A entrada da Telebrás no mercado de banda larga e as exigências do plano de metas para a universalização do serviço de telecomunicações estremeceram as relações entre as empresas de telefonia e o governo federal. No fundo do embate está a mudança no modelo de negócio, provocada pela evolução tecnológica e pela assimilação do Estado do papel estratégico das comunicações para o país. No horizonte dessas disputas deve estar o interesse público.
Essa é a opinião do pesquisador em telecomunicações Marcus Manhães, representante do FNDC no Fórum Brasil Conectado (FBC), onde está sendo debatida a implantação do Programa Nacional de Banda Larga (PNBL). Ele considera o debate salutar ao trazer para a sociedade conflitos que antes ficavam restritos aos agentes do mercado de telecomunicações. Em entrevista ao e-Fórum, Manhães avalia as implicações do PNBL, o atual cenário das comunicações e a realização do 3º Fórum Brasil Conectado (confira aqui), em Brasília, no dia 30 de novembro.
Marcus Manhães é pesquisador em telecomunicações desde 1984. Comprometido com o desenvolvimento da inclusão digital, na última década seu empenho firmou-se para a formulação de políticas públicas, domínio e aplicação de tecnologias para esse fim. Buscando, dessa forma, reduzir o distanciamento entre a população e as tecnologias digitais, expressas, especialmente, em telecomunicações pela telefonia fixa, móvel e o acesso banda larga para a Internet. Manhães formou-se em Psicologia em 1998. Em 2003 obteve o título de mestre em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
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‘Um embate acirrado’
Como foram os debates no terceiro Fórum Brasil Conectado?
Marcus Manhães – O terceiro encontro ocorreu em um cenário muito ameno em relação ao segundo. Creio que muito pela influência do desempenho da campanha eleitoral. O fato de ter uma continuidade de governo, mantendo os trabalhos efetivamente dá certa tranquilidade. Uma troca de governo talvez fosse mais impactante nessa linha. Não houve nenhuma grande controvérsia em relação às propostas. O que surgiu, e isso eu considero relevante, são as posições. Quem está ali representado está consciente do ponto que defende. Essa é uma característica extremamente importante do Fórum. Ele foi criado como efetivamente um cenário de participação dos diversos segmentos da sociedade, como um ponto de diálogo.
Já no segundo encontro, onze temas foram discutidos, até de uma forma bastante intensa, com contribuições de cada uma das instituições participantes. Desde as vindas da sociedade, especialmente o FNDC, como das empresas de telefonia. Foram debatidos temas como infraestrutura, temas específicos de custos, de forma de controle, de troca de tráfego. Esses temas foram levantados em um processo de quase um ano em que esse grupo do Comitê Gestor do Programa de Inclusão Digital, o CGPID, tem trabalhado. Então, nesse terceiro encontro houve uma espécie de anuência às contribuições que foram colocadas no anterior.
Como a questão do conteúdo foi apresentada?
M.M. – Os pronunciamentos mais relevantes sobre o conteúdo partiram foram do FNDC, com a preocupação em relação à cultura e à educação. O conteúdo foi destacado como extremamente importante no que diz respeito a questões como a capacitação, a elaboração, a produção, o provimento para grupos com efetiva competência de produzir conteúdos relevantes para a sociedade brasileira. O FNDC se colocou à disposição para colaborar com a sua experiência também nesse projeto. Mas o embate da infraestrutura e da competição era mais acirrado, os representantes estavam mais ativos.
‘A importância da infraestrutura’
Que avanços podem ser apontados?
M.M. – O resultado mais expressivo neste ano é a listagem das cem localidades a serem inicialmente atendidas. E ela traz uma leitura interessante. Nós encontramos ali municípios pequenos e grandes, da região Sudeste, por exemplo, que possuem recursos. Há ali a identificação de populações literalmente necessitadas desses acessos de telecomunicações, independente da localidade no país em que estejam. Dizer que o Nordeste e o Sudeste têm demandas distintas parece até pueril, quando a gente vê uma listagem dessas cidades de grande porte como Campinas, em São Paulo. Campinas é um dos principais municípios em termos populacionais e de arrecadação, mas que tem necessidades significativas em relação à banda larga. Isso foge de uma leitura preconceituosa, porque não importa a região do país, importa é a necessidade de uma infraestrutura em capacidade, qualidade e quantidade para o atendimento à população ali presente.
O que representa a criação de um programa estruturante das telecomunicações como o PNBL?
M.M. – Tanto a sociedade brasileira quanto o governo federal percebem a importância da infraestrutura de telecomunicações. Nós estamos na era da melhoria de infraestrutura e a das telecomunicações é muito significativa para esse nosso século. A relevância social disso, a interrelação da infraestrutura de telecomunicações com todas as outras áreas, inclusive para o desenvolvimento sócio econômico do país é impressionante. Mas quando você percebe importância disso, também percebe que as regras do jogo, tanto as técnicas quando a disponibilidade da lei de mercado, estão mudando.
‘A extensão do prazo para a consulta pública’
E são essas mudança nas regras do jogo que deflagram as recentes disputas entre o governo federal e as telefônicas?
M.M. – Sim. Numa leitura imediata, nós vemos que as teles não estão de acordo com o governo, ou o governo não está de acordo com as teles. Mas é algo mais profundo. São dois fatores aparentemente distintos, mas que estão conexos. O primeiro deles diz respeito à Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), que abriu em setembro deste ano a consulta pública nº 34, referente à renovação de concessão do serviço telefônico fixo comutado. Periodicamente é refeita essa concessão, por certo número de anos. Historicamente, desde a privatização se estabelece um plano de metas. Em geral ele é comprometido com regras de universalização dos serviços. Nesse caso estamos falando do Plano Geral de Metas de Universalização III. Para ter a renovação de concessão pede-se contrapartidas das concessionárias, elas têm alguns objetivos a cumprir. È uma forma de estabelecer uma política pública.
Por que essa consulta desagradou as teles?
M.M. – Nessa consulta houve algumas exigências quanto ao acesso individual e coletivo em relação aos telefones públicos, por exemplo, com o compromisso de números de telefones de acordo com o número de habitantes em cada região, alguma coisa em relação à área rural e em termos de conexão de banda larga. Ela já traz um novo fundamento: está sendo dito que a telefonia fixa tem compromissos com capacidade e taxas de atendimento de banda larga. Isso aconteceu com um período de contribuição para a consulta pública bastante curto. Logo na sequência se faria o fechamento do acordo. Essa consulta pública traz para as atuais concessionárias alguns investimentos, alguns custos. Então, as concessionárias reclamaram. Bom, dizem elas, para fazer isso eu vou gastar um valor significativo e o prazo para a negociação foi curto, esse foi um dos primeiros motivos de disputa que hoje se dá na Justiça.
Eu acho extremamente favorável que esses embates estejam ocorrendo e vindo a público. Não critico as operadoras por terem recorrido à via jurídica porque num primeiro momento elas não conseguiram negociar com a Anatel na extensão do prazo para a consulta pública. Agora, com a própria intervenção do presidente da República, já houve uma extensão de prazo, da questão técnica e da política associadas. E na medida em que você retarda o início de uma nova concessão, na prática ela está sendo prorrogada.
‘A evolução tecnológica influenciou’
O segundo fator de disputa diz respeito a Telebrás. Em que consiste esse conflito?
M.M. – As operadoras estão questionando o fato de entrar um novo ator que é a Telebrás, como alguém que está solucionando a banda larga e como, digamos assim, um provedor único. Ou como um provedor numa condição completamente favorável, utilizando recursos de fibras apagadas, por exemplo, como as da Eletronet e de outros recursos que estão aí, diferente da situação das teles. Nesse sentido as concessionárias estão discutindo a falta de isonomia nas condições. Mas aí surge uma coisa interessante. Bom, as operadoras estão na lei de mercado e buscando interesses à sua forma e limites da renumeração atual. Por outro lado, o governo está fazendo esse esforço para a efetiva universalização, e para pressionar o mercado a mudar as tarifas. Esse é o grande esforço do governo. Melhorar a estrutura e dar condições mais favoráveis às classes sociais menos beneficiadas.
O fundamental de todo esse processo é o embate público, ele é extremamente importante. As operadoras recorrem judicialmente e o governo se posiciona de uma maneira bastante firme. Tão firme que próprio presidente Lula e o Cezar Alvarez, que coordena o CGPID, declararam que não fazem essa negociação sob pressão, com ‘uma espada no pescoço’, acho que foi esse o termo. Porque há tantas outras questões que estão correlacionadas. Na medida em que isso vem a público e num fórum como o Fórum Brasil Conectado, onde há a efetiva representatividade social e de interesses, com pessoas com capacidade de fala, de elaboração, cada um pode contribuir com ingredientes para esse produto. É claro, é interessante que as teles voltem atrás na sua medida política, na sua medida jurídica. Mas o importante é que a elaboração disso seja efetivamente favorável à sociedade.
Como as teles devem se posicionar frente a essa mudança no modelo de negócio?
M.M. – A tecnologia está mudando, ela traz outras perspectivas. Então, o modelo de negócio deve mudar, as operadoras devem mudar. Essa foi uma fala nossa, do FNDC, no segundo FBC. Dizíamos que a partir do momento que a Telebrás vem ao jogo, criando operadora, criando soluções, ou mesmo só atendendo áreas onde as operadoras comerciais não têm interesse econômico, essa operação traz uma condição totalmente diferenciada, impactando toda a sociedade brasileira. Portanto, é muito salutar essa iniciativa de governo de trazer um ator com essa capacidade de influência no mercado. Mas como o jogo ainda não está definido, há que se cuidar da defesa e do ataque, a coisa está dinâmica, em andamento.
Historicamente se faz uma leitura de que essa transformação tecnológica nas telecomunicações no Brasil ocorre a partir da privatização. No entanto, se compararmos o Brasil com o mundo, com países onde as operadoras já eram privadas, você percebe que a evolução tecnológica influenciou. Então, acreditar que o mercado efetivamente se resolveu e se moveu, é uma forma de narrar essa história que não condiz mais com a nossa capacidade de compreensão desse fenômeno.
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Da Redação do boletim e-Fórum