‘Bocão racista faz apologia à tortura: ação pública já.’ Com este título, divulguei uma carta indignada contra programas sensacionalistas exibidos pelas TVs baianas, como segue abaixo na íntegra. O resultado foi uma mobilização rápida de entidades e lideranças, principalmente aquelas ligadas ao movimento negro, como o Conselho de Desenvolvimento da Comunidade Negra (CDCN), dirigido por Vilma Reis, o Instituto de Mídia Étnica, o Movimento Reaja ou Será Morto, Reaja ou Será Morta.
O CDCN procurou o promotor Almiro Sena, que imediatamente abraçou a causa e abriu uma ação civil pública contra o programa Na Mira, veiculado pela TV Aratu, e, no mesmo processo, lembrou que as TVs Aratu e Itapoan assinaram um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) para que os seus respectivos programas Que Venha o Povo (da Aratu) e Se Liga Bocão (da Itapoan) não mais veiculassem cenas ofensivas.
Segue a carta que reinstalou o debate e a nota divulgada pela assessoria de comunicação do Ministério Público divulgando a Ação Civil Pública.
Racista até o último minuto
Não é possível que a sociedade organizada permita que o programa Se liga bocão, exibido pela TV Itapoan da Bahia, vá ao ar. Hoje, 10 de março de 2009, foram exibidas cenas de tortura. Um jovem era queimado com uma faca quente, enquanto o apresentador, Zé Eduardo, dizia que aquilo serviria de exemplo para aqueles que usam droga ou não respeitam os pais. Uma ação pública contra o programa Se liga bocão, assinada por pessoas e entidades de direitos humanos, se faz mais do que urgente.
Não é possível que se chame isso de jornalismo, quando a essa profissão cabe a defesa dos direitos, das leis e do público. A imprensa não pode agir acima das leis nacionais e internacionais. A tortura é um crime, rechaçado por tratados internacionais assinados por quase todos os países do mundo. Recentemente, o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, reconheceu os crimes de tortura, entre outros, cometidos na prisão de Guantánamo, em Cuba, uma base avançada dos Estados Unidos, e decretou o seu fim, o que acontecerá dentro de um ano. Os Estados Unidos que já foram o grande mentor e exportador de técnicas de tortura para todo o continente americano e hoje reconhecem a desumanidade desse ato.
Não é possível permitir a violação constante aos direitos humanos praticada pelo programa Se liga bocão. Os presidiários e todos aqueles que cometeram qualquer crime são tratados como bichos que devem ser exterminados. O apresentador faz uma apologia à pena de morte. Deve-se lembrar que o Brasil não permite, em suas leis, a pena capital. Mais uma vez, ele opera acima da lei. Só não opera acima da ‘lei’ da prática policial cotidiana: o extermínio de negros pobres, sem julgamento. Zé Eduardo emite sons de tiros, todos endereçados a essas pessoas. E quem são essas pessoas? No caso de Salvador, trata-se de jovens negros, pobres, moradores das periferias, que cometeram algum ato tipificado como criminoso, ou simplesmente jovens negros que perambulam sem trabalho e sem formação pelas periferias. Racista, racista, racista até o último minuto.
Violação sistemática de direitos fundamentais
Não é possível construir um estado sem lei na mídia, um estado que passa por cima de todos os direitos conquistados ao longo dos últimos 50 anos. Um programa racista, xenófobo, homofóbico… Temos que lembrar de todos os que morreram pelas pequenas garantias que temos hoje antes de ligar a televisão e grudar o olho um minuto sequer diante desse programa.
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Na Mira
é alvo de ação do MPMaiama Cardoso # Assessoria de Comunicação Social MP-BA, 8/4/2009 (http://www.mp.ba.gov.br/visualizar.asp?cont=1480)
Acusado de, ‘sob o pretexto de `mostrar a vida real´’, apresentar diariamente cenas de extrema violência e reportagens constrangendo, ilegalmente e de forma humilhante, pessoas negras e pobres que são presas pela polícia, ‘ofendendo, dessa forma, direitos e garantias fundamentais da pessoa humana’, o programa Na Mira, veiculado pela TV Aratu, é alvo de uma ação civil pública ajuizada ontem, dia 7/4, pelos promotores de Justiça Almiro Sena (Cidadania) e Isabel Adelaide Moura (Criminal). Na ação, os representantes do Ministério Público estadual solicitam à Justiça que determine a imediata suspensão da veiculação do programa.
O Na Mira, destacam os promotores de Justiça, exibe em pleno horário de almoço cenas com cadáveres ensangüentados, pessoas torturadas e assassinadas. ‘É a barbárie explicitamente espetacularizada’, reclamam eles, lembrando que isso ocorre em horário plenamente acessível a crianças. Segundo Almiro Sena e Isabel Adelaide, ‘o problema deste programa não é o de eventualmente ter ultrapassado, nesse ou naquele ponto, os limites do direito humano fundamental da liberdade de `expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independente de censura ou licença´. O problema é muito maior, pois o Na Mira viola de forma sistemática, reiterada e ostensiva, uma série de outros direitos fundamentais igualmente importantes.’
Direito de imagem sem valor legal
Para eles, ‘ao realizar a execração pública, inclusive com xingamentos, de pessoas suspeitas, processadas ou condenadas pela prática de algum crime, o programa fomenta a discriminação desses e de todos que se encontrem em situação semelhante, mormente a população afrodescendente moradora de bairros periféricos, por ser essa a que é, quase exclusivamente, mostrada diariamente’. Dessa exposição pública, decorre absurda violação da Constituição Federal no que concerne ao princípio que assinala que ‘ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória’. Isso, salientam os promotores, sem mencionar que, socialmente, a pessoa, ainda que posteriormente absolvida, já está antecipadamente condenada e com razoável parcela da sua vida prejudicada.
Almiro Sena e Isabel Adelaide salientam ainda que a conduta do programa se torna mais reprovável diante do ordenamento jurídico porque a ofensa do Na Mira aos direitos fundamentais atinge pessoas que se encontram em situação de dupla vulnerabilidade: a primeira em razão da condição social e econômica, e a segunda decorrente da situação de preso. Além disso, ressaltam eles, justamente por se tratar de pessoa presa provisoriamente, sobretudo a quem é imputada delito grave, impõe-se garantir a preservação da imagem a fim de se impedir a execração pública de alguém que sequer teve a oportunidade de se defender perante as instâncias legais competentes.
Ainda segundo os promotores, qualquer autorização assinada pelo preso concedendo o direito de veicular a sua imagem não poder ter valor legal. Isso porque a autorização só teria valor jurídico se proferida por agente capaz, afirmam eles, destacando que a capacidade, neste caso, encontra-se acentuadamente abalada pela situação de extrema vulnerabilidade em que está o cedente.
‘Homens de capa preta’
Outra acusação feita pelos promotores é a de que o programa também vem chancelando a prática de abuso de autoridade por parte de agentes e delegados de polícia, que exibem de forma tirana imagens de pessoas que ainda serão submetidas ao devido processo legal, ‘fato que já motivou uma recomendação do Grupo de Atuação Especial para o Controle Externo da Atividade Policial (Gacep)’. O Na Mira, frisam os membros do MP, parece se inserir no rol dos programas jornalísticos de apelo popular, em que são apresentados graves problemas enfrentados pela população mais carente, acabando por se tornar uma espécie de ‘ouvidor’ da sociedade, mas isso ‘é só aparência’. Este programa, ‘além de não prestar qualquer serviço dessa natureza, utiliza-se covardemente da justificativa de servir ao interesse público para fazer exatamente o oposto. Ou será que humilhar, xingar, ridicularizar e expor indevidamente, e da pior forma possível, a imagem de pessoas pobres ou paupérrimas presas nas delegacias de polícia é atender ao interesse público?’
Também lembrados em reunião realizada pelo MP, em 12 de fevereiro, com os diretores da TVs Aratu e Itapoan com o objetivo de coibir eventuais abusos cometidos em programas das duas emissoras, o Que Venha o Povo (da Aratu) e o Se Liga Bocão (da Itapoan) estão sendo analisados pelos promotores, que informaram que estes programas, a despeito de eventualmente também veicularem cenas ofensivas, fazem-no em um grau menor, de forma não sistemática e não direcionada, o que possibilita a proposição de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC).
As diferenças, afirma Almiro Sena, não são apenas em relação ao grau de lesão aos direitos humanos, mas porque o Na Mira, após a reunião que o MP realizou, não melhorou o seu conteúdo, passando a exibir tantas ou mais violações. Além disso, passou a fazer referências de que iria continuar com o seu formato original, tornando-se mais incisivo e proferindo provocações contra os, pelo apresentador denominados, ‘homens de capa preta’.
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Jornalista, Salvador, BA