Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Muito além da tecnologia

No filme Matrix, o herói, Neo, passa a perceber a realidade quando começa a ver, para além de árvores, prédios e pessoas, o conjunto de letras e números que realmente os compõem. Fora da ficção, a história é parecida, ao menos no mundo digital. Por trás de imagens, sons e textos, estão zeros e uns (0 e 1), cujas combinações reproduzem boa parte do que vemos e conhecemos. O primeiro a utilizar esse tipo de suporte para as informações foi o computador.


Depois, as conhecidas ligações por pulso dos telefones se transformaram em chamadas que podem até ser feitas sem tocar no aparelho, usando o comando de voz. Recentemente, foi a vez da televisão, que migrou de suas ondas eletromagnéticas – aquelas por vezes tomadas por ‘fantasmas’ – para a transmissão digitalizada. Com a nova era digital, instrumentos que antes só faziam uma coisa hoje transmitem voz, dados e imagens, recebem sinais por antena e acessam a internet. O celular moderno é o grande símbolo deste momento, chamado por especialistas de ‘convergência midiática’.


Na rabeira deste processo está o rádio. Meio de comunicação fundamental para o desenvolvimento da mídia no Brasil, viveu sua ‘época de ouro’ nas décadas de 1940 e 1950 e até hoje é o principal veículo de informação da população do interior e de quem está em trânsito nas regiões urbanas. Segundo o projeto Donos da Mídia, que tem um mapa dos meios de comunicação no país, há atualmente 6.306 emissoras no Brasil, 2.055 que transmitem em FM, 1.702 em AM, 66 em ondas curtas, 75 em ondas tropicais e 2.408 são estações comunitárias. De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), estes veículos estão em 89% dos lares brasileiros. É o segundo meio de comunicação em penetração, atrás da TV, presente em 95% das casas.


Uma ameaça aos negócios


Em vários países, esta mudança para o padrão digital já está em curso. Com a nova tecnologia, surgem possibilidades como a melhoria do som, maior interatividade e veiculação de mais de uma programação no mesmo canal (ver no final da matéria). Para a professora Nélia Del Bianco, da Universidade de Brasília, a tendência é que o rádio digital provoque uma ‘hiperespecialização da programação radiofônica não somente pela música, com seus mais variados gêneros e estilos, mas essencialmente pela temática’. Por exemplo, uma emissora poderia ter uma programação apenas de música pop, outra só com notícias, esportes, serviços e assim por diante.


Desde a entrada de Hélio Costa no Ministério das Comunicações (Minicom), em 2005, a equipe da pasta discute a implantação do rádio digital no Brasil. Chegou-se a formar um conselho consultivo com a participação de acadêmicos, empresários e representantes de entidades da sociedade civil para auxiliar o ministro na definição do modelo. O grupo começou a se reunir em 2007, mas foi desmontado poucas reuniões depois. As discussões, no entanto, eram restritas a qual dos padrões internacionais seria adotado.


Hélio Costa manifestou a preferência pelo HD Rádio, da empresa norte-americana Ibiquity, padrão conhecido no meio especializado como Iboc, por realizar a transmissão do sinal digital dentro dos mesmos canal e faixa de frequência (In Band on Channel). Na prática, significaria que para ouvir uma emissora simplesmente se deveria sintonizar a mesma frequência da rádio no sistema analógico.


O padrão da empresa dos EUA era a escolha das maiores rádios comerciais por permitir uma transição sem a mudança dos canais. Este modelo evitaria uma reorganização das frequências e impediria a entrada de mais emissoras. No entanto, em vez de servir à ampliação de fontes e da concorrência, os empreendedores viram nessa possível reorganização uma ameaça aos negócios.


Princípios e objetivos


Os testes com o HD Rádio revelaram problemas. ‘Ele vem sendo testado no Brasil desde 2005. O resultado foi muito ruim, apresentando falhas na cobertura e delay [atraso entre a transmissão e a recepção] muito grande’, conta Arthur William, pesquisador e integrante do Coletivo Brasil de Comunicação Social (Intervozes). Outro ponto negativo é o fato de a tecnologia ser proprietária. Por isso, as emissoras teriam de pagar para utilizá-la. Este fato preocupa várias estações, especialmente as comerciais de pequeno porte, as educativas e as comunitárias.


O resultado dos testes fez com que o Minicom e parte dos radiodifusores passasse a cogitar outro padrão, o Digital Radio Mondiale (DRM), criado por um consórcio de rádios públicas, adotado na Europa e em parte da Ásia. O principal obstáculo para a sua adoção no Brasil é o fato do uso da faixa FM não estar consolidado. Mas testes realizados no início do ano mostraram um desempenho melhor do que o padrão da Ibiquity.


Sem decidir, Hélio Costa optou por uma saída ‘à mineira’ e publicou, no seu último dia à frente do Ministério, a portaria que cria o Sistema Brasileiro de Rádio Digital (SBRD) apenas com princípios e objetivos, mas sem a definição do padrão. O documento, de 31 de março, estabelece que o sistema deva promover a inclusão social e a diversidade cultural do país, propiciar a expansão do setor, possibilitar a participação das universidades e seus pesquisadores na adequação da tecnologia às demandas nacionais e criar uma rede de educação à distância. O SBRD também deve, de acordo com o texto, proporcionar o uso eficiente das radiofrequências, garantir a cobertura pelo sinal digital de áreas maiores do que as atuais, permitir a transmissão de dados auxiliares e viabilizar soluções para meios de baixa potência.


Baratear o custo e democratizar o acesso


Em vez de definir a política pública para o tema, o ministro entregou a decisão ao mercado. ‘Estamos dando o caminho para que as empresas, com seus técnicos e com apoio valiosíssimo da Anatel e do Ministério das Comunicações, possam concluir por um sistema que vai poder atender a necessidade brasileira’, disse na cerimônia de assinatura da Portaria. Em linhas gerais, as emissoras poderão escolher em qual padrão transmitir. Os fabricantes, por sua vez, terão de adaptar os receptores à tecnologia escolhida pelo mercado.


Em reação ao caráter genérico do documento, a Associação Brasileira de Radiodifusores (Abra), que congrega afiliadas à Band e à RedeTV, cobrou do Minicom ‘ação e investimentos’ para o setor, sem deixá-lo ‘a mercê de tecnologias estrangeiras’. A entidade reivindicou ainda espaço para as emissoras AM na faixa de FM sem deixar clara sua preferência.


Entidades da sociedade civil também entraram em campo para disputar o modelo a ser adotado pelo país. Em carta, o grupo – que envolve a Associação de Rádios Públicas, a Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária, o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação, a Sociedade Brasileira de Estudos de Comunicação e o Coletivo Intervozes – solicitou a criação de um grupo de trabalho para discutir as estratégias de implantação da nova tecnologia e um estudo comparativo entre os modelos internacionais. ‘A adoção de qualquer sistema sem debate e reflexão rigorosos ou de forma automática e sem aprimoramentos tecnológicos poderá trazer sérios problemas e não atender à realidade brasileira’, pontua o texto.


Para o engenheiro Takashi Tome, do Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações (CPqD), o foco não deve ser no padrão, mas no que se espera dele. ‘A tecnologia digital faz sentido se possibilitar um aumento de emissoras no espectro e se baratear o custo e democratizar o acesso ao sistema. Temos que colocar nossas demandas e interesses e ver qual padrão dá conta de atendê-los’, finaliza.


 


O que o rádio digital pode fazer


** Qualidade de som de CD.


** Incluir mais programações dentro de um canal, aumentando o número de fontes de informação e cultura.


** Incluir dados adicionais no visor do aparelho, como informações sobre o tempo e sobre o trânsito.


** Abrir um canal de participação direta do ouvinte pela própria frequência ou pela internet.

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Jornalista e integrante do Coletivo Brasil de Comunicação Social (Intervozes)