Como é sabido, no final do último mês de abril o Supremo Tribunal Federal (STF) revogou a Lei de Imprensa (5.250/67), considerada inconstitucional. A medida afirma o primado da liberdade de expressão como fundamental para o Estado de Direito e deixa expostas as fragilidades e debilidades da regulação do país para o tema das comunicações.
O próprio STF reiterou a urgência do Congresso em criar novas regras para suprir o vácuo jurídico deixado pelo fim da antiga normatividade, instituída no auge do regime militar. Os debates sobre o tema, no entanto, não abordam a outra ponta das fragilidades regulatórias na área: o país caduca de uma legislação que garanta o exercício do direito à comunicação.
Embora a Constituição de 1988, no seu ‘Da Comunicação Social’, remeta à necessidade de legislação do setor, no âmbito da radiodifusão o país continua aplicando o Código Brasileiro de Telecomunicações (Lei 4.117), de 1962, por falta de texto legal atual. Vários artigos constitucionais, como o 223, que trata da complementariedade dos sistemas público, privado e estatal, continuam sem viabilidade por falta de legislação infraconstitucional.
Paralelamente à decisão inédita do Supremo com a Lei de Imprensa, outro decreto de 1967, firmado pelo marechal Castelo Branco, continua em vigor. O Decreto 223, em seu artigo 70, por exemplo, que penaliza com prisão a instalação de telecomunicações sem permissão do Estado, continua sendo aplicado às rádios comunitárias. Estima-se que mais de sete mil radialistas do país respondem hoje a processos judiciais, por emissão de sinal em emissoras comunitárias, e muitos continuam presos, em plena era dos direitos constitucionais de liberdade de expressão.
O poder do apito do juiz
A Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), realizada no final de 2009, em Brasília, apontou para uma série de demandas sócio-comunicacionais urgentes, e grande parte delas esbarra na necessidade de mudanças legislativas. Mas, cerca de seis meses depois, os avanços são quase inexistentes, já que a Conferência não tem poder deliberativo e houve um boicote da Rede Globo e outros radiodifusores. Sendo este um ano eleitoral, é muito pouco provável que haja qualquer alteração legislativa em 2009, ainda mais numa área tão sensível quanto as comunicações.
As brechas legislativas do setor não apenas fragilizam o exercício da atividade jornalística, principal tema nos debates sobre a revogação da antiga Lei de Imprensa, como também revelam a incompatibilidade jurídica da legislação vigente no país com os direitos democráticos. Tamanha deficiência cria contextos para situações inusitadas, inclusive de violações, e deixam o tema à deriva de decisões judiciais, blindadas das arenas legislativas democráticas, até porque estas não cumprem seu papel.
Os embates entre os marcos regulatórios das comunicações e as arenas judiciais não são uma exclusividade brasileira. Na Argentina, a decisão sobre a nova Lei de Serviços Audiovisuais, desde o último dia 30 de abril também está nas mãos da Suprema Corte de Justiça. Aprovada pela Câmara e pelo Senado em outubro de 2009, a Lei 26.522 foi embargada por um juiz da província de Mendoza, por supostos problemas procedimentais em sua tramitação. Embora a nova lei tenha sido saudada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e pelos relatórios da Comissão de Liberdade de Expressão da Organização dos Estados Americanos (OEA) como um novo parâmetro para a democracia na América Latina, sua aplicação está bloqueada até que uma decisão judicial ponha um ponto final no assunto.
Medidas arbitrárias e uma democracia caótica
No México, em 2006 a Suprema Corte também se posicionou decisivamente na regulação mediática. Nesse caso, a Justiça questionou a inconstitucionalidade da chamada Lei Televisa, por atentar contra direitos básicos dos cidadãos e constituir-se favorável à liberdade de empresa. Como suas recomendações de mudanças no texto da lei nunca foram atendidas, a legislação mexicana em termos de comunicação igualmente se encontra ultrapassada e sem uma definição específica.
O que se evidencia com tamanha ingerência judicial são as limitações dos poderes legislativos e executivo em enfrentar o setor midiático, ante sua resistência em construir uma regulação específica atualizada e democrática. A história assinala que a maioria das tentativas de estabelecer uma maior normatividade pública foi rechaçada pelo poder das grandes corporações econômicas. O resultado dessas disputas reflete-se nas legislações ultrapassadas e favoráveis ao entendimento da comunicação como mercado e em detrimento dos direitos sociais.
A judicialização da regulação comunicativa evidencia a caducidade dos marcos legais no setor e a força das indústrias culturais, que se beneficiam com os vazios normativos, criando precedentes difíceis de serem derrubados, posteriormente. Sem regras claras para os problemas midiáticos contemporâneos, quem perde é a sociedade, forçosamente refém de medidas arbitrárias e de uma democracia caótica.
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Respectivamente, professor titular no programa de pós-graduação em Ciências da Comunicação da Unisinos; e doutoranda em Ciência Política na Flacso (México)