Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

O jornalismo e a hegemonia do atraso

O campo jornalístico, como qualquer outro, é espaço estruturado de posições definidas por seus agentes. Se não ignoramos sua centralidade crescente na ação política, cabe indagar se, no caso brasileiro, a história de sua estruturação não explica o crescente reacionarismo e as claras delimitações teórico-políticas que marcam a forma como apresenta os fatos e enuncia suas significações. Estamos indagando se uma imprensa que, historicamente, conformou sua agenda aos interesses de famílias e oligarquias tem como lidar com uma realidade que muda radicalmente não só no Brasil, como o restante do continente latino-americano.

A chegada ao governo de ‘outros de classe’ não faz das redações, em virtude de suas próprias configurações internas, os espaços sociais mais refratários às mudanças? O lugar, por excelência, da luta pela manutenção dos códigos valorativos das velhas elites dirigentes? Defender atores que, desde sempre, estiveram encastelados nos aparatos estatais, não sinaliza uma orfandade de fontes? O ‘luto da imprensa’, tal como descrevemos em artigo publicado neste Observatório? A questão é por demais substantiva para ser ignorada. É de hegemonia que estamos tratando. É ela que perpassa o discurso político predominante nos grandes jornais quando o assunto é América Latina.

Será que estamos assistindo, como asseguram os principais colunistas, à emergência de lideranças populistas que flertam com democracia direta e plebiscitária, manipulando poderes constituídos e dividindo sociedades? Não é assim que Folha de S.Paulo, O Globo, Jornal do Brasil e O Estado de S.Paulo promovem a construção simbólico-política das personas dos presidentes Chávez, Morales, Correa e Lula? Ou estaríamos diante de algo distinto, recusado pela produção de conteúdo jornalístico?

‘Confluência de sensatez’?

Como destacamos há quase um ano, em um texto produzido para a Agência Carta Maior ‘trata-se, na verdade, do amadurecimento de forças historicamente marginalizadas. Novos sujeitos de direito, dispostos a interpelar o cenário político e as várias democracias pactuais existentes. O que presenciamos, principalmente na Bolívia e no Equador, é a transição de regimes oligárquicos para democracias fortalecidas pela lutas populares’. Um cenário impensável para os habitantes dessa imensa Macondo editorial.

E é nesse cenário de terra arrasada que ressurge, com vigor, o sonho da Pátria Grande de Simón Bolívar. Uma integração regional que não se limite a zonas de livre-comércio e redes de infra-estrutura física. Mas que, incorporando as novas multidões latino-americanas, contemple dimensões históricas, políticas e culturais comuns. Uma empreitada que torne a cooperação indissociável da reinvenção democrática. Que aproveite a complementaridade das diferentes economias, superando assimetrias através da concretização de propostas como as da criação de um Banco do Sul. É conceitualmente correto falar em autocracias e cesarismos nesse contexto? Os cientistas políticos consultados não dão conta de explicar o caráter datado de certos termos?

Repetindo a narrativa neoliberal, os jornalistas de economia costumam dizer que o Mercosul está estagnado pelas diferenças político-culturais entre seus parceiros, pelas diferenças acentuadas entre as economias do subcontinente sul-americano e por medidas protecionistas, tomadas em momentos de crise. Se as dificuldades existem, tomá-las como impossibilidade de uma integração soberana faz parte da estratégia do liberalismo-conservador derrotado nas urnas em 2006, mas mantido como norte legitimador de análise pelos profissionais da imprensa. É nesse marco que se repetem as perorações de Míriam Leitão, Carlos Alberto Sardenberg e tantos outros que ocupam posições de destaque em seus veículos. Curiosamente, assim também falam os próceres do PFL e do PSDB. Coincidência ou ‘confluência de sensatez’?

‘Armadilha mortal’

Gostam de invocar o Protocolo de Ushuaia, assinado em 1998 pelo Mercosul e seus países associados, que define o regime democrático como condição indispensável para a existência e desenvolvimento dos processos de integração. A isso supostamente se aferram para protelar a aprovação da Venezuela como membro pleno do bloco.

Não foi casual que, há cerca de dois meses, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso tenha declarado que ‘Hugo Chávez tem que ver que está se colocando em uma posição de muita intransigência, de muitas questões, e que algumas delas ferem a consciência democrática da região e do Mercosul’. Na verdade, conhecemos o que norteia a ‘consciência democrática’ dos neoliberais: os interesses do ‘grande sócio’ na região.

Em 21 de janeiro, Merval Pereira escrevia em sua coluna no Globo:

‘A política na parte da América do Sul em que o populismo está se expandindo nas suas diversas formas, seja o de Chávez na Venezuela, o de Evo Morales na Bolívia, o de Correa no Equador, ou mesmo o de Lula no Brasil, ou o de Kirchner na Argentina, está criando uma armadilha mortal: as oposições não encontram um caminho para se opor a esse desenvolvimentismo retórico, que gera melhorias reais do bem-estar das populações mais pobres à base do assistencialismo, sem mudanças estruturais que garantam a perenidade dessa situação, mas garantem votos para a perpetuação desse tipo de política.’

Mais explícito, impossível. Seria esse o papel da imprensa? Aos ‘cruzados da consciência cívica’ cabe encontrar um caminho para a oposição? Ou substituí-la como partido?

Sua colega de redação não deixa por menos. Em artigo intitulado ‘Parada estratégica’ (16/06/2007), Míriam Leitão é direta:

‘O ex-chanceler Lampreia lembra a declaração de Chávez de que ele queria acabar com o Mercosul como existe atualmente. Só isso já seria o suficiente para se pensar bastante. Mas há razões mais importantes, como a cláusula democrática, que estabelece como condição para ser membro do Mercosul que um país seja democrático.’

A ‘cláusula democrática’

Percebam que a imprensa anda em círculo estreito, permanecendo com os mesmos atores, repetindo textos para manter teses caras ao tucanato. Por que não confrontar, sobre o mesmo tema, Lampreia e Amorim? O primeiro é anterior na agenda ou é mera afinidade eletiva?’

Quando o presidente venezuelano lamenta a demora na concretização de projetos vitais para a região – como o Gasoduto do Sul e o já citado Banco do Sul – sabe perfeitamente o que move as protelações. Ao dizer que por trás de atrasos e desencontros está a mão do império estadunidense, toca em questão cara a uma classe dominante que sempre pensou inserção subalterna como projeto ideal. O lamento de colônia costuma vir sob o argumento de que ‘fracasso das negociações para a criação da Área de Livre-Comércio das Américas (Alca) também não foi bom para o Mercosul porque abriu aos Estados Unidos espaço para promover acordos comerciais bilaterais’.

É nos marcos de uma história mal contada que algumas reações devem ser avaliadas. A nota divulgada à imprensa, sexta-feira, 21/09, pelo líder do PSDB, Arthur Virgílio, é um primor pelo que não diz: ‘Não adianta ele pressionar com esse discurso atrasado e com esse cacoete de insultar parlamentares para forçar a aprovação do ingresso do seu país no Mercosul’, concluindo que ‘em marcha batida rumo a um regime ditatorial, o governo de Chávez não preenche o requisito da cláusula democrática do Tratado do Mercosul’.

Estilo circense

O que o senador amazonense não tolera é o que dá mais sustentação a um projeto estratégico regional, aquilo que setores conservadores, dentro de um viés funcionalista, têm chamado de crise política. Ou ‘retórica nacionalista imprecisa’. É a reafirmação soberana de uma região que não constrange nenhuma instituição democrática, pelo contrário a confirma como instância de poder.

É preciso que o Estado, e não as forças cegas do mercado, continue sendo o principal fator de estruturação da economia e da sociedade, assim como base institucional para articulação dos processos de integração regional. Compreender a importância da Venezuela na integração das economias regionais e de suas matrizes energéticas está longe de, como quer fazer crer o discurso recorrente do conservadorismo, submeter o Congresso aos humores de Chávez.

Em 7/10/2006, escrevemos, na Agência Carta Maior: ‘O governo Lula tem uma política externa que fortalece o Itamaraty e aposta no Mercosul como futuro espaço de integração. Sabe que toda movimentação regional está sob a espada de Dâmocles do Império e suas 22 bases militares na região. A oposição, ao contrário, defende uma integração subalterna, controlada por megacorporações.’ Infelizmente, o texto não perdeu a atualidade. Virgílio e seus correligionários de redações continuam a atualizá-lo. A inclusão da Venezuela como membro pleno é questão de soberania regional. O resto é tergiversação de candidatos a vice-rei.

Quem assistiu ao documentário de Kim Bartley e Donnacha O’Brian sabe que, a depender das oligarquias latino-americanas que controlam a mídia, assim como qualquer revolução, integrações que interessem aos povos latino-americanos também ‘não serão televisionadas’. Um bom exemplo é o texto de um editorial do Estado de S. Paulo (22/09) sobre o encontro entre os dois presidentes, que reproduzimos abaixo:

‘Numa delas, Chávez abraça efusivamente o anfitrião. E o brasileiro, estático, mas nem em sonho extático, não move um músculo da face para retribuir a expressão teatral do outro. Pior ainda, nas fotos em que o ditador, os chanceleres dos dois países, o presidente da Petrobrás e, enfim, Lula, dão-se as mãos, ele não só é o único sério, como ainda se distancia da confraternização a que emprestou o braço direito, olhando, absorto, ou para baixo ou para um vago ponto no horizonte. Por menos que se deva escrutinar essas imagens à maneira dos analistas dos serviços de inteligência em busca de sutis sinais reveladores do estado das relações entre chefes de governo, o fato é que, palavras bonitas à parte, elas corroboram os comentários que trafegam pelos corredores do poder, em Brasília, segundo os quais Lula está perdendo a paciência com o espaçoso autocrata venezuelano – que, aliás, é, antes de tudo, um chato.’

Quando o campo jornalístico se despe de suas surradas representações não deixa de ser divertido. Melhor, encontra o estilo mais sintonizado com a sua dinâmica: o circense.

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Professor-titular de Sociologia da Facha, Rio de Janeiro