Mais uma violação ao direito à liberdade de expressão foi registrada no último mês. A vítima é Piter Júnior, um dos radialistas responsáveis pela Rádio Comunitária Coité FM, da cidade de Conceição de Coité, na Bahia. No dia 8 de março, ele foi condenado pela juíza Karin Almeida Weh de Medeiros, da Justiça Federal da Bahia, à pena de dois anos de detenção (convertida em serviços comunitários) e a pagar uma multa por ter mantido a rádio no ar sem autorização do Ministério das Comunicações.
A sentença atendeu ao pedido do Ministério Público Federal, autor da ação judicial, que se baseou em inquérito da Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) aberto em 2010. Nele, a agência afirmava que as atividades da Rádio Coité deveriam ser suspensas pois esta não possuía outorga (licença de funcionamento). O curioso é que a própria Anatel reconhece que a rádio não causava nenhuma interferência prejudicial e nem risco à operação de qualquer outra atividade. No ano da abertura do inquérito, Piter era o presidente da Associação Comunitária Coité que mantinha a rádio e foi o alvo da denúncia.
A sentença que condenou Piter, baseada no artigo 183 da Lei 9.472/1997 – lei que regula as telecomunicações e não a radiodifusão –, vai na contramão da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que tem se posicionado contra a criminalização das rádios comunitárias devido ao princípio da insignificância, ou seja, a ausência de dano a um outro bem que deva ser protegido.
“Eu já imaginava passar por toda essa situação pra falar a verdade. A história do Brasil principalmente em relação à comunicação social é triste. Senti muita revolta quando recebi a notícia, não pela condenação em si, mas pelo constrangimento, já que a notícia que correu na cidade era a de que eu havia praticado um crime”, afirma Piter.
No entanto, o comunicador conta que tem recebido amplo apoio dos moradores de Conceição de Coité. “A reação das pessoas e o suporte que elas têm me dado é o que tem me fortalecido. São nessas manifestações que vejo o quanto que a rádio é relevante para a comunidade. Por isso, tenho dormido com minha consciência tranquila.”
O caso da Rádio Coité é ainda mais emblemático, pois a rádio busca há mais de 15 anos obter a regularização. Ocorre que durante vários anos o Ministério das Comunicações, responsável por emitir as outorgas a veículos de radiodifusão, tem se omitido na função de apreciar os diversos pedidos de outorga feitos pela rádio desde 1999, colocando diversos obstáculos burocráticos para a obtenção da licença. Por conta da omissão, a Rádio Coité passou a transmitir sua programação mesmo sem a autorização do ministério.
Para a ARTIGO 19, a sentença que condenou Piter e o insistente arquivamento dos pedidos de outorga pelo Ministério das Comunicações representam grave violação ao direito humano à liberdade de expressão e aos diversos tratados internacionais de direitos humanos assinados pelo Brasil. Apesar da pena ter sido convertida em serviços comunitários por Piter não possuir antecedentes criminais, trata-se de decisão que gera um efeito intimidador e que pode causar a autocensura daqueles que lutam diariamente para exercer o direito à comunicação por meio do rádio.
A criminalização das rádios comunitárias gera restrições ilegítimas e tem consequências desproporcionais e nocivas à liberdade de expressão e por consequência, ao sistema democrático. No Brasil, no entanto, penas como a de Piter tem sido aplicadas pelo Judiciário com base em legislações ultrapassadas que não dizem respeito à radiodifusão comunitária. A legislação própria das rádios comunitárias (Lei 9.6112 de 1998) prevê apenas responsabilizações no âmbito administrativo. Ainda, com base nos compromissos assumidos pelo Estado brasileiro, o aparato estatal como um todo, inclusive o Poder Judiciário, tem o dever de garantir o direito à liberdade de expressão e promover medidas que ampliem o pluralismo e diversidade de vozes em odos os meios de comunicação.
História
Fundada em 1998, na cidade de Conceição de Coité, na Bahia, a Rádio Coité é mais que uma simples rádio com programação musical ou jornalística: serve como meio de comunicação para os moradores, que participam ativamente da rádio.
De caráter fortemente educativo, a rádio produz oficinas com os mais variados temas, faz entrevistas, oferece aulas e cursos, sendo um verdadeiro canal de difusão do exercício da cidadania que a muitos é negado, dado à histórica concentração dos meios de comunicação no Brasil.
Desde a sua origem, a rádio buscou se regularizar, enviando o primeiro pedido de outorga ao Ministério das Comunicações em 1999. A resposta, no entanto, só veio em 2003, e mesmo com o atendimento de todos os requisitos, , o ministério arquivou o processo em 2009. Uma vez mais, nesse mesmo ano, a rádio entrou com novo pedido de outorga, que acabou arquivado em 2013, sob a justificativa de que a rádio estava no ar enquanto aguardava a autorização.
Em janeiro de 2014, a ARTIGO 19 apresentou um recurso administrativo da decisão que arquivou o processo de outorga de 2009, argumentando que a rádio estava em seu direito legítimo de funcionar, uma vez que a ausência de autorização decorria da própria ineficiência do Ministério das Comunicações em analisar o pedido em tempo razoável. O recurso também foi negado e até o momento nenhuma justificativa legal para o arquivamento foi apresentada.
Ainda em 2013, a rádio enviou pela terceira vez um pedido de outorga ao Ministério das Comunicações. O órgão informou recentemente que arquivaria o pedido pela mesma justificativa anterior e um novo recurso da ARTIGO 19 contra o arquivamento está pendente de análise.
Apesar das inúmeras tentativas de obtenção da concessão de outorga, durante todo este período a rádio sofreu diversos fechamentos, tendo seus equipamentos apreendidos pela Anatel e Polícia Federal, o que prejudicou seriamente o trabalho que realiza junto à população de Conceição do Coité.
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ARTIGO 19 é uma organização não-governamental de direitos humanos que trabalha pela promoção da liberdade de expressão e do acesso à informação; www.artigo19.org