Democracia e liberdade de expressão foram invocadas pela presidente argentina, Cristina Kirchner, em seu discurso diante de ministros, governadores e militantes de seu partido, no qual justificou o envio ao Congresso do projeto da Lei de Serviços de Comunicações Audiovisuais. Mas, em muitos de seus pontos, o projeto avança na direção do cerceamento da liberdade de expressão e do controle estatal dos meios de comunicação, lembrando o que ocorria no tempo da ditadura militar, bem ao contrário do que disse a presidente.
Cristina e seu marido, e antecessor no cargo, Néstor Kirchner, mantêm uma relação conflituosa com a imprensa argentina, que questiona vários aspectos da administração federal. No discurso que pronunciou na Casa Rosada, sede do governo argentino, Cristina Kirchner não conseguiu esconder a visão distorcida que tem do papel dos meios de comunicação.
O que a imprensa livre faz e tem feito, na Argentina e em outros países, é analisar os atos do governo, criticando-os quando precisam ser criticados. Este é seu papel na democracia. Mas, por desempenharem esse papel, os meios de comunicação têm, na visão de Cristina Kirchner, um ‘suprapoder que, acima dos poderes da Constituição, arranca decisões por meio da pressão’. Para a senadora oposicionista María Eugenia Estenssoro, um governo que compara o direito de expressão ao que considera ‘direito de extorsão’, como fez Cristina Kirchner, ‘é um governo que se sente incomodado com críticas e quer que haja uma única voz’.
Efeito retroativo
Foi para conter isso que chama de ‘suprapoder’ dos meios de comunicação que Cristina Kirchner propôs o projeto de lei de radiodifusão, que muitos de seus críticos consideram semelhante às iniciativas do presidente venezuelano, Hugo Chávez – cujo governo, aliás, ajudou financeiramente o governo Kirchner em momentos de dificuldades. É clara, no projeto de Kirchner, a intenção de cercear, como fez Chávez, os grupos empresariais da área de comunicação contrários ao governo.
O projeto limita a 10 o número de licenças para operação de televisão aberta ou a cabo por empresa. A lei atual permite que uma empresa opere até 24 emissoras. As que não estiverem enquadradas na nova regra terão prazo de um ano para cumprir as novas normas. Não por acaso, uma das empresas nessa situação é a que edita o jornal Clarín, um dos maiores críticos da administração Kirchner.
Explicitamente, o projeto diz que, em casos como esses, as empresas não poderão alegar direitos adquiridos para manter as concessões que já detêm por força da legislação atualmente em vigor. Terão de se desfazer delas, desistindo de investimentos feitos no passado e repassando os bens e direitos ao preço que o comprador aceitar pagar – e que, provavelmente, será inferior ao que foi investido. É uma ameaça à segurança jurídica, pois, como observou ao Clarín o constitucionalista Gregorio Badeni, ‘na Argentina as leis não podem ter efeito retroativo quando afetam direitos adquiridos ou garantias constitucionais, o que é considerado uma lesão grave (a direitos)’.
Ampla vitória
É nítido, também, o objetivo do governo Kirchner de ampliar seu controle sobre os meios de comunicação ao limitar – em nome do controle do monopólio – a um terço o número de licenças que podem ser utilizadas para a exploração comercial, isto é, por empresas independentes, e reservar os dois terços restantes, em partes iguais, para o próprio governo e para organizações sem fins lucrativos (como igrejas, sindicatos, universidades e fundações) escolhidas pelo governo.
Além disso, as licenças para os canais de rádio e televisão serão obrigatoriamente revistas a cada dois anos, o que dá ao poder concedente, isto é, ao governo, um enorme poder para controlar os meios de comunicação, punindo os críticos e premiando os que lhe forem leais.
Obviamente, o governo tem pressa na votação do projeto, pois ainda dispõe de maioria no Congresso. Na eleição realizada em 26 de junho, a oposição obteve ampla vitória, mas, por força da legislação, os novos deputados só assumirão seu mandato em 10 de dezembro. Só então o Congresso terá a composição que o eleitorado argentino escolheu. Mas, como a escolha o contraria, o governo Kirchner não quer que o novo Congresso vote seu projeto.