O instituto das concessões públicas, como se sabe, foi idealizado para efetivar a prestação de serviços públicos por pessoas diversas do Estado, ocupando função originariamente de sua alçada. A natureza jurídica das concessões públicas de rádio e TV, todavia, por destoar das demais espécies de concessões, figura-se ainda hoje como matéria das mais controversas, sendo motivo de constantes debates e elucubrações doutrinárias por parte de estudiosos do assunto.
Há quem diga que, em virtude do seu principal objeto de prestação ser o dever de levar a informação ao telespectador, as referidas concessões não se emoldurariam de forma plena à conceituação de serviço público, definido como a atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material direcionada à coletividade e fruível singularmente pelos administrados. Não estariam, assim, submetidas aos princípios da Administração Pública elencados pelo artigo 37 da Constituição Federal, a saber, a legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e a eficácia.
Entretanto, o fato das concessões lidarem com o direito à informação, bem jurídico de status constitucional (art. 5º, inciso XIV) e figurado entre o rol de direitos fundamentais dos cidadãos, conduz a uma categórica submissão destas ao crivo dos princípios constitucionais acima trazidos. Inconcebível, pois, é que os entes concessionários enquanto pessoas que ocupam espaço concedido pelo Estado se situem fora da incidência das normas que regulam bens e interesses públicos, mormente os albergados pela guarida dos direitos fundamentais. Além do mais, o sinal de rádio e TV é um bem público, sendo extremamente incongruente com as premissas de nosso ordenamento jurídico que seu usufruto seja regido por normas diversas das que regulam os interesses da coletividade.
No limbo da normatividade abstrata
O peculiar sistema de concessões públicas de TV e de radiodifusão no Brasil, inexplicavelmente realizado à revelia de normas constitucionais (art. 175) e infraconstitucionais (Lei 8.666/93) que impõem a realização de licitação para o regime de concessões, padece de conhecidas irregularidades cujos efeitos atingem exatamente o viés público que qualifica seus serviços. O interesse público, que deveria ser a tônica da atuação das concessionárias frente à coletividade, cede, na prática, lugar às cambiáveis conveniências particulares de quem as dirige. O fato de estarem comumente sob a batuta de agentes políticos proporciona aberrações pragmáticas que impregnam cada nuance da espécie de concessão que aqui se trata, irregulares tanto em sua forma como em sua matéria; tanto em sua origem como em seu exercício.
Dentre os princípios da Administração Pública reproduzidos anteriormente, a infração à legalidade, à impessoalidade e à moralidade são os mais facilmente identificáveis quando se analisa o modus operandi das concessões. O princípio da legalidade, que remete ao estrito respeito à lei, encontra-se visivelmente lesado no momento em que toda uma gama de preceitos constitucionais e infraconstitucionais é vítima de constantes acintes por parte dos concessionários. O art. 54 da Constituição Federal, por exemplo, que traz a vedação de parlamentares firmarem contrato com pessoas jurídicas de direito público – com a União, no caso das concessões de rádio e TV, pessoa responsável pela outorga da concessão para a exploração do espectro eletromagnético –, encontra-se desde sempre vagando no limbo da normatividade abstrata, sendo paradigma de dispositivo sem aplicação prática, ou letra morta no mais avançado estado de decomposição. O mesmo se pode dizer do artigo 55 também da Constituição de 1988, que demanda a perda do mandato dos parlamentares que infringirem as disposições do artigo anterior.
Coronelismo permanece vivo
O desrespeito a normas de hierarquia inferior às constitucionais também ocorre de forma diuturna, consolidando de vez a lesa ao princípio da legalidade. O Código Brasileiro de Telecomunicações (CBT, Lei nº. 4117/62), por exemplo, determina que quem esteja em gozo de imunidade parlamentar não pode exercer a função de diretor ou gerente de empresa concessionária de rádio ou televisão (parágrafo único do artigo 38). Tal norma foi ratificada pelo §5º do art. 15 do Regulamento dos Serviços de Radiodifusão (Decreto 52.795/63), que demanda, como um dos documentos necessários para habilitação ao procedimento licitatório, declaração de que os dirigentes da entidade ‘não estão no exercício de mandato eletivo’.
O princípio da impessoalidade, de seu turno, também se submete diariamente aos mais absurdos descalabros. Considerando que faz parte da praxe política brasileira a utilização pouco parcimoniosa das ditas concessões para promover o grupo político que as gerencia, não é difícil concluir que o referido princípio, cujo cerne é a atuação impessoal dos entes da Administração Pública, sem favorecimentos ou perseguições a quem quer que seja, é posto de lado em prol das conveniências e interesses particulares do agente político que detém o uso da concessão. Ademais, deste mesmo ponto também é fácil extrair o atentado ao princípio da moralidade, vez que a utilização de um bem público com fins particulares que ora se observa é, no mínimo, abjeto exemplo de imoralidade e de dissonância à razão de existir da coisa pública, cujo escopo é a precípua submissão aos anseios e necessidades dos administrados. A supremacia dos interesses públicos sob os privados, nessa ótica, é dada como inexistente, tamanho o seu esquecimento por parte dos administradores das concessões.
Uma das principais características das práticas coronelistas, imperantes na nossa cultura política em um passado não tão remoto, é a completa confusão entre o público e o privado. O que pode aqui se observar é a nítida sobrevivência destas práticas mesmo 20 anos após a promulgação da Constituição de 1988, que tantos institutos trouxe para o combate contra o indevido uso da coisa pública. O coronelismo, entretanto, permanece vivo nos dias atuais, ao menos em sua faceta eletrônica.
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Acadêmico de Direito, Natal, RN