Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

‘Não falar da Confecom é pior do que detratá-la’

A Conferência Nacional de Comunicação (Confecom) inaugura uma nova fase na comunicação brasileira. Sua realização quebra o silêncio da mídia a seu próprio respeito e faz com que ela reflita sobre suas práticas. Para isso, a sociedade, representada pelos movimentos sociais, juntamente ao governo e empresas de telecomunicações, debateu, de 14 a 17 de dezembro, formas de democratizar o processo de comunicação brasileiro. ‘Conseguimos romper uma lógica que estava instalada principalmente a partir do sistema de comunicação do setor privado, de que falar sobre comunicação, de alguma maneira, era expô-la a críticas e debates não desejados’, explica o jornalista Celso Schröder, na entrevista exclusiva que concedeu, por telefone, à IHU On-Line. A segunda conquista da Confecom, aponta, é a aprovação por unanimidade para criar um Conselho Nacional de Comunicação. Não se trata de censura, assegura Schröder: ‘O que não podemos admitir é o que ocorre agora, quando a liberdade de expressão é tutelada por uma empresa, por um setor, por uma visão de mundo. Isso, sim, é autoritário e antidemocrático, porque inclusive a concessão pública, que é uma concessão do espectro eletromagnético, não pode ser apropriada por uma parte apenas, seja ela de direita ou de esquerda.’

Ele acentua a participação destacada dos movimentos sociais na organização do evento, e deplora o silêncio da mídia a seu respeito, além da cobertura tendenciosa de grandes veículos, que taxaram o encontro de Brasília como ‘um grande levante’ que tencionava construir uma ‘rede autoritária de censura no país’. Em sua opinião, ‘pior do que as manipulações ilegítimas que a mídia faz em outras áreas que não a sua, é o silêncio que ela faz a respeito daquilo que deveria noticiar. Não falar absolutamente nada sobre a Conferência é pior do que detratá-la’.

Coordenador executivo do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), Celso Schröder é vice-presidente da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj). É cartunista, ilustrador e chargista desde 1974. Leciona no curso de Comunicação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (FAMECOS-PUCRS), onde se graduou, em 1983.

Confira a entrevista.

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Quais foram os principais avanços trazidos pela Confecom à democratização da comunicação em nosso país?

Celso Schröder – O principal resultado é a própria realização da Conferência. Ela inaugura uma nova fase na comunicação do país, em que esta deixa de ser uma caixa preta, um local paradoxalmente de opacidade, não transparência, silêncio e falta de debate, que foi o que caracterizou sua implementação e desenvolvimento em nosso país. Eu digo paradoxalmente porque a comunicação brasileira é visível e reconhecidamente uma comunicação importante no mundo, tida como boa, detentora de uma tecnologia reconhecida, de linguagens de dramaturgia e jornalismo renomadas, mas, por outro lado, ela própria silencia a seu respeito. A comunicação brasileira não traduzia a sua importância através de um debate com a população. Isso fez com que ela se naturalizasse, como se fosse autorreferente.

Ao contrário da maior parte dos países do mundo, a comunicação brasileira não foi motivo de debate nacional, de escolhas de políticas públicas. Ela foi resultado de ações de governo a partir de vontades normalmente localizadas no campo do negócio da comunicação. Assim, fazer o debate sobre a comunicação me parece que foi o primeiro grande avanço e, sem dúvida, a maior vitória. Conseguimos romper uma lógica que estava instalada principalmente a partir do sistema de comunicação do setor privado, particularmente, de que falar sobre comunicação, de alguma maneira, era expô-la a críticas e debates não desejados. Por isso a realização da Confecom inaugura uma nova fase.

Percebe-se que não é apenas importante, mas necessário, discutir os rumos da comunicação no Brasil, porque ela é pública, de interesse nacional, diz respeito à população brasileira, inclusive, a interesses muito pontuais, como o modelo de negócio da comunicação, que está em crise. Os próprios empresários precisam repensar esse modelo. O Brasil precisa atualizar as suas escolhas a partir de um debate plural, amplo e representativo, como foi a Confecom.

Realizar a Confecom não foi fácil. O FNDC propôs, há algum tempo, um movimento em várias direções, indo ao encontro do movimento social, que foi muito receptivo a essa proposta, demonstrando que ela era madura e estava na cabeça dos brasileiros a necessidade de opinar e incidir sobre os rumos da comunicação em nosso país. O segundo movimento que realizamos, também bastante ousado e criticado inclusive pelo movimento social, foi refletirmos que a Conferência não teria sentido se não trouxesse para o debate os empresários de comunicação. Então, procuramos a Associação Brasileira de Rádio e Televisão (Abert), a Associação Nacional de Jornais (ANJ), a Rede Globo e o Grupo RBS, que ficaram convencidos da necessidade desse evento. Isso porque a crise do modelo de negócio está dada com a entrada de novos players na atividade, principalmente oriundos da internet e empresas de telecomunicações.

Saída das discussões foi falta de inteligência

Essa convergência tão importante, desejada e necessária, também traz grandes riscos, sobretudo para o negócio da radiodifusão. Portanto, urgia fazer um marco regulatório e escolhas que, de um lado, atualizassem e permitissem que a convergência acontecesse, mas, por outro, que não significasse uma crise ou o fim da radiodifusão no país era fundamental para os empresários, governo e para a sociedade brasileira. Com esse argumento, os empresários se convenceram da necessidade da Conferência.

Assim, junto de um representante da Rede Globo e outro do Grupo RBS, encontramos com o ministro Hélio Costa para falar sobre a necessidade da Conferência. A partir disso, conseguimos desencadear no governo um movimento. Percebendo que não haveria crises maiores, como havia acontecido em outros momentos (como com a criação da Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual, a Ancinav, quando o governo propôs uma agência reguladora do audiovisual, ou quando os jornalistas reivindicaram a criação de um conselho de comunicação, fatos que foram atribuídos, sobretudo pelas grandes redes do país, como censura e autoritarismo do governo), as autoridades federais aceitaram a importância da Conferência. A presença desses três setores é que viabilizou-a. A saída de parte dos empresários não chegou a comprometer os trabalhos porque permaneceram na Conferência setores importantes como o das empresas de telecomunicações. A Bandeirantes, por exemplo, continuou na Confecom.

Qual é a sua percepção sobre a retirada dessas seis empresas das discussões da Confecom?

C.S. – Foi um grande prejuízo para elas. As empresas viabilizaram a Conferência, estavam conosco e sabiam das dificuldades de realizá-la. Essas empresas tinham o compromisso dos movimentos sociais e do governo de que a Confecom não seria um espaço de cartas marcadas, mas um lugar de debate público efetivo, o que aconteceu. O movimento social, inclusive, fez concessões no limite do racional. Por exemplo: fazer uma representação de delegados a partir de uma maioria absoluta, com representação dos empresários numa dimensão que nenhuma outra conferência teve no país. Essa foi uma demonstração de absoluto espírito público, e de interesse de realização da Conferência. Por isso, penso que a saída dessas empresas das discussões foi uma falta de inteligência. Elas apostaram na não realização do evento, ou que a sua não participação comprometesse os trabalhos. Enganaram-se.

Precisamos de um marco regulatório

Então houve uma espécie de boicote?

C.S. – Visivelmente. É uma tendência autoritária da qual esses setores não conseguem se livrar. É uma história de autoritarismo, antidemocratismo, falta de debates e transparência, usurpando o espaço político brasileiro e ocupando espaços não legítimos da comunicação, como os partidários, por exemplo. Na academia, temos uma vasta literatura produzida sobre o período pós-democratização do país, quando essas redes tiveram um papel comprometedor da democracia. Parece-me que há um costume, uma natureza antidemocrática do DNA, para recuperar uma ideia do professor Murillo Ramos, que faz com que eles não participem. De qualquer forma, não foi uma atitude inteligente. Foi fundamental a permanência de setores como a Bandeirantes, que percebe que não é possível que um sistema de comunicação no Brasil se mantenha com a concentração e a verticalidade atuais. Isso impede até que o projeto capitalista dessas empresas se realize. A permanência da Bandeirantes e de outras ‘teles’ demonstrou que a necessidade de que o marco regulatório futuro e de que os debates a partir de agora se deem sob a ótica de uma convergência que é inexorável. E a melhor maneira que essa convergência ocorra é de forma regrada, sob um marco regulatório que proteja o negócio da radiodifusão brasileira, o conteúdo nacional, as profissões regionais. Isso me parece fundamental. É essa convergência que permitirá ao Brasil alinhar-se rapidamente aos países de primeiro mundo no que diz respeito à tecnologia. Temos toda capacidade para fazer isso, e podemos fazer uma inclusão digital no país muito rapidamente, permitindo que o país dê um salto desse ponto de vista, e não apenas dele, mas da democracia e da tecnologia que a digitalização traz embutida, e que pode ser migrada para outras áreas da economia. Acredito que a permanência dessas empresas minimizou a tentativa de boicote à Confecom.

A segunda conquista simbólica da Confecom é a aprovação por unanimidade de um Conselho Nacional de Comunicação. Esse Conselho sinaliza uma quebra de paradigma. Qualquer tentativa de debate sobre regulamentação, ou regulação de comunicação, sempre era compreendida como se fosse censura. Penso que o Conselho quebra isso. Precisamos de um marco regulatório, de instâncias públicas no país, e isso não significa uma empresa estatal, mas espaços construídos com a participação de empresários, sociedade e governos que permitam que tratemos de grandes temas da comunicação, construindo e atualizando tais marcos e, por outro lado, garantindo e protegendo a delicada planta da liberdade de expressão e da democracia.

Maturidade e responsabilidade muito grandes

E por que razão o controle social da mídia assusta tanto essas empresas?

C.S. – Acredito que, de alguma maneira, todos ficam assustados com essa expressão. É que, na verdade, há muitas leituras da expressão controle social, inclusive por parte do movimento social. Muitas vezes se pensa que o controle social tem uma dimensão de controle, autoritária, que não é o que defendemos. Acredito que a melhor expressão seria controle público. Por controle social se entende que a sociedade, indefinidamente, fiscalizaria e controlaria a mídia. Não é essa a ideia. Pensamos que o controle público é formado de espaços transversais nos quais, a partir de um marco regulatório democraticamente constituído, de agentes reguladores públicos, com a participação do Estado, da sociedade e das empresas, também participe, num espaço de mobilização social, de articulação e pressão. Esse controle público acontece em três níveis. As empresas não estão acostumadas com isso, e confundem controle social com a falta de liberdade de expressão. O que não podemos admitir é o que ocorre agora, quando a liberdade de expressão é tutelada por uma empresa, por um setor, por uma visão de mundo. Isso sim é autoritário e antidemocrático, porque inclusive a concessão pública, que é uma concessão do espectro eletromagnético, não pode ser apropriada por uma parte, apenas, seja ela de direita, ou de esquerda. Temos exemplos pelo mundo todo, à direita e à esquerda, do desastre que é para a democracia, para a humanidade, quando tais setores se atribuem à verdade absoluta, ou à única expressão desta.

A Veja, por exemplo, na semana posterior à Conferência, bem como os editoriais da Globo e da Folha de S.Paulo, tentaram classificar o que aconteceu em Brasília como um grande levante, como se fôssemos pequenos Joseph Goebbels, nazistas tentando construir uma rede autoritária de censura no país. Obviamente, não foi isso que aconteceu. Bem pelo contrário! O que houve lá foi o resultado da vontade de milhares de pessoas que participaram das conferências municipais, estaduais e que resultaram em dois mil delegados e observadores da Confecom, representando os mais diversos setores. Não tenho dúvidas de que, após a Confecom, a vontade média dos brasileiros será muito melhor representada com as leis que forem aprovadas.

Como avalia a participação dos movimentos sociais na Confecom?

C.S. – Em meu discurso de abertura da Confecom, fiz questão de atribuir ao movimento social a realização desse evento. A abnegação, a luta e a disposição de negociação e de bancar o seu projeto é que garantiram a realização da Confecom. A participação do movimento social, apesar das disputas e tensões internas, demonstrou maturidade e responsabilidade muito grandes, que avalizam a participação futura dessas organizações em qualquer espaço de debates, seja sobre marco regulatório, ou qualquer outro tema referente a políticas públicas de comunicação.

Um novo código formalmente aprovado

E dentre as propostas aprovadas que constam no relatório final, como avalia a diminuição de capital estrangeiro na mídia?

C.S. – Na verdade, o que há é uma sinalização para reverter uma posição, inclusive aprovada com os empresários presentes, e retornar a algo semelhante com o que havia antes da abertura do capital estrangeiro na constituição brasileira, antes da PEC de 2002. É uma sinalização de uma volta a uma situação anterior, que tinha como lógica a garantia da produção nacional de conteúdo, o que tinha um viés comercial, evidentemente, mas também uma lógica nacional, com a ideia de construção de nação. Por isso é que a entrada de capital estrangeiro foi tão criticada, porque entrou sem nenhum mecanismo de garantia de que a produção brasileira de conteúdos seria estimulada. Acredito que, tão importante quanto esse debate, se entra capital estrangeiro, ou não, e em que medida, é a ideia de controle público do sistema. Se tivermos um eficiente controle sobre o sistema, seja ele menor ou maior, este será mais democrático. Claro que os cartéis, oligopólios e monopólios tendem a ser sempre menos democráticos, do ponto de vista da concorrência, mas principalmente da lógica da representação e produção de conteúdo nacional. É um elemento que sinaliza que precisamos pensar a respeito.

Em que difere o novo código de ética dos jornalistas aprovado pela Confecom daquele já existente?

C.S. – Nossa proposta é fazer um código de ética compartilhado entre empresas de comunicação em geral, e os trabalhadores dessas empresas, com a população. Seria um acordo com a população a partir de uma postura, de uma declaração de princípios que as empresas e jornalistas teriam a partir de um código aprovado formalmente. Isso possibilitaria que a sociedade brasileira pudesse cobrar dos jornalistas e das empresas condutas éticas a partir de um compromisso publicamente assumido por eles mesmos. É uma publicização de intencionalidades a partir do ponto de vista da moralidade.

Um manto de silêncio

A criação e manutenção de observatórios de imprensa nas universidades foi outra proposta aprovada. Qual é o papel da universidade nesse processo de democratização, sobretudo após a revogação da obrigatoriedade do diploma para o exercício do jornalismo?

C.S. – Sou muito crítico à ausência de debate sobre o jornalismo. A Unisinos é um dos poucos locais onde se desenvolve esse tipo de discussão. Contudo, a universidade, de uma maneira geral, começa a mobilizar-se em relação a essa questão, sobretudo após a decisão funesta de Gilmar Mendes sobre a questão do diploma de jornalismo. Não apenas porque desconstitui e desconsidera a universidade, mas pela forma como foi feita. Houve uma falta de tato, de respeito à universidade e à formação de terceiro grau em jornalismo que nos chocou por sua maneira grosseira. A partir disso, desencadeou-se uma reação muito forte, reafirmando essa tendência de criar observatórios.

Precisamos ter mais observatórios, e as universidades devem compreender que estes são fundamentais também para a produção acadêmica, constituindo-se num rico manancial para a produção crítica e acadêmica das pós-graduações e graduações, no sentido de qualificar professores que tragam elementos da realidade para a prática cotidiana dos cursos de jornalismo. Todo curso de jornalismo deveria alimentar um tipo de observatório, nem que tivesse que se especializar em um tipo de informação.

Poderíamos dizer que a grande mídia fez um pacto de silêncio em torno da Confecom? Por quê?

C.S. – Houve um pacto de silêncio, sim. Esse pacto existiu e menciono, novamente, o próprio silêncio da mídia sobre ela mesma. As empresas de comunicação, nos últimos anos, silenciam sobre sua atividade. É como se ela não fizesse parte da vida brasileira. Quando a Globo analisa os Anos de Chumbo, como ela se refere ao período da ditadura militar brasileira, sua participação nesse período não aparece. Isso ocorre em outros momentos, como a respeito das eleições, em específico a de Collor, e as novelas da época. Não se avalia a participação da Globo nos momentos depois desse período. Mas não se trata apenas dessa emissora, basta que pensemos no caso da história do Rio Grande do Sul, que, por várias vezes, foi ‘atropelada’ por decisões exógenas à política. A política, insisto, é própria dos seus espaços. Quando os meios de comunicação começam a fazer política, estão extrapolando suas funções, exorbitando-as. A política tem seus mecanismos de fiscalização e construção. Ou se exerce uma coisa, ou se exerce outra. No Brasil, houve uma confusão por muito tempo quanto a isso. Esse exercício ilegal da política, exacerbado pela mídia, de tal forma que a fortificasse, permitiu que ela atuasse em outras áreas da economia. Por isso, as empresas brasileiras de telecomunicações sempre foram avessas ao debate no qual elas fossem o objeto central. Daí, ressalto, a importância das discussões da Confecom. Esse mesmo manto de silêncio foi tecido em torno da Conferência pelas empresas que se retiraram dos debates. É como se as Conferências regionais não tivessem acontecido, e nem mesmo o encontro de Brasília. Pior do que as manipulações ilegítimas que a mídia faz em outras áreas que não a sua é o silêncio que ela faz a respeito daquilo que deveria noticiar. Não falar absolutamente nada sobre a Conferência é pior do que detratá-la.