Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Lições da operação Mãos Limpas, na Itália

A operação Mãos Limpas, a investigação que descobriu a ligação entre políticos, mafiosos e empresários italianos na década de 1990, terminou com um saldo decepcionante para quem esperava uma limpeza ética na política da Itália. À medida que os trabalhos dos procuradores começaram a alcançar os mais altos escalões do poder, novas leis que abrandavam as penas aos corruptos e dificultavam a apuração de irregularidades foram sendo aprovadas no parlamento. Com uma legislação que beneficiava corruptos e corruptores, a Itália, democraticamente, propiciou a ascensão do bilionário Silvio Berlusconi ao posto maior do parlamento daquele país. Aproximadamente um quarto de século depois, o modelo italiano foi aprendido pelos congressistas brasileiros que agem em causa própria com o avançar da operação Lava Jato.

Embora dois terços das colaborações premiadas (ou delações, como se tornaram conhecidas pelo público) obtidas na operação Lava Jato sejam provenientes de investigados em regime de liberdade, de acordo com o procurador de Justiça Rodrigo Chemim, do Ministério Público do estado do Paraná, caracterizando uma escolha da defesa, tramita na Câmara dos Deputados um projeto de lei que tem por objetivo modificar esse instrumento que tem se mostrado importante e eficiente, mas não único, no desvelamento de ações criminosas. Tema de recente gravação divulgada ao público envolvendo o presidente do Congresso Nacional Renan Calheiros (PMDB-AL) e o ex-presidente da Transpetro Sérgio Machado, o PL 4.372/2016, de autoria do deputado federal Wadih Damous (PT-RJ), que tenciona modificar os acordos de abrandamento de penas em troca de revelação de fatos novos aos investigadores tem muita semelhança com as manobras utilizadas pelos parlamentares italianos para arrefecer a Mãos Limpas.

Agindo em benefício próprio

Alegando que as prisões preventivas são empregadas como forma de intimidação dos investigados para que um acordo de colaboração seja assinado, o deputado federal Wadih Damous, ex-presidente da seccional da OAB no Rio de Janeiro, busca, por vias legais, a criação de diferentes categorias de réus. O solto com mais direitos e o preso com menos. Na prática, aquele réu em regime preventivo de privação de liberdade terá uma menor possibilidade de defesa, pois não gozará dos benefícios da colaboração. Contudo, o que estiver solto terá a oportunidade de negociar uma pena menor perante a revelação de fatos novos e comprováveis por outros meios envolvendo comparsas em crimes contra o erário. Desse modo, o preso seria amordaçado pela própria legislação e por uma informal, mas impositiva, lei do silêncio que impera entre organizações criminosas – seguindo o exemplo da máfia.

Por mais que a operação Lava Jato deixe algumas questões em aberto (Por que revelar gravações de quem tem foro privilegiado? Por que empregar prisão preventiva do ex-presidente Lula? Por que a esposa e a filha do presidente afastado da Câmara de Deputados Eduardo Cunha ainda não prestaram depoimento em Curitiba para o juiz Sério Moro? Por que o STF fez silêncio na nomeação de ministros envolvidos em denúncias no governo do presidente interino Michel Temer?), e, por isso mesmo, possa levantar algumas dúvidas quanto às intenções de algumas de suas personagens mais midiáticas, não é admissível que manobras na legislação sejam usadas para que os políticos usem os seus cargos de representantes do povo para agir apenas em benefício próprio.

O exemplo da operação Mãos Limpas não deve ser descartado se quisermos ter melhores representantes políticos no futuro próximo. Na Itália, em 1993, em pleno andamento das investigações, a Lei Conso, de autoria do então ministro da Justiça Giovanni Conso, tratava da descriminalização do financiamento ilegal de partidos políticos, bem como dispunha sobre o sigilo das investigações. De intenções tão escrachadamente expostas, o decreto foi vetado pela Presidência. Esse tipo de manobra também não é estranha aos congressistas brasileiros que na Lei da Reforma Política, que seria mais apropriado chamar de Reforma Eleitoral, votada no ano passado, aprovaram um texto que permitia a doação de dinheiro para as campanhas eleitorais por parte de empresas sem que o beneficiário fosse revelado. O veto da presidente Dilma Rousseff e a declaração de inconstitucionalidade dada pelo STF puseram um freio nesse desejo dos deputados federais.

Com pouca fé em seus representantes, o eleitorado brasileiro tem de estar atento para não ser envolvido por amarras que beneficiam a corrupção, como aconteceu com os italianos que foram perdendo o interesse na operação Mãos Limpas, enquanto leis eram aprovadas contra o interesse público. Por exemplo, em 1997, o Congresso da Itália sancionou uma lei – ainda em vigor – que atenua a prevaricação e diminui a possibilidade de responsabilização do agente público. Em 2002, foi descriminalizado o ato de fraudar balanços financeiros. No mesmo ano, foi criada outra lei que permite a transferência de um processo de uma corte para outra em casos de suspeita legítima de falta de imparcialidade do juiz. Em 2005, foi aprovada uma redução do prazo de prescrição de diversos crimes, entre eles a corrupção. Parcialmente em vigor, partes dessa lei foram declaradas inconstitucionais, mas revelam a articulação dos políticos italianos para criar benefícios a eles próprios. A vigilância é o que pode precaver o povo de ações lesivas por parte da classe política ao conjunto da nação.

Diante do atual cenário brasileiro, nenhuma ideologia que norteie o fazer político serve se os representantes eleitos pelo povo estiverem emaranhados na obtenção de vantagens pessoais e partidárias que desprezam o interesse comum. Cada um tem noções mais ou menos claras do que deseja para o país, priorizem elas a liberdade individual ou a igualdade social, a intervenção ou não do Estado na vida privada dos cidadãos, entre tantas outras; contudo, ideais não se sustentam quando são atravessados por beneficiamentos de alguns em detrimento do todo. Por querermos um Brasil melhor, devemos olhar para a Itália de ontem e de hoje. Repetir os mesmos erros será o maior desgaste de energia para mudar tudo e não alterar nada.

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Pablo Antunes é escritor e psicólogo