Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Mito do 4º poder já não é consenso

Com este artigo, intento oferecer uma visão de extensão continental, de abrangência latino-americana, daquilo que está sendo chamado de guerra de 4ª geração, ou a luta pela mídia. Entendo que se apontar aqui o marco mais genérico será possível fazer a conexão com o que passa no Brasil, quando estamos a menos de um mês da 1ª Conferência Nacional de Comunicação Social de nossa história (14 a 17 de dezembro, Brasília). Para que tenhamos idéia deste ineditismo, o mesmo país que tem larga tradição conferencista jamais realizou algo semelhante nesta área. Entendo que isto se dá por distintas razões e cabe aqui encontrarmos aquelas que se confirmam conjuntamente com os países hermanos.

Na atualidade latino-americana e na etapa do capitalismo de tipo informacional-cognitivo, a luta contra os agentes econômico-políticos representados pelos meios massivos e líderes de oligopólios de comunicação social se faz a cada dia mais urgente. Esta luta ultrapassa os embates contra as famílias controladoras de conglomerados (grupos econômicos) como Televisa, grupo Clarín, Organizações Globo, grupo Caracol, Globovisión, dentre outros afiliados ao grupo de Diários América e defendidas pela Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP). O embate de fundo é o não reconhecimento por parte de amplos setores populares de que o modelo de comunicação como negócio seja legítimo para intermediar (fazer mídia) junto ao povo e às maiorias. O mito do 4º poder (de origem liberal-democrático-burguês) definitivamente já não é consenso entre os latino-americanos.

Três alvos simultâneos

A partir do início da década de 1990, a privatização de tipo selvagem liberou a demanda reprimida por serviços de telefonia e, com o advento primeiro da mobilidade (telefonia celular) e posteriormente com a internet discada, proporcionou aos cidadãos latino-americanos o uso das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) em suas vidas cotidianas, por mais humildes que estas fossem. Concomitantemente, a cabo-difusão levou a um número considerável de lares o acesso a canais estrangeiros e uma avalanche de bens simbólicos e produtos midiáticos aportou em residências, locais de trabalho e de lazer.

Já na metade desta primeira década do século 21, com a popularização da banda larga e o fenômeno da convergência – quando todos os conteúdos passam a poder ser comprimidos e convertidos em códigos binários (0 ou 1), pulveriza e dissemina o acesso da internet, até alimenta e proporciona a contestação via mídia digital, mas, de fato, faz com que ambientes virtuais produzidos por transnacionais de nova tecnologia atravessem e façam a intermediação entre as pessoas. Assim, as sociedades latino-americanas estabelecem relações de empatia e carinho, de proximidade cotidiana, com grandes portais de telecomunicações e internet, justo os que fornecem ferramentas e ambientes de interatividade para usos e costumes, atividades do cotidiano e também a oportunidade de novas relações pessoais. Isto não implica em criar, a partir dos ambientes virtuais, da portabilidade e das novas interações via TICs, a criar necessariamente algo novo e transformador. A possibilidade está e abundam bons exemplos, mas a enorme maioria dos latino-americanos faz uso da internet (por exemplo) para interações de tipo corriqueiro e individual.

O mesmo se dá na relação com as transnacionais de telefonia móvel, que na maior parte das vezes também abocanhou a telefonia fixa antes estatizada na maioria de nossos países. Estas transnacionais de telecomunicações não são muitas, operando em quase todo o continente empresas como a Telefónica, de Espanha; sua sócia menor, a Portugal Telecom (PT); a Itália Telecom (que tenta se retirar dos negócios por aqui); a France Telecom; o grupo mexicano Slim (cuja marca líder é a Claro), além de alguns capitais nacionais que puderam sobreviver à entrada destes operadores. Neste item se destaca, no caso brasileiro, a Oi (ex-Telemar) que expande seu negócio a partir da compra da Brasil Telecom (basicamente composta por Telecom Itália e o capital do City Group) e, como todo grande negócio (em termos de volume e recurso essa escala de grandeza) brasileiro, os recursos para a fusão-aquisição saíram dos cofres do Tesouro Nacional e foram repassados através do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Enfim, este quadro apenas ressalta a relevância de se dar o embate contra três alvos simultâneos.

Reinventar a democracia

Um é primário, e facilmente identificado entre os afiliados na SIP. Ou seja, deslegitimar a pretensão da mídia corporativa, de motivação econômica e política conservadora, portadora de ideologia capitalista por sua própria natureza. O segundo alvo são as transnacionais de telecomunicações, que, através da convergência se tornam essenciais na vida cotidiana dos povos do continente. A construção de infovias públicas, megavias de motivação científica e ambientes livres (tipo software livres, ambientes wikis, provedores ilimitados) é tarefa estratégica tanto para o movimento popular como até mesmo para arrancar estas conquistas, na base da pressão, dos governos que se reivindicam do campo nacional e popular. Por fim, o terceiro alvo se dá justamente nos Estados, que quando fazem mídia a realizam como mídia de governo ou mídia de poderes da República liberal-burguesa. Enfrentar as pretensões do Estado de aplacar a iniciativa popular e substituir o conceito de público pelo conceito de estatal é importante e deve ser dedicada atenção a este fator pelos ativistas de mídia popular, alternativa, comunitária ou livre.

No conjunto destas três frentes de luta contra alvos simultâneos e na maioria das vezes, complementares e aliados (governos de turno + transnacionais de telecomunicação + oligarquias da comunicação social), está o desafio permanente de criar o antídoto para a verticalidade instrumental no ato de comunicar. Isto implica a consciência do esforço de criar e reforçar uma esfera pública midiática no campo popular, como parte fundamental de um espaço público de debates entre a multiplicidade de sujeitos sociais como uma frente de classes oprimidas. Esta esfera pública das mídias dos povos do Continente deve servir de suporte informacional, ideológico e cultural das formas de poder popular que vêm sendo realizadas no continente. Um dos papéis desta nova mídia é ir se generalizando regionalmente em nossos países, dotando-se de democracia de base e direta (e não estruturada na forma de empresa ou exército), sendo por si só exemplo, reflexo e intenção política de se radicalizar a democracia política como fundamento do igualitarismo social.

Diante da enormidade desta tarefa, entendo que toda e qualquer publicação alternativa (impressa ou eletrônica), todo e qualquer programa audiovisual (seja de rádio ou TV, por radiofreqüência ou via digital), recobram de importância. No horizonte está a perspectiva de transformar as sociedades estruturalmente injustas da América Latina, reinventando a democracia através da mídia entre iguais. Esta luta apenas começa.

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Jornalista e cientista político com doutorado e mestrado pela UFRGS, docente de comunicação e pesquisador 1 da Unisinos e editor do portal Estratégia & Análise