Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Movimento para superar o impasse

A reunião de quinta-feira (13/1), entre o presidente Lula e parte de seu ministério, que resultou na retirada da parte regulatória do controvertido projeto da Ancinav, deixou no ar a dúvida se isso representaria um recuo do governo ante as pressões que vinha recebendo de todos os lados.

Na verdade, a ação faz parte de uma estratégia dupla. A primeira, de sobrevivência e continuidade. Esta estratégia foi, durante a reunião ministerial, assumida diretamente pelo presidente da República. Não seria um bom sintoma de inteligência política desconsiderar o desgaste que governo pode ter sofrido desde que o projeto da Ancinav passou a ser lido como um instrumento de dirigismo cultural ou cerceamento de liberdade de expressão. Muito menos esperar que o governo entrasse no Congresso para perder – e ainda por cima perder com um projeto que se tornou impopular.

Do ponto de vista mais técnico e menos político, é muito difícil – e, mais do que isso, improdutivo – levar adiante o projeto de uma agência reguladora nesse clima, já que, na melhor das hipóteses, haveria combates onde só se pode construir alguma coisa com cooperação.

A segunda estratégia é a de recolocação do tema no espaço onde ele havia se abrigado desde pelo menos o primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso: o de uma lei geral dos meios de comunicação de massa (que já teve outros nomes, como Lei Geral de Comunicação Eletrônica de Massa). Muitos ministros se empenharam por uma legislação dessa natureza: Sergio Motta e Juarez Quadros, para não ir mais longe. E até mesmo Gilberto Gil, que nas ‘Diretrizes para o cinema e o audiovisual em 2004/2005’, apresentadas em fevereiro de 2004, já preconizava uma ‘lei geral do cinema e do audiovisual’, que segue na mesma direção.

Há uma grande diferença agora, representada justamente pela construção de massa crítica que os debates sobre a Ancinav vêm suscitando desde que o governo apresentou o seu projeto original. Se não existissem outros, esse já seria uma enorme contribuição do projeto para a sociedade brasileira – onde se inclui naturalmente o setor audiovisual, que tem sido estimulado a refletir sobre todo o projeto e não apenas sobre o que considera nocivo nele.

Novo e bom

O fato de a Ancinav em si passar a focar o fomento e a fiscalização do setor é positivo demais para ser minimizado. Os mecanismos de produção para o cinema e a televisão estão passando por transformações mais rápidas do que a capacidade de adaptação das formas de fomento.

O cinema resolveu parcialmente a questão dos filmes voltados para o grande público – por meio das parcerias entre as majors, o artigo 3o da Lei do Audiovisual e a Globofilmes. É bom que isso tenha acontecido, porque solucionou o problema de um terço da produção brasileira – cerca de dez filmes por ano, justamente os que detém maior condição de falar com o grande público. Mas temos que pensar nos outros dois terços da produção, nos filmes voltados para um ideário comercial diferente.

A criação artística e a indústria cultural se fundamentam na multiplicidade das formas de expressão. Por isso, é essencial que não haja um, mas vários tipos de cinema nacionais. Porém, os outros tipos de cinema estão engasgando no gargalo de um sistema de distribuição e exibição que não reconhece a pluralidade criativa e, sobretudo, em mecanismos de fomento viciados ou ineficazes.

Esse quadro embute o enorme risco de gerar uma produção cinematográfica brasileira monolítica, o que não interessa a ninguém. A arquitetura dos mercados de distribuição para os filmes independentes – na qual se inclui a produção experimental, voltada para a expressão pura – demonstra reiterativamente que não se pode pensar num forte mercado para a produção independente onde não exista um mercado sólido para a produção institucionalizada.

A televisão mostra isso melhor do que ninguém. Basta se fixar no exemplo recente de uma bela produção de Luis Fernando Carvalho, Hoje é dia de Maria. Linguagem ousada, produção refinada, fora dos parâmetros que são normalmente atribuídos à televisão. Apesar dos temores, funcionou junto ao grande público, com médias superiores a 30 pontos de audiência. Isto só foi possível porque a produção se insere num ambiente comercial poderoso, que teve o bom senso de investir também no que é novo e no que é bom. Mas se fosse levado ao ar num ambiente comercial mais frágil, uma obra inovadora como Hoje é dia de Maria não chegaria aos dois dígitos.

Avanço importante

Isso lembra a necessidade de criação de um ambiente televisivo mais sólido e mais sensível à necessidade de diversificação, melhoria da qualidade e desempenho comercial de todas as emissoras. O que inclui o aperfeiçoamento (ou criação) de novas formas de fomento também para a produção de televisão. A diferença é que a produção televisiva nasce atrelada à distribuição (o que de certo modo a torna semelhante ao cinema viabilizado pelas grandes distribuidoras) e, por isso, é necessário que existam palcos para o diálogo entre quem produz, quem exibe e quem financia essa produção.

Uma agência focada no fomento à produção audiovisual e na fiscalização da atividade é urgente para que a produção audiovisual brasileira tenha por onde crescer. Ao mesmo tempo, como lembrou o ministro da Cultura, não há fiscalização sem regulação, porque só se fiscaliza o que as leis determinam. E é muito realista que a lei geral dos meios de comunicação de massa seja debatida num fórum bem mais amplo, como vai passar a acontecer.

O impasse a que a discussão sobre a Ancinav havia chegado foi resolvido de maneira sensata. Correndo paralelamente no Congresso, a Lei Geral das Comunicações e o projeto de criação da Ancinav podem modernizar uma legislação que está enormemente defasada – e criar condições de colaboração entre as partes envolvidas. Neste sentido, o que acaba de acontecer não deve ser visto como um recuo do governo, mas como um significativo avanço para a construção de um ambiente mais saudável para o audiovisual brasileiro.