Desde o início da década de 70 que reporto acidentes automobilísticos no Brasil. Fiz isso durante mais de 30 anos para os principais jornais de Minas e de Brasília. Até a década de 90, as tragédias do trânsito ocupavam 1/3 do interesse jornalístico dos grandes veículos de comunicação. Não adianta estrada boa para mau motorista. Batida com morte tinha que ter espaço nas páginas de polícia. Os acidentes aumentaram tanto que perderam o interesse jornalístico. Pode-se dizer que hoje uma tragédia com seis mortes em nossas rodovias dispensa o deslocamento do carro de reportagem até o local do fato. A notícia é apurada por telefone.
A crítica sobre causa e efeito dos acidentes automobilísticos também foi banalizada a tal ponto que o conteúdo opinativo é visto pelo leitor como algo repetitivo. Em meados da década de 80, o então presidente do Conselho Nacional de Trânsito (Contran), Marcos Luiz da Costa Cabral, preocupado com essa banalização dos acidentes rodoviários no país, decidiu botar a boca no trombone. Encheu a mesa do ministro da Justiça, Paulo Brossard, de estatísticas escandalosas sobre esse flagelo brasileiro.
O carro como arma
Como repórter do Correio Braziliense, do jornal Estado de Minas em Brasília e estudioso da matéria, eu fazia questão de passar quase diariamente no gabinete de Cabral para debater com ele o assunto. Os números assustavam. Eram cerca de 30 mil mortes nas estradas estaduais e federais do país. Apontamento esse feito no asfalto, sem contar os que morriam nos hospitais e os mutilados. Um estrago muito grande nas famílias e nos cofres públicos. O assunto rendeu tanto que o então presidente José Sarney resolveu criar um grupo interministerial para tratar do assunto, reunindo as principais pastas do governo. Não deu em nada.
Os relatórios técnicos elaborados pela comissão apontavam as causas desse flagelo na seguinte ordem: falha humana e péssimas condições de conservação das estradas. No substrato vinham as ultrapassagens perigosas e o excesso de velocidade como os principais fatores para os acidentes. Quanto às estradas, os problemas que mais colaboravam para os acidentes automobilísticos eram os buracos, pista estreita, falhas na engenharia de tráfego (curvaturas invertidas), falta de sinalização e de acostamentos. Em resumo, era tudo muito ruim.
Depois de estudar relatórios e reportar no local mais de mil acidentes – e de percorrer dezenas de rodovias por esse país afora –, chego à conclusão de que as nossas tragédias automobilísticas estão relacionadas à cultura de um povo que vê o carro mais como uma arma olímpica do que como um veículo de transporte seguro. O fator estrada passa a ter um peso menor do que o fator homem na relação de risco carro-rodovia porque a condução de um veículo deve ser feita conforme as condições do caminho a ser percorrido.
Proporcionalidade invertida
Dou como exemplo o trecho da BR 381 que liga Belo Horizonte à região do Vale do Aço. São pouco mais de 200 quilômetros de pista de dois sentidos com um elevadíssimo tráfego de caminhões pesados. A rodovia serve para escoar e abastecer a produção da Usiminas, Arcelor Mittal, Cenibra e várias outras empresas de grande porte da região do Vale do Aço.
A estrada dá acesso ainda ao litoral do Espírito Santo, Rio e Salvador, pelo Leste do estado. É uma das rodovias mais perigosas do país e bate todos os recordes de acidentes do trecho federal em Minas. Já foi pior. Nas décadas de 70 a 90, a estrada não tinha acostamento, as curvas e pontes comportavam apenas dois carros – algumas delas davam passagem para apenas um veículo pesado, e o seu traçado era todo ele em curvas, muitas delas perigosíssimas. Aliás, comecei a minha carreira profissional contando mortos à beira dessa rodovia. Um deles, ocorrido no final da década de 70, envolvendo um ônibus da antiga Viação Planeta, empilhou mais de 30 cadáveres numa ponte perto do município de Timóteo, no Vale do Aço.
Passei pela rodovia neste feriado de Natal e constatei que os riscos oferecidos pela estrada são inferiores aos proporcionados pelos motoristas. A velocidade média aumentou e grande parte das ultrapassagens estão sendo feitas pela direita. Ora, mesmo os mais atentos motoristas têm dificuldades para fiscalizar o retrovisor direito porque a atenção maior fica no da esquerda, que é o ponto de atrito. As regras de trânsito indicam que o carro deve permanecer na sua faixa de circulação, utilizando o acostamento para dar passagem ao veículo de trás, retornando imediatamente à sua faixa de segurança.
A conclusão que tiro de tudo isso é a seguinte: não adianta estradas boas para maus motoristas. Pelo contrário: quanto melhor a rodovia e pior o motorista, mais acidentes teremos. É a lei da proporcionalidade invertida.
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Jornalista