Um dos grandes prejuízos causados à opinião pública pelo sectarismo em que às vezes resvala a discussão sobre a TV digital no país é o dogma de que a televisão brasileira é a melhor do mundo. Essa afirmação se instalou no momento em que as emissoras afinaram o discurso de vítimas de uma eventual modificação no modelo de negócios praticado na televisão. A partir de então, vem sendo repetido como um mantra pelos que acreditam que tudo tem que ficar como está – entre os quais se inclui o próprio ministro das Comunicações.
Ou acreditam que a mentira várias vezes repetida torna-se verdadeira, ou estão convencidos do que dizem e, portanto, mal informados – o que é duplamente ruim num ambiente em que o negócio é a circulação de informação confiável.
A televisão brasileira não é a melhor do mundo. Gostaríamos muito que fosse, como gostaríamos que não houvesse fome nem corrupção no país. Mas a realidade é que existe corrupção, existe fome, e a televisão brasileira está longe de poder ser listada entre as melhores do mundo, muito menos a melhor.
Exercício adequado
Há um vetor cultural pitoresco aqui. Metade das cidades brasileiras é apresentada pelas prefeituras locais como o ‘terceiro melhor clima do mundo’. Chacrinha gostava de apresentar todos os seus artistas como ‘o melhor cantor da América Latina’. Foi um dos maiores críticos e mais astutos intérpretes da nossa cultura. Fazia por isso um dos melhores programas de auditório da América Latina, quiçá do mundo.
Como argumento político para o debate sobre a implantação de um modelo de televisão que vai vigorar por mais de 30 anos, porém, este rasgo ufanista não ajuda a melhorar a nossa televisão. Pelo contrário, compromete todo o negócio e a criação televisiva de um modo geral. É fácil demonstrar isso empiricamente. Basta que cada leitor ligue agora o seu aparelho de TV e zapeie por alguns minutos. Se retornar à leitura convencido de que essa é a melhor televisão que se pode fazer no mundo, então a tese defendida pelo ministro Hélio Costa e as emissoras estará correta. Caso contrário, a afirmativa não tem fundamento.
Na eventualidade de restar alguma dúvida, o leitor poderá, por exemplo, acessar o site World Wide Internet TV. Ali terá a oportunidade de ver na hora uma parte da programação de TV produzida em 123 países, inclusive o Brasil. Ao todo, cerca de 500 emissoras que transmitem por broadcast, IPTV e outras formas. Há muita coisa ruim, como existe no mundo muita literatura ruim, o que não faz com que qualquer contador de histórias do Terceiro Mundo se torne um Marcel Proust.
Trata-se de qualquer forma de um exercício bem mais adequado do que simplesmente tomar como padrão a grade das operadoras de TV por assinatura, inclusive as por satélite em banda Ku, que distribuem perto de 200 canais.
Diversidade de oferta
Na quinta-feira (25/5), o Conselho Administrativo do Direito Econômico (Cade) aprovou a fusão entre a Sky e a DirecTV. Impôs, como condição, restrições que supostamente têm o objetivo de garantir a competição no mercado de TV por assinatura e a distribuição de conteúdo nacional para os assinantes da nova empresa, a Sky Brasil.
Uma delas é que durante cinco anos a americana News Corp. e suas filiadas não poderão contratar, com exclusividade, a transmissão dos principais campeonatos de futebol nacionais. A outra é que a Sky Brasil terá que resguardar, em no máximo seis meses, uma base de 20% de assinantes com canais de conteúdo nacional, e que a Globo não terá o direito de exercer seu poder de veto para a aquisição de conteúdo nacional de outras programadoras. O estarrecedor é que a Globo tivesse esse direito – e na prática continuará a ter, já que o poder de veto é agora dividido com a sócia News Corp.. A operação de TV por assinatura é simplesmente um serviço de transporte de sinais, onde não existe a prerrogativa de análise de seu conteúdo.
Nada disso, enfim, impacta a diversidade da oferta de conteúdo, visto permitir à Sky Brasil, que terá cerca de 92% do mercado de TV por assinatura via satélite do país, manter um lineup que não contemple a diversidade da produção televisiva não apenas no Brasil, como no mundo.
Axioma estúpido
A afirmação de que a televisão brasileira é a melhor do mundo carece, portanto, de uma base mínima para comparação. E dissemina um dogma nocivo ao aprimoramento da televisão, que deveria ser de interesse comum e capitaneado justamente pelas emissoras, que distribuem (e produzem) conteúdo.
Os alcaides dos amenos vilarejos brasileiros poderiam simplesmente dizer: ‘As noites aqui são agradáveis’. Estariam dizendo a verdade e não se expondo ao ridículo. Preferem inserir suas localidades num extraordinário ranking dos melhores climas do mundo. Da mesma forma a televisão. Não custaria dizer: ‘Há bons programas produzidos aqui’. Seria verdade. Com mais opções de escolha, haveria mais bons programas. Haveria uma grade muito melhor, mais competitiva, mais próxima da sociedade e do mercado.
Mas essa opção é evitada para que se possa reduzir a questão a um axioma estúpido, que entorpece a capacidade de discernimento do público mais ainda do que a má televisão tem historicamente se encarregado de fazer.
Não somos a melhor televisão do mundo. E quanto mais concentracionista for essa televisão, mais longe ela estará de sê-lo.