada dias antes, por funcionários do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), e relatada aos técnicos do VLS, acionou a malha pirotécnica de um dos motores e o fez arder a 3,2 mil graus célsius, incinerando 21 profissionais de antigo Centro Técnico Aeroespacial (CTA), a torre de lançamento e o pouco de vontade de se levar adiante o projeto do Brasil ter soberania tecnológica no segmento espacial.
Para a imprensa, o festival de irresponsabilidades, erros e horrores se transformou num horizonte de possibilidades sensacionais – desde confundir os profissionais mortos com mártires até promover as mais absurdas conjecturas conspiratórias. Junto a políticos, alarmistas e inescrupulosos protagonizaram o descalabro da desinformação. Enfim, esbaldaram-se em muito pouco perto de um emaranhado gigantesco de fatos e descasos.
Se por um lado havia os militares inábeis no tratamento com a imprensa, do outro havia a compensação infinita de manipuladores da mídia, da informação fácil, do off the record plantado para proscrever qualquer traço de verdade. Bastou fornecer imagens mal definidas de uma torre arqueada pelas chamas e o desespero de parentes das vítimas para satisfazer as necessidades primárias e instintivas dos cativos da notícia.
Superficial e preguiçosa
Uma década depois o assunto é tratado de maneira superficial, de preguiçosa e ingênua. Como se o acidente de Alcântara nunca tivesse sido uma tragédia anunciada e estimulada pela falta de seriedade de governos e de seus dirigentes, solenes e impunes, como soberanos em suas perpétuas mentiras. O episódio do VLS recebeu nesse período infindáveis pás de cal, como as lançadas nas valas dos indigentes infectados pela peste negra.
O projeto do lançador tomou forma ainda na década de 1960, embora já no pós-Segunda Guerra as primeiras iniciativas para se ter um foguete como peça militar já fossem estudadas e testadas. A Missão Espacial Completa Brasileira (MECB) previa satélites, lançadores e uma base de lançamento. Algo grandioso e futurista para um país com traços feudais e de pouca visão estratégica para manejar adequadamente a importância da tecnologia nessa área.
O VLS, iniciado oficialmente em 1985 (apesar dos estudos antecederem em muito essa data), se arrastou nas últimas décadas. Desde o fim dos governos militares a pesquisa, desenvolvimento e construção do foguete se acostumaram a viver de migalhas vindas de peças orçamentárias reduzidas, ficando o projeto assim sujeito quase à mendicância e ao “ jeitinho brasileiro”.
Nos anos 1990 a gravidade do quadro ficou ainda mais dramática. O projeto beirou a extinção com os embargos – nunca totalmente revelados ao conhecimento público, numa inexplicável submissão do governo brasileiro a desmandos internacionais – encabeçados pelos Estados Unidos e outros países desenvolvidos no setor espacial, integrantes do Tratado do Regime de Controle de Tecnologias de Mísseis (MTCR). O que prosseguiu mesmo com o país aderindo ao acordo e a criação da Agência Espacial Brasileira (AEB), para reforçar o uso civil do VLS.
Boicote e jeitinho
Mas imputar apenas aos embargos estrangeiros o fracasso de toda a missão é, no mínimo, ingênuo. Uma das soluções foi “importar” às escondidas mísseis intercontinentais dos bunkers abandonados da recém-extinta União Soviética. Os cargueiros Antonov desciam no aeroporto militar de São José dos Campos, no Vale do Paraíba paulista, carregados de sucatas de foguetes que mofavam na Ucrânia. O caso foi descoberto e revelado em uma reportagem do jornal O Estado de S.Paulo. Mas ficou por aí.
Com os atrasos somados ao desafio insano de superar as dificuldades orçamentárias, com o agravante de ainda apresentar resultados positivos, os militares fizeram duas tentativas de lançamento, em 1997 e 1999. Ambas fracassadas e com fortíssimas suspeitas de usos de peças retiradas dos velhos mísseis da Guerra Fria, como a malha pirotécnica e sistema de guiagem. Esse é mais um dos segredos partilhados por militares e civis, e que dificilmente chegará a conhecimento público, até porque a imprensa nunca se mostrou muito propensa a investigar os bastidores do VLS.
Em 2003, o governo federal vê no VLS não só uma maneira de renovar a combalida autoestima dos militares do Comando da Aeronáutica, como mostrar ao mundo a capacidade de superação do povo brasileiro e promover seu marketing institucional às alturas. O preço foi alto e praticamente sepultou o programa espacial.
Ineficácia oficial
Em 2006 foi criada Alcântara Cyclone Space, uma empresa binacional entre o Brasil e a Ucrânia, ineficaz em resultados embora com capital suficiente para se tornar num rico e próspero cabide de empregos. E ainda de quebra ficou incumbida de prover rentabilidade à base de Alcântara e conseguir a tão desejada transferência de tecnologia dos grandes foguetes. Até o momento, nada aconteceu a não ser gasto de recursos públicos.
As promessas de resgatar os lançamentos do VLS a partir da base maranhense ainda povoam o discurso do imaginativo político nacional. As datas anunciadas já contemplaram os anos de 2008, 2012 e, mais recentemente, 2014. Resta esperar que passado o oportunismo barato e a pirotecnia sensacionalista surja alguém realmente interessado em colocar o foguete lançador de satélites no alto – mas que seja das páginas e manchetes, com o grau de importância de uma história que não pode ficar apenas em escombros, mortes e erros.
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Júlio Ottoboni é jornalista científico