Dois meses depois do envio ao Congresso Nacional, pelo governo, do projeto de criação do Conselho Federal de Jornalismo (CFJ) e do vazamento na imprensa de um pré-projeto da Ancinav, independente da posição que cada um de nós tenha, algumas observações gerais podem ser feitas sobre o próprio debate do tema.
Primeiro, é inegável que os projetos estão provocando a explicitação pública da posição de alguns dos principais atores – individuais e institucionais – que interferem na formulação das políticas públicas de comunicações no Brasil. Segundo, a explicitação de posições possibilita a comparação do nosso debate com o que ocorre em outras partes do mundo. E, terceiro, o debate evidencia a questão sobre qual o papel do Conselho de Comunicação Social.
A posição quase unânime dos principais colunistas políticos da mídia hegemônica foi de demonizar in limine ambas as propostas. O governo foi acusado de stalinista, totalitário, autoritário, centralizador, dirigista, radical e antidemocrático. Comentarista do Jornal Nacional, com iluminação e trilha sonora de filme de terror, comparou histrionicamente o governo ao personagem de Robert Louis Stevenson: doutor Jekyll bondoso durante o dia e mister Hyde monstruoso à noite. O Correio Braziliense chegou a ilustrar irado artigo de conhecida historiadora e cientista política com quase meia página de um Lula travestido em diabo, pintado em preto, com chifres, orelhas de abano e tridente.
A Associação Nacional dos Jornais, na solenidade em que comemorava os seus 25 anos e dava posse a uma nova diretoria, deixou claro seu repúdio ao CFJ e o desejo de que o governo retirasse o projeto do Congresso Nacional. Em clima de guerra fria, um dos oradores afirmou que ‘o dragão da escuridão permanece vivo’. Isso na presença do ilustre convidado Presidente da República.
Licença prévia
O argumento recorrente da maioria dos que combatem – não de todos – tanto o CFJ quanto a Ancinav, tem sido a defesa da liberdade de expressão e, por conseqüência, da democracia. Clássicos liberais como John Milton e Thomas Jefferson têm sido evocados e a revista Veja chegou até mesmo a publicar um ‘Pequeno dicionário das (re)criações políticas’, anunciando a intenção de ‘contribuir para a exatidão do uso do vernáculo, tão vilipendiado no debate político’.
Neste ‘pequeno dicionário’, liberdade de expressão é um direito natural e absoluto ‘na melhor tradição de John Milton’, equacionado linearmente com liberdade de imprensa. Seu cerceamento, lembra-nos a revista, é uma característica de figuras como Goebbels e Lênin. No Brasil moderno, prossegue o ‘dicionário’ – na avaliação de ministros do governo e de tribunais superiores – o direito de expressão não é absoluto, mas relativo e exige precondições para ser exercido.
Que lições a explicitação da posição e o conteúdo do argumento desses atores nos permitem tirar, a essa altura, sobre o debate em andamento?
Em primeiro lugar, a virulência da reação de colunistas, editoriais, dirigentes e entidades a um projeto de lei enviado ao Congresso e a um pré-projeto em discussão no MinC confirma uma realidade histórica, já do conhecimento de todos aqueles que estudam a mídia no Brasil: esse é um setor de atividade em nossa sociedade que se considera acima do bem e do mal, e, ao contrário de qualquer outro, se julga isento de toda e qualquer forma de regulação. As tentativas nesse sentido – independente de seu mérito – são automaticamente estigmatizadas no seu nascedouro como censura, e por isso dificilmente avançam. O projeto alternativo ao pré-projeto da Ancinav, encaminhado no último dia 4/9 ao MinC, por grandes produtores, exibidores e distribuidores, além do representante da Rede Globo de Televisão, é uma prova disso: não se admite qualquer modificação nas normas atualmente em vigor.
Em segundo lugar, qualquer um que se der ao trabalho de verificar os termos em que ocorre a discussão contemporânea sobre liberdade de expressão e liberdade de imprensa em países como, por exemplo, Estados Unidos e Inglaterra, vai constatar que:
1.
Nem mesmo no tempo de John Milton a liberdade de expressão (e a liberdade de printing/impressão) era considerada um direito absoluto. Aos católicos, por exemplo, esse direito era negado;2.
Faz tempo a justificativa para a liberdade de imprensa não é mais a idéia Miltoniana de um direito natural (individualista) originado em Deus ou na Natureza. J. Stuart Mill, no século 19, já se valia da justificativa utilitarista. E depois do relatório final da Hutchins Commission (1947), nos Estados Unidos, a justificativa passou a ser o compromisso moral defendido por W. E. Hocking (1873-1966). Voltado para o bem comum é ele que fundamenta a teoria da responsabilidade social da imprensa;3.
A origem do cerceamento da liberdade de expressão (censura) não é necessariamente o governo, mas pode ser a autocensura e/ou o poder econômico;4.
Liberdade de expressão não é igual a liberdade de imprensa. Não era no século 17 de John Milton – que defendia o direito individual de impressão sem a necessidade de uma licença prévia da igreja e do Estado – e, com muito mais razão, não é hoje quando liberdade de imprensa não se refere mais à liberdade individual de imprimir, mas sim à liberdade de empresas cujo objetivo principal é viabilizar sua própria permanência no mercado.Qual a justificativa?
Nas principais democracias liberais representativas do mundo existem diferentes formas de regulação da mídia [Media Accountability Systems (MAS), restrições à propriedade cruzada, limites ao alcance percentual de domicílios, dentre outros] e nem por isso elas deixaram de ser democráticas.
As referências a autores como Milton, Jefferson e Mill, quando aparecem, são qualificadas com as circunstâncias de seu tempo (históricas, filosóficas, tecnológicas, legais) e atualizadas para o debate de nossa época. As principais justificativas para as formas de regulação existentes são, além da responsabilidade social (moral) da mídia, a garantia da pluralidade e da diversidade de fontes e conteúdos, princípio liberal basilar para a construção da opinião livre das cidadãs e cidadãos.
Por fim, vale registrar que as audiências públicas sobre as propostas, tanto do CFJ como da Ancinav, até agora realizadas no Senado Federal, por iniciativa de sua Comissão de Educação, confirmam o que alguns dos próprios conselheiros já constataram: com suas atuais atribuições constitucionais de ‘órgão auxiliar’ do Congresso Nacional, o Conselho de Comunicação Social, mais de dois anos após sua instalação, não consegue interferir nos debates mais importantes do setor.
Considerada a centralidade das comunicações e de suas políticas públicas nas sociedades contemporâneas, será esse o papel que se espera ver cumprido pelo único espaço institucional do setor com representação da sociedade civil? Se não pode atuar na área de sua competência específica, qual seria então a justificativa para a existência do Conselho de Comunicação Social?
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Professor aposentado da Universidade de Brasília, fundador e primeiro coordenador do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política da UnB, autor de Mídia: teoria e política (Editora Fundação Perseu Abramo)