Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Notas sobre a construção de um jornalismo livre

‘O que a Radiobrás está fazendo agora é extremamente importante para o movimento internacional do Creative Commons, porque é uma instituição de credibilidade que está reconhecendo que o verdadeiro valor de sua contribuição para a cultura é dar ao povo acesso a conteúdos nos quais ele possa aprender e utilizar no próprio trabalho criativo. Acho que o Brasil está, mais uma vez, ensinando ao resto do mundo algo importante sobre o que a criatividade pode significar nesse meio’, afirmou Lawrence Lessig, autor de Free Culture (Cultura Livre – Como a Grande Mídia Usa a Tecnologia e a Lei Para Bloquear a Cultura e Controlar a Criatividade) e criador das licenças Creative Commons, em entrevista a Roberto Romano Taddei, um dos co-autores do projeto de reformulação editorial da Agência Brasil, durante o ISummit.’

Imagine-se sentado no sofá de sua casa. Você segura, em suas mãos, seu controle remoto. À sua frente, encontra-se o aparelho de televisão. Você assiste a um programa de entretenimento, mas sabe que dentro de instantes terá início, dois canais adiante, um importante telejornal. Você pega seu controle remoto, aponta para a sua televisão e aperta os botões que trarão o jornal ao seu sofá.

(corta)

Na televisão, nada de notícias. Apenas uma tela preta com um texto em branco: A SUA TELEVISÃO NÃO POSSUI OS REQUISITOS RECOMENDADOS PARA EXIBIR ESSE PROGRAMA.

Nesse exato momento, você descobre que não pode assistir ao telejornal porque seu aparelho de televisão é incompatível com a emissora proprietária do telejornal, pois esta mantém acordo com outro fabricante. Parece ficção. Não é.

(corta)

Isso seria difícil de ocorrer no mundo analógico da comunicação, mas é mais comum do que você imagina no mundo digital. Estamos vivendo um paradoxo contemporâneo, bem ao sabor desta era em que promover a liberdade e fazer a guerra não são tarefas antagônicas. Uma época que permite a um conglomerado defender a liberdade de expressão e utilizar uma plataforma tecnológica excludente – que justamente impede a expressão livre.

(corta)

Saindo da abstração: tente, rodando qualquer distribuição Linux (Ubuntu, Susy, Debian), acessar os vídeos da Globo: os gols da rodada, as cenas do último capítulo da novela, uma reportagem do Jornal Nacional. Aliás, tente acessar usando o Firefox no seu Windows. Uma caixa cinza irá informá-lo que seu computador não possui os requisitos mínimos. Quais são eles? Rodar Windows. Ou seja, para ver a Globo é preciso ter o Windows no computador. Senão, nada feito.

A contradição está posta. A Globo, neste caso, é apenas representante de um universo proprietário refratário à liberdade do conhecimento. Os exemplos são muitos e invadem todas as áreas que você pode imaginar, dos direitos autorais às políticas de recursos humanos, inclusive o jornalismo. E é por isso que estamos aqui.

Qualquer tentativa de restringir, cercear ou censurar o livre fluxo de produção e transmissão de informações é atentar contra o direito que todo o cidadão tem de informar e ser informado: o direito que todos temos à comunicação. Na lata, assim, o raciocínio soa abstrato, mas quando pensamos nos exemplos, ele se revela concreto.

1 + 1 = utilizar plataformas tecnológicas proprietárias é cometer um atentado contra a liberdade de expressão e o direito à informação e à comunicação.

Não é à toa que os principais promotores dos softwares proprietários no universo do jornalismo são conglomerados que emergiram do velho mundo da comunicação.

Essa opção que fazem os promotores da globalização midiática pela propriedade e pela exclusão é ideológica. E quando não é claramente ideológica, reproduz a lógica planetária organizada sob os auspícios do capital e da propriedade privada. São grupos que defendem a propriedade porque sabem que, por trás do uso de um software de código aberto, há um olhar que projeta um outro mundo onde não cabem corporações, nem cercas.

Utilizar software livre – ou mesmo permitir que um usuário de software livre acesse seus conteúdos – é indiretamente participar desse movimento em essência humanista e anticapitalista. Isso, de forma alguma é aceitável. Afinal, como um latifundiário pode ser favorável à reforma agrária?

Por isso, eles dizem na cara, com todas as letras – não importa o quanto essa afirmação seja excludente: aqui só se utiliza Windows. Quanto ao usuário de um sistema alternativo? Se você for um desses e quiser ter acesso aos bens que eu produzo (principalmente ao meu mais saboroso entretenimento), desista do software livre.

(No ringue: Pingüim, Richard Stalmann e Jon Mad Dog x Deborah Secco, gol do Obina na final e William Bonner. Afinal, o que o usuário comum quer mesmo?)

Deste lado aparentemente frágil, no entanto, está a força da comunidade e da colaboração. A força da partilha. Só se vence o movimento conservador com mais e mais liberdade. E com regulação – para que todos possam ser livres.

Só se vence ampliando a oferta e educando para o novo mundo: com a Wikipedia, com blogs e mais blogs, com práticas radicais de jornalismo-cidadão, com a liberação dos conteúdos para que todos possam produzir, alterar, modificar, recriar, reprocessar, reproduzir, amplificar, massificar, distribuir…

E nós podemos vencer. Repare quem lidera o ranking de audiência de notícias e informações, auferido pelo Ibope Net Ratings, em abril de 2007: a Wikipedia, a enciclopédia colaborativa desenvolvida com tecnologia wiki. Na rede, a Globo é segunda colocada.

Agora, para efetivamente neutralizar a ideologia da propriedade é preciso estruturar um vetor mobilizador que demonstre ao usuário a verdade: no mundo da internet, o que você vê, na interface gráfica, é tão importante como o que roda no ambiente dos códigos. Se este não for livre, a liberdade vivenciada é apenas aparente: é a liberdade que usufrui um tigre nascido em cativeiro, que conhece tudo dentro dos limites de sua cela, mas jamais foi a uma caçada.

De posse dessas informações, o usuário terá duas opções. Isso já basta.

(Contra o atraso: mais liberdade e mais ideologia)

Não basta defender o software livre porque ele é uma opção economicamente mais viável. Isso é conseqüência. Há de se defender o software livre porque só ele permite que o conhecimento circule, que a troca ocorra, que a sociedade acumule.

Em relação à economia que o software livre gera, isso até o grande capital é capaz de assimilar. Não fosse assim, os grandes grupos não se preocupariam em produzir páginas de informação compatíveis com o Firefox, as quais, durante muito tempo, não rodavam em outro navegador que não o Microsoft Internet Explorer.

A qualidade do Firefox levou uma série de usuários comuns a utilizá-lo, o que – por critérios de mercado – vem forçando os defensores da propriedade a aceitá-lo. Mas isso é mercado. Ok, é um deslocamento. Uma assimilação. É sempre bom produzir bons produtos, mas muito mais importante é manter aberta e limpa a via para o desenvolvimento da liberdade e da comunicação.

Uma experiência: hackeando e recriando o Estado

Essas idéias, todas, não são abstrações. São aplicáveis. Seria de se perguntar: nada mais careta que agências de notícias, produtos da segunda revolução industrial, certo? Errado. No caso do Brasil, a Agência Brasil é hoje uma promotora da nova comunicação.

Do software à notícia, tudo ali é livre, radicalmente livre. E isso é bom explicar:

A técnica

1. O sistema de gerenciamento de conteúdo foi todo desenvolvido pela equipe de tecnologia da informação da Radiobrás utilizando como base o Plone/Zhope, um CMS (Content Management System) livre que é a coqueluche entre os desenvolvedores mais progressistas. Foram feitas customizações e devolvidas à comunidade software livre. O que é de um é de todos.

2. A fonte utilizada no design, a Bitstream Vera, é uma família Open Source, licenciada em GPL. A licença de uma família básica como a Garamond, completa, custa mais de US$ 250 para uso em um único sistema operacional. Além disso, ela não é sua. Você não pode mudá-la, comercializá-la, apenas utilizar, por um período.

3. Os servidores rodam Apache (o melhor e mais importante software de manutenção de servidores, cujo código é livre), totalmente seguros, justamente por isso. Na redação, também não se utiliza mais o pacote do Office, nem o Internet Explorer e muitos dos desktops, inclusive o meu, rodam Ubuntu.

4. As ferramentas de streaming (tecnologia que permite a um usuário assistir a um vídeo pela internet) são em código-aberto, assim como os padrões para os formatos de áudio e vídeo. Todos, por isso, podem ser facilmente reutilizados, reprocessados, redistribuídos, modificados…

5. Todos os conteúdos produzidos em texto, foto, áudio, vídeo e infográficos animados são licenciados em Creative Commons e podem ser baixados, retrabalhados e utilizados em produtos comerciais ou não por qualquer cidadão brasileiro ou qualquer outra pessoa no planeta.

A ética

A técnica operou uma grande mudança, que não seria tão radical se o jornalismo praticado pela empresa continuasse a ser chapa-branca, autoritário e careta. De 2003 para cá, realizamos um deslocamento que pôs fim à agência de notícias oficial e governamental e abriu uma via ondulante para a comunicação efetivamente pública, com foco no cidadão, não no consumidor.

A missão da Agência Brasil, que é também a missão da empresa na qual ela está inserida, a Radiobrás, é contribuir para a universalização do direito à informação e à comunicação. O que só pode ser feito – disso nós não temos dúvida alguma – por meio de um jornalismo objetivo e apartidário, de qualidade elevada, desafiador, original, inovador e envolvente.

Se você acessar a agência, encontrará informações sobre a pauta política nacional, as ações dos governos e a relação destes com as demandas sociais. Também será informado sobre o nosso Congresso Nacional, as Relações Exteriores, a Justiça, a participação da sociedade nos conselhos e organismos do Estado. Terá, por fim, acesso a um conjunto de conteúdos sobre os movimentos sociais e sobre a cidadania, organizada ou não.

Nenhum assunto é proibido, mas todos recebem um ‘enquadramento’ específico – e isso distingue a emissora do conjunto dos meios que oferecem informação à sociedade.

Nesse jornalismo, o cidadão e a cidadã são protagonistas. E as notícias são apresentadas de forma contextualizada e interligadas a processos. Ou seja, os fatos da agenda diária são noticiados a partir de sua história, das circunstâncias em que ocorrem e das expectativas que colocam para o futuro.

Mas ainda dá para avançar muito mais

A radicalização dessa proposta desenvolvida nos últimos quatro anos depende de uma evolução conceitual que fatalmente levará o jornalismo a abandonar a condição de feito para o cidadão para assumir-se feito pelo cidadão (se não diretamente, no desenvolvimento de uma parceria produtiva cidadão-jornalista).

Como afirma Dan Gilmour, autor de We the Media, texto que já se tornou um clássico ao sintetizar os fundamentos do que nos Estados Unidos recebeu o nome de jornalismo-cidadão (jornalismo produzido pelo usuário, não por um profissional da notícia), tornou-se menos uma palestra e mais um diálogo.

Esse novo jornalismo é uma conversa que se desenvolve nas ágoras virtuais, lugares em que a população – por décadas educada a apenas consumir informação – toma posse dos conteúdos informativos e reprocessa-os criticamente.

A opção que fizemos na Agência Brasil – de nos integrarmos a essa infinita conversa global, provendo o cidadão de textos, fotos, áudios, vídeos, infográficos livres e permitindo a viagem desses conteúdos pela web gerando novos produtos, sentidos e histórias – aponta para a estruturação de um novo modelo de organização, aberto e livre, baseado no valor de uso, e não no valor de troca mercantil da notícia.

Neste cenário, o valor da informação é diretamente proporcional à necessidade de estar bem informado. Na sociedade do conhecimento, onde estar bem informado é fundamental para construir o futuro e atuar de maneira autônoma no espaço público (inclusive no mercado), quanto custa a informação?

Custa muito, mas pode – e deve – ser gratuita.

Além do mais, a Agência Brasil, antes isolada em suas buscas internas, passou a participar de uma rede mundial colaborativa que produz avanços diários. Não foi uma nem duas vezes que, com base em uma necessidade gerada pela dinâmica da produção de informação, procuramos a comunidade e nela encontramos uma solução exata para as nossas necessidades.

Realizar isso custou o preço de termos gente qualificada para pensar soluções criativas. Hoje, produzimos tecnologia, conhecimento e inovação. E tudo isso pode ser auditado por qualquer um. O código-fonte das nossas idéias está aqui, aberto, para ser analisado, escrutinado, avaliado. Buscando construir um jornalismo que seja livre, do software à notícia.

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Editor-chefe da Agência Brasil