Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Marcelo Beraba

‘O mau jornalismo e a liberdade de imprensa’, copyright Folha de S. Paulo, 16/5/04

‘A reportagem ‘Hábito de bebericar do presidente vira preocupação nacional’, do jornalista Larry Rohter, correspondente do ‘New York Times’ no Brasil, foi o assunto da semana. Disponível no sábado, 8, no site do jornal americano e publicada no domingo, ela gerou imediata reação do governo brasileiro, que a considerou uma manifestação de ‘calúnia, difamação e preconceito’. Na terça-feira, Rohter teve seu visto de permanência no Brasil cancelado. A discussão, que no início da semana estava centrada no aspecto jornalístico do texto, virou um grande debate sobre liberdade de expressão. Na sexta, o jornalista enviou carta ao governo que foi entendida como uma retratação, e o caso parece encerrado.

Antes de analisar o comportamento da Folha no episódio, vou dar a minha opinião sobre alguns aspectos.

1 – O assunto era pertinente? Um jornalista deve se preocupar com os hábitos ou se interessar pela vida privada de um homem público? Acredito que sim. Como escreveu a advogada Taís Gasparian quinta-feira nesta Folha, ‘como homem público, sua esfera de privacidade é reduzida, pois seus atos importam à nação’.

2 – A reportagem do ‘NYT’ foi bem-feita? Não. Sob o ponto de vista, jornalístico ela é malfeita. É uma colagem de opiniões (o que chamamos no jargão jornalístico, pejorativamente, de recortagem), não há informações novas, as fontes citadas não são corretamente identificadas para que o leitor possa julgar o peso de suas opiniões ou informações e não há o relato de nenhum fato que dê consistência às duas afirmações mais relevantes do texto: a de que o hábito de beber possa estar afetando a performance de Lula no cargo e a de que esse hábito tenha virado uma preocupação nacional.

3 – Foi correta a reação do governo brasileiro à publicação da reportagem? Acho que não. Desde o início, sua resposta foi desproporcional e ajudou a inchar um caso que não tinha tido repercussão na imprensa internacional e que, internamente, tinha atraído o repúdio até da oposição. A decisão de cassar o visto de Rohter foi um erro. Não sob o ponto de vista da imagem do governo, porque esse é um problema do governo, mas sob o ponto de vista da democracia e de suas liberdades. O presidente (não a nação) se sentiu ofendido em sua honra e deveria procurar reparação na Justiça.

4 – A reação da imprensa contra a expulsão foi corporativa? Não acho. É um erro considerar as liberdades de expressão e de imprensa privilégios dos jornalistas. São conquistas democráticas, no nosso caso obtidas com muitas dificuldades, que garantem o mínimo de fiscalização sobre governos cada vez mais fortes e sem controle.’

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‘E a Folha?’, copyright Folha de S. Paulo, 16/5/04

‘A Folha, como sói, teve bons e maus momentos na cobertura.

1 – O jornal foi surpreendentemente ágil ao dar destaque à reportagem do ‘NYT’ e às primeiras reações do governo, já no domingo. Explico a surpresa: a Folha, em várias ocasiões, não se saiu bem na cobertura de fatos que ocorrem no fim de semana. Às vezes, ela só entra no caso na edição de terça.

2 – Na edição de domingo, 9, foi o único jornal que publicou a íntegra da tradução da reportagem. Seus leitores puderam, portanto, julgar com melhores condições a qualidade do texto e se posicionar.

3 – O noticiário de todos os grandes jornais foi mais ou menos parecido, com pequenas diferenças.

4 – Na edição de quarta, 12, o jornal não deu manchete para o principal assunto da véspera, a expulsão do correspondente do ‘NYT’. Preferiu destacar mais a promessa do ministro Palocci de estudar a possibilidade de algum dia fazer alguma alteração na tabela do Imposto de Renda.

5 – A grande edição da Folha foi a de quinta-feira, 13, e por conta das colunas e artigos que publicou. Embora quase todos fossem desfavoráveis à decisão do governo, teve o mérito de reservar seu espaço mais nobre da seção ‘Tendências/Debates’, na página A3, para a defesa da medida feita pelo porta-voz da Presidência, André Singer.

6 – Se foi ágil no deslanche do caso, no domingo, a Folha demorou a expressar para os seus leitores o que achava da reportagem do ‘NYT’ e da repercussão nacional. Seu concorrente, ‘O Estado de S. Paulo’, já na terça-feira publicava seu primeiro editorial sobre o assunto. ‘O Planalto reagiu ‘com o fígado’, uma crítica à reação do governo antes da decisão da expulsão. A credencial do jornalista foi cassada na terça e somente na quinta a Folha publicou o editorial ‘Um erro’.

7 – Grandes casos como esse provocam a participação dos leitores, e é importante que os jornais abram espaços para as manifestações. A Folha publicou, de segunda a sexta, 21 cartas de leitores, sendo que 11 contra a reação e a decisão do governo Lula e dez a favor, um resultado bem equilibrado e bem diferente dos dois outros grandes jornais concorrentes. O ‘Estado’ publicou 34 cartas ao longo da semana, sendo 27 contra o governo, cinco a favor e duas que podem ser classificadas de neutras. E ‘O Globo’ publicou 29 cartas no mesmo período, sendo 18 contra o governo, oito favoráveis, uma resposta oficial e duas neutras.

A Folha deveria estudar a possibilidade de, em casos polêmicos como esse, abrir mais espaço para as opiniões dos leitores.’

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‘‘O ‘NYT’ continua muito arrogante’’, copyright Folha de S. Paulo, 16/5/04

‘Recebi ontem uma mensagem do ombudsman do ‘NYT’, o editor público Daniel Okrent, sobre o caso Rohter. ‘Creio que o texto foi TECNICAMENTE correto, no sentido de que as acusações foram atribuídas a fontes identificadas, mas insisto no termo ‘tecnicamente’. Gostaria que tivesse oferecido mais contexto sobre as motivações das pessoas que ele ouviu e fiquei muito perturbado pela fotografia, que no contexto pareceu ter sido apresentada como prova. Teria sido da mesma forma correto mostrar uma foto de Lula NÃO bebendo, mas isso não produziria o mesmo efeito. Devo acrescentar que a decisão de cancelar o visto de Rohter não se justifica se cremos na liberdade de imprensa -isso sugere que escrever criticamente pode resultar em punições’.

Okrent, 56, é o editor público do ‘NYT’ desde dezembro de 2003. A função foi criada após se descobrir que um dos repórteres do jornal, Jayson Blair, inventara várias reportagens.Entrevistei Okrent no dia 3, durante a conferência da ONO (organização que reúne ombudsmans de mídia), em St. Petersburg (EUA), antes, portanto, da reportagem sobre Lula. Nesta entrevista, ele fala de suas dificuldades como ombudsman, sobre a crise do jornalismo e sobre a arrogância do jornal de Nova York.

Ombudsman – Como está o trabalho de editor público?

Daniel Okrent – Muito tenso, no meio de muitas discussões entre leitores irados e jornalistas na defensiva.

Ombudsman – Como vê a crise do jornalismo?

Okrent – Nos EUA houve uma crise progressiva por duas razões principais: pela perda de confiança do público e pela situação política do país. E há um outro problema sério. Não está claro o papel dos jornais neste momento. Somos de uma época em que os jornais tinham um papel dominante. Agora, com as TVs a cabo, internet e outros meios, há um fracionamento. Antes, as fontes falavam para poucos veículos, e era suficiente. Agora, não mais. A circulação dos jornais caiu, mas o número das pessoas que buscam informações em outros meios cresceu.

Ombudsman – Você acredita que o ombudsman possa melhorar um jornal?

Okrent – Pode ajudar o jornal a estar mais aberto aos leitores. Não é que melhore, mas ajuda jornal e leitores a se entenderem e a evitar erros horríveis.

Ombudsman – O grande problema do ‘NYT’, e que provocou a crise Blair e suas conseqüências, foi a arrogância?

Okrent – Sim, foi a arrogância. E o jornal continua muito arrogante. Quando lhe dizem durante muito tempo que você é o melhor e o mais importante, você começa a acreditar. E, se me permite, ele é.’