A presidenta Dilma Rousseff posou para foto vestida em um casaco com o logo do Facebook, ao lado de seu criador, o norte-americano Mark Zuckerberg. Assim, ela anunciou possível acordo entre o governo brasileiro e a plataforma de rede social para trazer a iniciativa Internet.org para o Brasil. O projeto é uma parceria do Facebook com empresas de telefonia para viabilizar acesso à Internet gratuitamente para determinadas partes da rede. Mas o que está em questão, para além do aparente benefício, é a nossa privacidade e o próprio modelo de Internet que ele impulsiona.
Em entrevista recente a um grupo de blogueiros, a presidenta afirmou que Zuckerberg fará uma experiência em Heliópolis, um bairro do estado de São Paulo. O empresário garantiria toda a infraestrutura para conexão com nível de banda bastante ampla, com a sua tecnologia. A ideia é que os moradores sejam estimulados a usar a maior rede social do mundo para promover negócios próprios. Segundo a presidenta, partir daí, o governo discutiria uma proposta.
Mas por que desde já é preciso criticar esta “parceria” com o Facebook? Primeiro, porque não se trata de inclusão digital. O Internet.org costuma envolver a garantia de que, mesmo quem não tenha pacote de dados, tenha acesso à timeline do Facebook. Isto estimula a concentração da Internet em um único aplicativo/plataforma, cujo lucro principal está no acesso de dados de cada usuário e na publicidade vendida a partir dos dados gerados por ele.
Uma pesquisa realizada pela Quartz, agência de notícias sobre mundo digital, é bastante esclarecedora sobre os rumos da concentração de uso da Internet apenas no Facebook. A reportagem “Milhões de usuários de Facebook não têm ideia que estão usando a Internet” mostra que os novos usuários da rede, em países em desenvolvimento, não usam e muitas vezes não sabem que existem navegadores, que têm esse nome por permitir nos levar a diferentes caminhos. Quando perguntados se o Facebook é a Internet, mais da metade dos usuários brasileiros que participaram da pesquisa disseram “sim”.
A situação da concentração já é alarmante. O Facebook não é um local público, por mais que pareça. É uma empresa com interesses privados e regras próprias. Ela tem o poder, sozinha, de alterar aparição das notícias e demais conteúdos que aparecem na linha do tempo dos cidadãos.
O jornalista Alex Hern, do inglês The Guardian, expressou sua preocupação com essa situação na reportagem “Quando algoritmos definem nossas notícias, deveríamos ficar aliviados ou preocupados?”. Hern estava obviamente preocupado. Ele relata que, durante as manifestações decorrente do assassinato de um jovem negro por um policial, nos Estados Unidos, o Facebook concentrava a lista de posts em referências aos vídeos de balde de gelo na cabeça, campanha de divulgação da esclerose que ganhou adepto de artistas.
A mobilização em torno do assassinato, aponta Hern, ficou por conta do Twitter, que não gerencia os posts de seus usuários; a ausência desse tipo de filtro permitiu muita gente ficar sabendo do que estava acontecendo. Para o jornalista, o fato de o Facebook querer que seus usuários entrem na rede social, cada vez mais, para vender anúncios a eles pode direcionar o conteúdo. Por exemplo, a empresa pode priorizar a circulação de notícias felizes, a fim de não afugentar os clientes.
O Facebook é um espaço murado, privado, onde valem as opções da empresa acerca do que pode ser publicado ou não. O controle do conteúdo e a imposição de suas regras têm sido frequentemente expostos. Nesta semana, o Ministério da Cultura (MinC) informou que iria acionar judicialmente a empresa por ela ter deletado postagem com fotografia de um casal de Índios Botocudos que mostrava uma índia com o dorso nu. Inicialmente, a rede negou o pedido do ministério de liberar a foto, alegando que ela não estava de acordo com suas regras. A censura só foi desfeita na noite de ontem (18), depois da ameaça de ação judicial.
Situação semelhante tem sido denunciada por entidades de mulheres que querem que o Facebook não censure imagens de amamentação. Se a sociedade inteira faz um movimento para estimular o aleitamento materno, por que estimular uma plataforma que joga contra? Também as integrantes de movimentos feministas como a Marcha das Vadias reclamam de terem posts censurados. Os exemplos são muitos. Nos EUA, a organização Eletronic Frontier Foundation (EFF) estuda se o Facebook não trata diferentemente posts de denúncia de violência praticadas por palestinos e israelenses.
Outra questão se trata de como o Facebook participaria da construção de infraestrutura no país. As notícias dão conta de que Governo Federal e Facebook estão discutindo o tema. Isto já causa espanto, pois a defesa do Estado brasileiro apoiou a neutralidade de rede, princípio basilar do Marco Civil da Internet. O controle da infraestrutura por uma só plataforma ou empresa fere frontalmente o coração do Marco Civil, legislação apontada como das mais avançadas do mundo na área.
Vale ressaltar que, exatamente por defenderem a neutralidade de rede, empresas indianas anunciaram nesta semana [passada] a saída da parceria que beneficia o Facebook.
Privacidade
Se firmado o acordo, é provável que o Facebook se torne a plataforma prioritária de comunicação dos brasileiros, potencializando, com isso, a capacidade da rede de sugar os dados dos usuários. Tendo em vista que a plataforma é uma das empresas que disponibiliza o acesso ao seu centro de processamento de dados para Agência Nacional de Segurança dos EUA, fica a questão: como é possível defender a soberania nacional se estimularmos a entrega da privacidade dos cidadãos?
Tal parceria já seria, assim, contraditória diante da postura do Brasil frente às denúncias de espionagem reveladas por Edward Snowden. O próprio Snowden, aliás, apontou que o Facebook estaria permitindo que governos vissem as mensagens dos internautas. Diante disso, fica claro que é incompatível estimular o uso da rede, quando a mesma empresa desrespeita os direitos à privacidade.
Inovação e modelo da Internet em jogo
Ao liberar acesso e estimular o Facebook, o acordo poderá custar a possibilidade de manter o ritmo de inovação da Internet. A rede, até hoje, manteve um nível de concorrência sem precedentes. Mesmo pequenas empresas conseguiram entrar no mundo virtual e desenvolver novos produtos, isso porque até aqui as dificuldades para entrar nesse mercado eram baixas, assim como o preço da conexão e a dificuldade de acesso às plataformas de comunicação.
A lógica do acordo proposto também atinge o modelo de Internet que conhecemos. Até aqui, os pontos conectados podem ver outros pontos conectados igualmente. O que Zuckerberg propõe é que sua rede (e quem sabe possível parceiros) tenha prioridade nesse circuito.
É como se o portal para o mundo da Internet estivesse começando a se fechar em torno de diversas empresas norte-americanas e do Norte Global como um todo. Triste isso, ainda mais para um país como o Brasil que apenas engatinha em construção de plataformas digitais. A porta pode se fechar antes de o Sul Global passar de fato, o que manterá a desigualdade entre Norte e Sul na produção de comunicação.
Inclusão digital como política pública e não negócio
Enquanto a presidenta Dilma diz que deve sentar com Zuckerberg para discutir o acordo, a sociedade civil segue aguardando uma agenda com o governo para debater a universalização do acesso à rede. Inclusão digital não pode ser encarada como um simples projeto social, mas sim como política pública que garanta o acesso universal à conexão banda larga enquanto um direito, além de informação e formação para que os cidadãos possam ser sujeitos na rede, capazes de escolher quais plataformas vão adotar, quais conteúdos vão produzir e fazer circular.
Um possível acordo com o Facebook jamais poderá ser comparado à inclusão digital. Trataria, apenas, de vender nossa privacidade, independência, possibilidade de inovação e de criação livre de narrativas. Uma grande cilada!
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Marina Cardoso é integrante do Intervozes