‘A semana foi marcada pela repercussão dos shows de duas grandes bandas de rock de passagem pelo Brasil, os Rolling Stones e o U2. Os Stones se apresentaram no Rio, no sábado, dia 18, e o U2, em São Paulo, na segunda-feira e na terça-feira.
A Folha deu destaque para os roqueiros. Suas fotos estiveram na Primeira Página de sexta-feira, dia 17, até terça-feira, dia 21. O jornal publicou um caderno especial com informações e serviços sobre os shows e carimbou as duas bandas: ‘Stones, o Carnaval do rock’ e ‘U2, a política do rock’. No sábado, atrasou o fechamento da edição final de domingo para incluir a crônica do show no Rio -’Stones reúnem 1,3 mi em Copacabana’.
Foi um esforço de reportagem que teria ficado melhor com menos adjetivos e um pouco mais de preocupação em dimensionar a multidão presente. Teria sido impossível contá-la, mas como o jornal jogou seu foco no número (‘Show histórico dos Stones reúne 1,3 mi’), e não na qualidade do show, tinha a obrigação de fornecer para os leitores alguns indicadores do espaço ocupado pela platéia ou de revelar os critérios utilizados pelo Corpo de Bombeiros para chegar ao número que virou oficial. É sabido como esses cálculos são feitos, sem rigor. Servem apenas para sustentar títulos e criar lendas. Já foi o tempo em que o jornal se preocupava com a precisão desse tipo de informação, que exige planejamento e auxílio técnico.
No mesmo domingo, o jornal publicou uma entrevista com Bono, o vocalista do U2. Na segunda-feira, noticiou o encontro dele com Lula na Granja do Torto, em Brasília. E, na terça-feira, publicou um artigo do editor da ‘Ilustrada’, Marcos Augusto Gonçalves, que provocou a maior enxurrada de cartas de leitores da semana.
O artigo –‘Bono acredita em duendes progressistas do 3º mundo’- chamava a estrela do U2 de ‘chato’, por personificar a ‘chatice da correção política’, e ‘equivocado’, por ter emprestado ‘seu prestígio a Lula’. Era uma provocação, e a linha jornalística da cobertura acompanhava o tom. O título da ‘Ilustrada’ foi ‘Showmício’.
O jornal publicou o artigo com destaque. Na quarta-feira, deu o mesmo realce na Primeira Página a uma réplica da editora do ‘Folhateen’, Sylvia Colombo, ‘Demagogia não tira mérito do U2’. E editou, no ‘Painel do Leitor’, quatro cartas que resumiam a ira dos fãs. A crítica de Marcos Augusto foi considerada ‘tola e infantil’, ‘absurda’ e anti-PT. O ator Sérgio Mamberti, um dos secretários do Ministério da Cultura, chegou a comparar o editor a Jean-Marie Le Pen, líder da extrema direita francesa.
O ‘Painel do Leitor’ havia recebido até sexta-feira cerca de 80 mensagens sobre os shows. Apenas duas concordavam com os comentários de Marcos Augusto. Recebi 41 mensagens: 25 com críticas ao editor da ‘Ilustrada’, oito com críticas e duas com elogios ao artigo da editora do ‘Folhateen’, e seis outros comentários gerais sobre a cobertura. Ou seja, quase uma unanimidade.
Marcos Augusto foi editor da ‘Ilustrada’ nos idos de 80 e dirigiu várias editorias até reassumir o caderno, em janeiro. Recebi dele um comentário sobre a repercussão do artigo que remete para o projeto editorial da Folha para a área de cultura.
‘A ‘Ilustrada’ exerceu em certos momentos um papel questionador e polêmico que pretendo reavivar. Creio que o caderno não deveria tratar apenas da agenda e refletir expectativas previsíveis. Reiterar o senso comum do meio cultural é uma tentação. Fica todo mundo de bem, numa espécie de ‘acordão’ tácito que mantém recalcados temas incômodos.
Achei saudável ter recebido elogios entusiasmados de pessoas de esquerda por uma reportagem sobre a ‘nova direita’ e, logo depois, ter sido comparado a Le Pen pelo Sergio Mamberti, um sujeito simpático, mas que não entendeu nada. O artigo era uma provocação bem-humorada, criticando o gritante marketing político do cantor e os clichês politicamente corretos que se transformaram numa espécie de etiqueta do bom-mocismo contemporâneo. Não é, aliás, uma crítica nova. As reações foram fortes porque mexi com a idolatria, o fundamentalismo juvenil dos fãs. E porque eu mencionei o fato de Bono, de maneira acrítica e oportunista, ter corrido ao Palácio para posar ao lado de um presidente cujo partido, lamentavelmente, está envolvido em casos de corrupção. É uma tradição da Folha ser pluralista e crítica. E, quanto a isso, é bom lembrar que a ‘Ilustrada’ publicou no dia seguinte, com amplo destaque, uma réplica ao meu texto, escrita pela editora do ‘Folhateen’.
Fica claro, portanto, que o novo editor da ‘Ilustrada’ está empenhado em recuperar o espaço das discussões culturais, uma marca do caderno que se perdeu com o tempo e o envelhecimento do jornal. O ‘Manual da Redação’ estimula a polêmica. ‘Elas devem estar presentes em artigos e críticas e se refletir em reportagens e entrevistas.’
É um caminho. Vai dar certo? Dependerá da sensibilidade do jornal para captar a confusão que está no ar e para dar um tratamento jornalístico menos superficial, que escape da armadilha da polêmica pela polêmica.’
***
‘Charges – revolução pelo cartum’, copyright Folha de S. Paulo, 26/2/06.
‘José Alberto Lovetro é o cartunista JAL, presidente da Associação dos Cartunistas do Brasil. Seu comentário a respeito da cobertura da imprensa brasileira no caso das charges que retratam Muhammad e da reação violenta que provocaram nos países muçulmanos:
‘O grande chargista Otávio provocou a ira dos católicos quando satirizou a ida do time do Santos à Basílica de Aparecida para pedir proteção, antes de uma partida decisiva com o rival Corinthians. Desenhou a padroeira do Brasil com a cara do Pelé. Uma multidão de religiosos cercou a porta do jornal ‘Última Hora’ de São Paulo, que teve de encerrar o expediente por um bom tempo. Otávio foi demitido e teve de pedir proteção policial. No entanto, Henfil, outro grande cartunista, fez dos Fradinhos o ápice da escatologia e libertinagem com o pano de fundo religioso e não recebeu o mesmo tratamento.
A diferença é que Otávio quis homenagear Pelé, uma instituição nacional, quase um deus, mas atingiu a cultura religiosa de um país essencialmente católico. Já Henfil foi visceral contra a ditadura e acertou em demonstrar que todos os meios de resistência eram válidos para esse fim. Foi aceito como um inquisidor dos métodos do poder militar com apoio dos religiosos.
São dois casos que retratam o ‘risco de cálculo’ do cartunista em seu trabalho. O que aconteceu nas charges publicadas na Dinamarca é que miravam a condenação da violência dos homens-bomba, mas viraram apenas provocação religiosa para um povo onde religião e política se misturam. Desnecessário o uso do profeta Muhammad para passar o recado.
Em nosso documentário ‘Pasquim, a Revolução pelo Cartum’ (TV Sesc/Senac-1999), Millôr nos coloca que ‘quando algum assunto cai nas mãos dos cartunistas, não há mais salvação’. O poder da charge cria e destrói ícones com seu simbolismo exacerbado. A função do humor é questionar o poder a todo o momento. Por isso é altamente revolucionário.
O que tem faltado às diversas páginas e ao tempo gastos na imprensa sobre esse caso é uma necessária discussão sobre o papel da charge. Houve casos de jornais na TV que um dia denominavam as charges de caricaturas e, no outro, de quadrinhos. Uma vergonha para quem fez faculdade de jornalismo e nem sabe o que é charge. Palavra vinda do francês, charge quer dizer ‘carga’. Uma carga sobre um assunto factual e jornalístico.
Faltou à imprensa informar a respeito da linguagem da charge e entrevistar chargistas sobre a discussão ‘liberdade de imprensa versus linguagem corrosiva do desenho de humor’. Não vi nada disso levado a fundo’.’