Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Não é exclusão digital, mas presença de mercado

A presidente Dilma Rousseff, reunida com o fundador do Facebook, Mark Zuckerberg, anunciou na sexta-feira, 10, uma parceria que pode tornar o Marco Civil da Internet uma letra morta ao indicar o caminho que ela pretende seguir em relação à regulamentação da neutralidade da rede que, resumindo, periga ser o de vetá-la completamente em prol de iniciativas danosas ao consumidor e liberar a prática do Zero Rating.

Trata-se de um acordo que, do ponto de vista do Facebook, visa garantir mercado e mesmo monopolizar o mercado e não o de efetivamente levar internet a todos e sanar o imenso problema da exclusão digital.

Em artigo para o Brasil Post, o advogado e pesquisador Pedro Ramos definiu com precisão o Zero Rating:

Zero-rating refere-se a uma série de estratégias comerciais desenvolvidas por operadoras em parceria com provedores de aplicações e que visam oferecer gratuidade no tráfego de dados para determinada aplicação e serviço específico. Ao contrário do mercado de banda larga, é comum que operadoras ofereçam a seus usuários planos de acesso à internet com limites de volume de tráfego mensais – por exemplo, em um plano de 100 MB, o usuário somente poderá utilizar internet 3G em seu dispositivo móvel até o limite de 100 megabytes de tráfego download e upload por mês. Por meio de estratégias de zero-rating, operadoras elegem determinadas aplicações e sites cujo tráfego gerado não será contabilizado para esses limites, de forma que o usuário poderá acessar esse site ou aplicação ilimitadamente, independentemente da contratação de um plano específico de acesso à internet.

Internet grátis?

Dilma e Zuckerberg firmaram acordo para trazer ao Brasil o projeto Internet.org, que já funciona em países como Guatemala, Panamá, Gana, Quênia, dentre outros, ou ao menos uma versão muito semelhante do projeto que, em linhas gerais permite acesso gratuito via celular a alguns serviços básicos (ou considerados básicos pelo Facebook e por empresas de telefonia e provedores parceiros), como a Wikipedia e, obviamente, o próprio Facebook.

Em outras palavras, a “internet grátis” que Dilma e Zuckerberg pretendem trazer ao País nada mais é que uma internet pela metade, restrita a alguns serviços escolhidos por empresários interessados, e não a internet em si, com todo seu potencial, livre e irrestrita. Trata-se de um projeto que visa controlar o acesso dos indivíduos, liberando apenas sites escolhidos e aplicações definidas por terceiros, impedindo o acesso realmente livre e reduzindo a internet que uma parte considerável do mundo acessa – em especial os mais pobres – um ambiente controlado e restrito.

É verdade que não existe almoço grátis, para usar o Facebook nós “pagamos” com nossos dados – dados pessoais, gostos, preferências, etc – que são revendidos a empresas para que estas nos enfiem propaganda e tenham lucros, porém o Internet.org vai além, não apenas cobrando por nossos dados, mas chegando ao ponto de nos impedir de acessar efetivamente a internet, nos deixando ilhados dentro do Facebook (e consequentemente aumentando seus lucros), e com a possibilidade de acessar apenas os sites e serviços permitidos pelo Facebook e seus parceiros.

O acordo entre Dilma e Zuckerberg, porém, tem um diferencial em relação modelo adotado no Internet.org que o fato de não ser voltado apenas para a telefonia móvel, mas visa também investimento em infra-estrutura, conexões físicas via PC, o computador tradicional. Na questão do Zero Rating e da limitação da navegação a sites escolhidos não se sabe como será o programa – pese a quase certeza de que ao menos na internet móvel a limitação de acesso será efetiva –, mas é provável que não destoe do projeto original já aplicado com, pensa o Facebook, sucesso.

O futuro com zero rating e sem neutralidade é o de provedores não cobrarem mais pela velocidade com que você conecta, mas sim pelo conteúdo acessado e pelos aplicativos ou aplicações.

Um exemplo: é possível imaginar que uma empresa cobre não por 2 megas de velocidade ou 6 megas e com essas velocidades você em tese pode acessar do seu blog pessoal ao Youtube ou Netflix, sem discriminação, mas passe a cobrar um valor para você acessar seu blog e um valor muito mais alto para que você possa assistir a um vídeo no Youtube. Ou ainda pode permitir o acesso mais rápido a um site parceiro e diminuir a velocidade de um site que não pague nada ao provedor.

A internet é como uma estrada, não importa se você vai mais devagar ou mais rápido, no fim das contas todos passam pelos mesmos lugares e chegam a mesmo lugar, apenas em tempo diferente. Com o zero rating todos serão obrigados a pagar pedágio, mas quem pagar mais pedágio irá mais longe, enquanto você ficará pelo caminho, impedido de ir adiante.
Isso significa que a internet ficará não só mais cara, mas também que ficará elitizada.

Neutralidade e os falsos discursos

A neutralidade da rede como consta do Marco Civil – e que também é defendida pelo FCC americano e pela União Europeia – veda expressamente a discriminação de pacotes e, obviamente, veda a prática de zero rating, que é justamente discriminar serviços e aplicativos/aplicações – e que já existe no Brasil e permanecerá existindo até que o marco civil seja totalmente regulado e da forma como ativistas e especialistas propõem.

As práticas atuais de diversas empresas de telefonia brasileiras de, por exemplo, permitir o acesso ao Whatsapp ou ao Facebook, mas vetar o acesso ou cobrar pela conexão que saia desses aplicativos (clicar em um link recebido no Whatsapp que direcione ao navegador, por exemplo e em alguns casos até mesmo assistir a um vídeo dentro do aplicativo do Facebook que consome mais dados e, logo, é cobrado) já é algo comum, e tal prática é exatamente o zero rating. Porém, ser comum não torna necessariamente algo legal ou, ao menos, ético ou saudável para o funcionamento da internet enquanto uma rede distribuída e livre.

O discurso de muitos é de que é melhor uma internet limitada para pobres do que nenhuma internet e optar por uma das duas opções é realmente o caminho mais fácil. Mas nós não precisamos optar por estas duas imposições que se passam por opções legítimas, não precisamos e nem devemos aceitar viver em um jardim murado, ou melhor, impor um jardim murado para parte da população enquanto nós que podemos pagar continuamos a aproveitar a internet em toda sua plenitude.

Em alguns aspectos a iniciativa de Dilma lembra a do fracassado PNBL, onde o governo em linhas gerais lavava as mãos e entregava às empresas de telecomunicação o trabalho de construir a infra-estrutura necessária para levar internet a todo o o país por um preço enganosamente baixo em troca de incentivos fiscais. Em relação ao Marco Civil em si, o acordo prenuncia uma péssima regulamentação do artigo sobre a neutralidade da rede no marco civil, colocando em perigo o acesso dos brasileiros – de todos e todas – à internet, abrindo as portas para a criação de classes dentro da internet de acordo com o poder aquisitivo de cada indivíduo para pagar por acessos premium.

Diante deste fracasso o governo resolveu tomar um atalho que, no fim, viola os direitos dos brasileiros. É uma tentativa torpe de mascarar a incompetência do governo na democratização da internet e também sua falta de interesse no processo, além de deixar claro o conflito de interesses de políticos com empresas de telecomunicação que financiam suas campanhas e que são as grandes interessadas no zero rating.

O discurso hoje é de que a internet é cara porque nós consumimos muitos dados, porque serviços como Netflix ou mesmo o download de torrents acaba sobrecarregando o sistema e que apenas uma pequena parte dos usuários pode ser considerada “heavy user” e que esta minoria prejudica a maioria. Estamos diante de meias verdades. De fato existem os heavy users, mas há gargalos na conexão e problemas técnicos exclusivamente pela falta de interesse das empresas em investir em infraestrutura e prover uma melhor conexão a todos. As empresas preferem trabalhar num mundo de falsa escassez, em que precisam cobrar mais caro para o acesso à internet simulando um ambiente de capitalismo selvagem onde precisamos competir ferozmente por recursos escassos.

Baseado nestas meias verdades (e meias mentiras) as empresas impõem sua voz – e seu peso econômico – ao Estado que legisla a seu favor, privilegiando medidas que não atacam o problema da falta de infra estrutura e da falta de vontade em garantir um serviço minimamente decente. Não faz sentido em usar uma desculpa estrutural que não existe para basicamente censurar a internet de milhões de pessoas. Se é fato que a maioria não baixa torrents, por exemplo, ou assiste vídeos via streaming, todos tem a capacidade e o direito de fazê-lo. Não é porque não fazem que o direito deve ser cortado – para todos.

Neutralidade e o capitalismo

O irônico, aliás, é que a neutralidade da rede e a garantia de qualidade para todos no acesso à internet é, também, o que move o capitalismo (online).

A Neutralidade da Rede poderia ser encarada como ao mesmo tempo socialista e capitalista (ou ao menos liberal) e não há nenhuma contradição nisso. Ao mesmo tempo em que ela garante o acesso igualitário a todos – ou ao menos a todos os conteúdos, já que a discriminação baseada em velocidade de conexão é um fato –, é esta igualdade que permite competição entre empresas. Sem a neutralidade da rede não teríamos tido um Google ou mesmo o Facebook, que começaram pequenos e por poder serem acessados por todos, cresceram e se tornaram potências em suas respectivas áreas.

Em outras palavras, o fim da neutralidade da rede e o Zero Rating destroem as bases da própria internet e da inovação (e competição), impedindo que novas empresas disputem um lugar ao sol e mesmo desbanquem os atuais líderes do mercado – ou mesmo que devido à competição os líderes inovem e melhores. Ao mesmo tempo o usuário se beneficia não apenas da inovação, mas do acesso livre a todo o potencial da rede.

Como explicou o professor Sérgio Amadeu, um dos grandes especialistas no tema:

[…] a prática do Facebook é de domínio da rede pelo seu grande poder econômico. Sem tragar a web para o interior de suas muralhas, o Facebook já é a segunda audiência da internet no mundo. Com o zero rating em países pobres, o Facebook pretende trazer inúmeros serviços e conteúdos hoje disponíveis na web para dentro de sua plataforma. Essa concentração dará mais acesso à sua rede, o que trará ainda mais poder econômico para a corporação de Zuckerberg.

O artigo do professor Amadeu merece ser lido ainda pela abordagem feita à luz do Marco Civil já aprovado que, em tese, colocaria o acordo feito por Dilma na ilegalidade e, além disso, num eventual cenário de aplicação do acordo teríamos uma imensa brecha em nossa privacidade, com empresas podendo violar nossos dados e poder mesmo ter acesso à nossa navegação. O problema, ainda, é que tal ilegalidade teria de ser disputada em longas batalhas judiciais e políticas, mas as bases para derrotar a Neutralidade da Rede já estariam fincadas.

Não apenas especialistas e ativistas notaram os perigos do fim da neutralidade e da imposição do zero-rating, mas várias empresas (algumas que chegaram mesmo a ser parceiros do Facebook no projeto Internet.org, como as indiana NDTV e Times Group) já começaram a deixar o projeto ao entenderem a necessidade do respeito ao menos à livre competição que só a internet livre pode garantir. A empresa indiana Cleartrip declarou em um tuíte:

“Hora de traçar a linha na areia, Cleartrip está saindo do Internet.org e defendendo a Neutralidade da Rede #NetNeutrality

Com o projeto Internet.org ou seu variante acordado por Dilma, os mais pobres não poderão ter acesso aos mesmos sites e serviços que os mais ricos, não poderão ter o mesmo acesso ao conhecimento e ficarão restritos ao que provedores, empresas de telecomunicação e o governo permitirem o acesso. Se o provedor decidir que a Wikipedia não faz mais parte do pacote básico, azar o seu, pague um melhor ou fique sem Wikipedia – e isto vale para qualquer site ou serviço.

Projetos como o Internet.org parecem bonitos, filantrópicos, na teoria, mas abrem as portas para um controle sem precedentes da internet e também abrem um precedente perigoso, colocando em risco a internet em si.

[Agradeço a João Carlos Caribé e Marco Gomes pelas ideias, links e textos trocados.]

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Raphael Tsavkko Garcia é jornalista, doutorando em Direitos Humanos (Universidad de Deusto), ativista dos direitos humanos e pela liberdade na rede.