O discurso oficial prometia a transparência. Era novembro de 2011, e a presidente Dilma Rousseff garantia que qualquer cidadão poderia consultar documentos públicos ao sancionar a Lei de Acesso à Informação, que entraria em vigor seis meses depois. Em três anos de vigência, a serem completados dia 15, a lei impôs prazos ao sigilo de documentos, criou mecanismos de busca de informação e obrigou repartições a responderem, no tempo estipulado, aos pleitos por dados públicos. Porém, a promessa de que a lei acabaria com o sigilo eterno não é cumprida por todos os setores do governo. Desde a edição da lei, 235,7 mil documentos foram desclassificados. Ou seja, papéis antes com carimbo de reservado, confidencial, secreto e ultrassecreto poderiam ser consultados. Mas o Exército, que detém 68% dos documentos desclassificados pelo governo, barra a consulta.
Desde a edição da lei, a Força desclassificou 160 mil itens que poderiam já ser pesquisados a partir de pedidos de acesso. Em maio de 2014, quando venceu o prazo para que os órgãos públicos reavaliassem o que estava guardado como sigiloso e passassem a divulgar relação do volume de documentos (tanto os classificados como os desclassificados), O GLOBO vem tentando consultar o arquivo militar. Os pedidos enviados ao Exército foram negados.
O Gabinete de Segurança Institucional (GSI) e a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) fazem o mesmo. Informam terem desclassificado cerca de 2 mil documentos. A pedidos de acesso, a área de inteligência vinculada à Presidência impõe restrições e não autoriza consultas.
Numa demonstração de que o governo ainda não se entendeu sobre o que deve ou não ser liberado, o Ministério da Defesa fez o oposto do Exército. Entregou lista de mais de 900 documentos desclassificados. Aeronáutica e Marinha também aceitaram abrir para consultas.
A Aeronáutica desclassificou 40,1 mil documentos, a Marinha, 13,8 mil. Os dois Comandos recomendaram que os pedidos sejam reduzidos por conta da limitada capacidade de análise e processamento do material. A Marinha sugeriu que os pedidos contenham solicitação de acesso a 20 documentos por vez. Novos pedidos só poderiam ser apresentados após o prazo previsto na lei, de 20 a 30 dias para envio da resposta ao pedido anterior.
Na pilha de documentos liberados pela Defesa e as duas Forças, a maioria é relacionada a assuntos burocráticos. Mas há inúmeros registros relevantes como comunicados de inteligência no regime militar, projetos de desenvolvimento de tecnologia nuclear, mapeamentos feitos de pistas clandestinas, garimpos e desmatamentos na Amazônia e alertas sobre terrorismo.
>> Os arquivos públicos abertos do país
Exército: pedido era genérico
No caso do Exército, primeiro foi enviado pedido para consulta de todos os documentos produzidos pela área de inteligência e pelo Comando Militar do Planalto — cerca de 10 mil documentos, menos de 10% do total desclassificado pelo Comando. O Exército considerou o pedido genérico e desproporcional, por conta do volume de informações, e negou acesso. O GLOBO tentou então apresentar ao Exército pleitos semelhantes aos enviados à Marinha e à Aeronáutica, explicando que as outras duas Forças estavam liberando seus arquivos. Em vão.
Nos pedidos com 20 itens, foram indicados os números dos documentos (cada arquivo recebe uma numeração, como se fosse um CPF). Nada feito. O Comando passou a exigir que fossem indicados os assuntos dos papéis. Ou seja, passou a cobrar que fosse apresentado o tema do documento que até então ninguém, a não ser o próprio Exército, poderia saber, já que, até sua desclassificação, os papéis estavam em sigilo.
“O pedido de informação deve conter, de forma clara e precisa, o escopo temático, temporal e espacial, como requisitos essenciais para o seu processamento pelo órgão ao qual se dirige”, informou o Exército, em sua resposta.
Por sugestão de um oficial de outra Força que soube da dificuldade imposta pelo Exército, foi feita uma última tentativa. Dessa vez, não foi pedido acesso ao documento, só que fosse informado o tema abordado em 20 papéis da lista de milhares desclassificados. Nova negativa.
O Exército alegou que o pedido deveria indicar justamente o que foi pedido: o assunto dos documentos. Foram apresentados recursos, negados pelo comando da Força. Os casos estão em análise na Controladoria Geral da União (CGU), instância superior, prevista na Lei de Acesso, para pleitos negados pelos ministérios.
Procurado na sexta-feira [8/5], o Centro de Comunicação do Exército informou por mensagem que o Comando cumpre integralmente a Lei de Acesso. Esclareceu que em 97% dos pedidos de informação que recebeu não houve recurso à CGU. No caso dos itens desclassificados sustentou que “quando um documento sigiloso é desclassificado, ele pode conter, ainda, informação de acesso restrito, nos termos da legislação. Portanto, seu acesso somente pode ocorrer nas hipóteses previstas nessas normas”.
Ao analisar um pedido sobre os documentos desclassificados pelo GSI, a CGU já reconheceu a dificuldade da administração em processar listas gigantescas de papéis desclassificados. Mas explicou que não é obrigatório indicar um assunto para um documento até então sigiloso. “Ainda que o assunto seja uma informação que auxilia bastante na identificação do objeto de interesse do cidadão, sua obrigatoriedade como requisito para a especificidade de um pedido de acesso à informação deve ser vista com cautela, no entanto, em especial quando se trata de informações desclassificadas. Ora, se as informações estavam sob sigilo, depreende-se que não é possível saber seu assunto e/ou tema antes de acessá-las”, disse a CGU, em parecer.
A CGU considerou “interessante” o modelo da Marinha, de liberar a consulta por pacotes de documentos. Mas assinalou que isso não resolve por completo a questão. Isso porque, no caso de um pedido de acesso a 3.600 documentos desclassificados, a resposta escalonada, respeitando o prazo de 20 dias entre cada solicitação, levaria dez anos para ser totalmente respondida. A CGU sugeriu que órgãos com grande arquivo de documentos desclassificados indiquem o tema dos textos nas listagens divulgadas nos seus sites. Assim, o cidadão já faria uma pré-seleção, solicitando só o que lhe interesse.
Consulta a e-mails oficiais é dificultada
Pouco antes de se lançar à disputa pela Presidência dos Estados Unidos, a democrata Hillary Clinton teve que dar explicações públicas. Quando ocupou a Secretaria de Estado do governo dos EUA, Hillary deixou de usar e-mail oficial e preferiu uma conta pessoal para tratar de assuntos públicos. A democrata acabou entregando ao acervo do governo 50 mil e-mails porque a legislação americana considera que é preciso garantir o registro das informações, secretas ou não, e a divulgação de seu conteúdo, após análise de uma equipe de desclassificação de dados sigilosos. No Brasil, ainda não há regras claras, e o Executivo federal resiste a entrar na era da transparência.
Desde que a Lei de Acesso entrou em vigor, o acesso ao conteúdo de e-mails de autoridades federais tem sido rechaçado por parte dos ministérios. Pedidos para consultar mensagens de ministros são negados sob alegação de que o volume de informação é muito grande, e pode haver conteúdo privado nos e-mails. Como não há condições de se passar um pente-fino em todas as mensagens, o governo não libera a consulta.
A Controladoria Geral da União (CGU) tentou iniciar uma discussão no governo para criar regras sobre os e-mails “gov.br”, sem êxito. Na reunião da Comissão de Ministros, em fevereiro de 2014, o representante da CGU sugeriu a criação de um grupo de trabalho para tratar do tema. Os demais participantes alegaram que essa não era uma atribuição da comissão. Caso encerrado.
A CGU já admitiu, em pedidos de acesso, que os e-mails podem ser divulgados publicamente. Mas ter acesso a eles não é fácil. Há quase dois anos, O GLOBO tenta consultar e-mails da ex-secretária da Presidência Rosemary Noronha, envolvida em denúncias de tráfico de influência.
Os pedidos foram negados pela Secretaria de Comunicação da Presidência (Secom), com a mesma alegação: os e-mails estão protegidos por conter informação pessoal e não há como analisar um volume grande de mensagens.
Em dezembro de 2013, foi apresentado pedido para a liberação de e-mails enviados e recebidos pela secretária num único dia e só num intervalo de 15 minutos. Ainda assim, o pedido foi negado. Um ano depois, a CGU respondeu ao recurso, após reconhecer que ela própria já tinha os e-mails, por conta da investigação sobre a servidora. Cópias de três e-mails foram liberados. Neles, Rosemary pede favores pessoais a terceiros usando o e-mail pessoal.
Alerta de terrorismo pós 11 de Setembro
Era 11 de outubro. Um mês antes, as Torres Gêmeas tinham desmoronado em Nova York após ataque terrorista. Sob o impacto da ação que atingiu até o prédio do Pentágono na capital americana, a Secretaria de Estratégia e Assuntos Internacionais do Ministério da Defesa disparou para órgãos de inteligência do governo um alerta sobre os possíveis desdobramentos do atentado nos Estados Unidos. Na avaliação da época, o Brasil poderia se tornar um alvo potencial.
“O aumento das medidas de segurança nos países do primeiro mundo irá deslocar o campo da ação terrorista para áreas mais vulneráveis, como América do Sul e África, principalmente contra alvos que representem interesses norte-americanos, israelenses e britânicos nessas regiões”, diz o documento de 2001. Parte de um pacote de pouco mais de 900 papéis desclassificados pelo Ministério da Defesa, o documento de apenas três páginas expõe o grau de tensão nas esferas de segurança brasileira no pós-11 de setembro.
O texto aponta ainda as “ameaças possíveis” no Brasil. Lista riscos de ataques a embaixadas, escolas, centros culturais ligados aos EUA, Israel, França e Inglaterra; atentados a aviões de empresas estrangeiras; possibilidade de o país virar rota para tráfico de armas, explosivos e até agentes químicos para uso em atentados na América do Sul. Veículos de comunicação que fossem críticos ao islamismo também poderiam sofrer ataques, cogitavam os autores do documento. Não há referência a nomes de empresas.
Há ainda uma análise sobre os pontos que tornariam o Brasil vulnerável aos ataques. Entre eles estão uma longa faixa de fronteira pouco vigiada; inexistência de política de inteligência; atuação do crime organizado, “facilitando a vinculação da criminalidade com o terrorismo”; e ainda a existência de “número expressivo de imigrantes e descendentes árabes no Brasil, exercendo atividades vinculadas ao comércio, importação e exportação, de alguma forma ligadas ou dependentes da prática de ilícitos (contrabando, remessa de divisas ao exterior, mercado de câmbio de moedas estrangeiras)”.
Dois anos depois, também em caráter confidencial, a mesma secretaria produziu um segundo relato sobre terrorismo no Brasil. Mas o tom já era outro. Desta vez, faz uma análise da região da Tríplice Fronteira, afirmando que ainda não havia elementos para atestar a ligação de pessoas da área com entidades terroristas.
Até então sob a proteção do sigilo, esses registros fazem parte dos documentos secretos e reservados desclassificados. Ou seja, o prazo de sigilo venceu, e os papéis já estariam livres para divulgação. A partir de pedido via Lei de Acesso, a Defesa entregou cópias do material sem impor restrições, conduta oposta à que vem sendo adotada pelo Comando do Exército em relação ao acervo que não está mais protegido por sigilo.
Um dos mais recentes documentos desclassificados pelo Ministério da Defesa é de fevereiro de 2012. Tinha grau reservado e só seria de domínio público em 2017. Mas foi desclassificado antes disso pela Defesa. O texto de pouco mais de 30 páginas é o resultado do trabalho de uma equipe de oficiais da Defesa. Eles tabularam dados coletados a partir de questionários respondidos por adidos brasileiros no exterior e apontaram quais vizinhos da América do Sul têm capacidade de se mobilizar rapidamente passando de um estado de normalidade para uma situação emergencial de escala nacional. O estudo tenta criar uma ferramenta para medir essa capacidade de mobilização. O estudo deu ao Equador a mais alta pontuação. Ao Suriname, a mais baixa. Respectivamente, seriam países com maior e menor rapidez de se mobilizarem para passar de uma situação de aparente tranquilidade para uma iminente guerra.
Governo tem 11 mil arquivos ultrassecretos
De acesso restrito a um seleto grupo de servidores do alto escalão, o governo federal mantém pelo menos 11,4 mil documentos ultrassecretos. Desses, 11,3 mil foram produzidos pelo Ministério das Relações Exteriores a partir de 1983. Só nos últimos dois anos, 110 documentos foram classificados pelo Itamaraty com o mais alto grau de sigilo previsto na legislação. É como se a diplomacia produzisse uma informação sigilosíssima por semana. Documentos com esse grau de proteção só podem ser divulgados 25 anos depois.
O Itamaraty considera que o conteúdo de comunicados produzidos pelas embaixadas no exterior e textos do próprio ministério em Brasília ainda não podem vir a público. Caso contrário, poderiam causar problemas às relações diplomáticas do governo brasileiro. A Lei de Acesso estabelece que documentos públicos podem ter três graus de sigilo: além do ultrassecreto, há o reservado, que só pode ser divulgado após cinco anos de sua produção; e o secreto, protegido por 15 anos.
O Itamaraty sustenta que, segundo o previsto na lei, reavaliou boa parte de seu antigo acervo, e já desclassificou 15 mil documentos ultrassecretos. A consulta é permitida com agendamento de pesquisa aos arquivos da diplomacia guardados em Brasília e no Rio de Janeiro. Foi a partir desse acervo que O GLOBO já produziu reportagens como a que revelava os comunicados secretos durante a Guerra das Malvinas.
A Controladoria-Geral da União (CGU) mantém em seu site um balanço do que é classificado e desclassificado pela administração pública. Mas o levantamento depende de informações prestadas pelas pastas, e os dados disponíveis na CGU são parciais. Não incluem, por exemplo, os dados do Itamaraty. A informação foi obtida pelo GLOBO a partir de um pedido de acesso enviado diretamente ao Ministério das Relações Exteriores. A lista da CGU informa que haveria apenas 142 classificados como ultrassecretos. O Ministério da Justiça detém o maior número de arquivos com esse grau de sigilo: 59. Todos são do Departamento Penitenciário (Depen) e podem ter relação com presídios federais, onde estão os presos considerados mais perigosos.
O Gabinete de Segurança Institucional (GSI), que guardava os antigos arquivos do Conselho de Segurança Nacional e também do extinto Serviço Nacional de Inteligência (SNI), informa que já entregou todos os papéis para o Arquivo Nacional, onde é possível consultar todos os documentos produzidos pelo regime militar e mesmo os anteriores ao golpe de 64. Relatos sobre a montagem do programa nuclear brasileiro e as preocupações dos governos militares com a fabricação da bomba atômica pela Argentina, já divulgados pelo GLOBO, fazem parte desse acervo. Já foram para o arquivo público estudos produzidos a pedido do Conselho de Segurança Nacional e também as atas das reuniões durante a ditadura.
Plano de emergência citava documentos
O acervo de documentos desclassificados pelo Ministério da Defesa também revela a rotina da pasta que monitora projetos no Congresso, mantém acompanhamento permanente dos adidos militares no exterior e chega a se preocupar com o salvamento de documentos preciosos em caso de um incidente no prédio.
Em fevereiro de 2008, a seção de Operações da Defesa atualizou um breve plano de emergência. Estava ali a orientação aos militares da seção para casos de um eventual incêndio nas instalações do ministério. Mas, além de conceber o plano de evacuação, o plano lembrava aos militares que tentassem, sempre que possível, salvar os arquivos secretos ali guardados. Uma tabela indicou que, na correria, suboficiais deveriam carregar quatro CPUs de computador. “A vida humana é o bem mais precioso. Todo esforço deverá ser feito para preservar a vida das pessoas, e, em segunda prioridade, serão salvos os materiais críticos funcionais ou pessoais”, diz o documento.
Entre 2004 e 2005, o Departamento de Saúde emitiu dois pareceres sobre projetos que tramitavam no Congresso relacionados a portadores do HIV, o vírus da Aids. Um projeto do Senado proibia discriminação e garantia aos portadores da doença direito de trabalhar em qualquer lugar. O departamento da Defesa elogiou a iniciativa, mas alertou que não poderia haver referência ao serviço militar, sustentando que haveria restrições ao exercício da atividade por pessoa com a doença.
Outro projeto estabelecia regras para tratamento de grávidas, para tentar evitar a contaminação da criança. Novo elogio dos oficiais da Defesa, mas foi criticado o trecho que só permitia o tratamento se a mãe concedesse autorização. A exigência foi considerada pelos militares incompatível com a ética médica.
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Francisco Leali, do Globo