Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

O Brasil do PT

A leitura não deixa dúvidas: o diagnóstico é mais pertinente que as soluções. Fotografar a paisagem que se vê, convenhamos, é tarefa menos passível de distorções que desenhar um cenário do futuro. É o que se enxerga no documento Resolução Política, aprovado no 4.º Congresso do Partido dos Trabalhadores, na semana passada. Ali está expressa a visão do PT sobre o estado do mundo e do Brasil, um desfile de múltiplas abordagens, dentro das quais se pinça a tese de que o País, ator central na “crescente hegemonia da esquerda na América Latina”, tem condições de se transformar na “alternativa ao próprio modelo neoliberal”, em crise nos países centrais. A indicação dos nossos trópicos tupiniquins como marco de um novo processo civilizatório é recorrente em diversas passagens, não sem o crédito concedido às administrações sob comando do PT, o que, evidentemente, pressupõe a continuidade de conquistas do ciclo Lula e que caminham para “a construção histórica de um novo Estado democrático, republicano e popular”. A modelagem desse ente “popular” (o adjetivo democrático não abriga o povo?) só seria possível por meio de “amplo e profundo ascenso dos partidos de esquerda”. Essa é a engenharia para a implantação do socialismo por estas bandas, que propiciaria ao País participar da “disputa global contra o modelo neoliberal”.

Utopias e refrãos à parte, o documento merece atenção por explicitar o ideário de um ente que convoca militantes ao engajamento político, impõe normas de conduta, pratica uma liturgia comparável à dos credos evangélicos, incluindo o dízimo, define metas de médio e longo prazos, estabelecendo, assim, um diferencial no espectro partidário. Ancorado em disciplina, o PT consegue taxas de adesão mais altas que outros, como indicam seus 32% de preferência pelo eleitorado. Trata-se de um partido centrado na conquista e manutenção do poder. Se não age conforme o figurino que desenha, pouco importa. O mensalão, por exemplo, bate de frente com a moral proclamada pelo “modo petista de governar”. Para dele se livrar alega que o pacote mal-ajambrado não existiu. Ao argumentar que é “o único partido brasileiro a ter estatutariamente estabelecido prévias para consulta de seus filiados”, pode dar o dito pelo não dito ante a decisão do técnico de escalar seu jogador predileto para bater o pênalti. A não ser que Lula se curve à decisão de submeter Fernando Haddad às prévias para a Prefeitura de São Paulo. No campo da expressão, espalham-se na Resolução Política algumas dissonâncias, a denotar que pensadores e obreiros não comungam o mesmo ideário.

Constatação inexorável

Veja-se o capítulo sobre a democratização da comunicação. Ali está a defesa do marco regulatório. É plausível regular o aparato eletrônico que depende de concessões estatais, como os sistemas de radiodifusão e de telecomunicações. É até razoável debater o domínio de meios eletrônicos e impressos por grupos políticos ou sob a égide de conglomerados numa mesma região, questões da propriedade cruzada. Tais abordagens não podem, contudo, ser inseridas no compartimento da liberdade de imprensa e do controle de conteúdos. O PT diz repudiar tentativa de censura ou restrição à liberdade de imprensa. Aplausos. Ao criticar, porém, o que cognomina de “jornalismo marrom e suas práticas ilegais”, sob a fundamentação da inexistência de uma lei de imprensa e “desrespeito aos direitos humanos” pela mídia, levanta o véu da censura. Conceitos como verdade, pluralidade de fontes e versão única de fatos integram os escopos editoriais. Alguém se sente prejudicado por teor informativo “falseado ou distorcido”? Escude-se na Constituição, artigo 5.º, inciso V (que assegura direito de resposta proporcional ao agravo), ou no Código Penal (crimes de injúria, calúnia e difamação). São comuns os casos de pessoas e entidades que recorrem à Justiça para veicular suas versões. A proposta do controle social entra, portanto, no território dos conteúdos, por maior que seja o esforço para escamotear tal tentativa.

Na seara da reforma política, as abordagens defendidas apontam para a moralização de práticas, a partir da adoção parcial da lista preordenada nos pleitos parlamentares (metade dos eleitos) e fim das coligações proporcionais, que evitaria a eleição de nomes não escolhidos diretamente pelo eleitor. É evidente que o voto em lista beneficia partidos de mando vertical, como o PT, na medida em que parcela expressiva dos eleitos rezaria pela cartilha do comando partidário. Quanto ao financiamento público de campanha, em substituição a recursos privados, é ingenuidade pensar que o poder econômico se retrairá, retirando o aval a candidatos. Ao contrário, a distância entre economia e política estreita-se cada vez mais na onda da interpenetração de interesses do Estado e dos negócios privados. Já na frente dos movimentos sociais, é inegável a abertura de diálogo, sob o ciclo do PT, com as organizações do terceiro setor. Se entidades passaram a ser protagonistas de políticas públicas, como as centrais sindicais, não se pode deixar de registrar certa estática, de efeitos danosos, como o fato de, até o momento, o setor da terceirização, que abriga cerca de 10 milhões de trabalhadores, ainda não receber a chancela normativa do Estado.

Cacoetes são retomados, como as “privatarias que legaram ao País o fardo de uma herança maldita”, possivelmente referência a áreas, como a das telecomunicações, vendidas na “bacia das almas”. No subtexto, leia-se o conceito de “privatização decente” (as aspas são minhas), do tipo que se começa a fazer na frente dos aeroportos. Há, convém destacar, trechos bastante apropriados, particularmente sobre meio ambiente, emprego com carteira assinada, distribuição de renda (a maior já feita no País), inclusão social, igualdade de gêneros e minorias. No mais, filtrada a camada de grandiloquência inerente a documentos de congressos, a inexorável constatação: fora do PT não há salvação.

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[Gaudêncio Torquato é jornalista, professor titular da USP e consultor político e de comunicação]