Nos primeiros anos deste século 21, a indústria da comunicação consolidou mudanças radicais em sua estrutura. Num processo nunca visto de fusões e aquisições, companhias globais ganharam posições de domínio na mídia. Os seis maiores conglomerados – Time Warner, Walt Disney, Vivendi-Universal, Viacom, Bertelsmann e News Corporation – passaram a gerar juntos US$ 160 bilhões de receita, mais de um terço da receita total de US$ 415 bilhões das cinqüenta maiores companhias de mídia, em todo o mundo [ver Dreyer, D. Organizational Change in the Global Media Markets – Causes and Consequences. Westfälische Wilhelms-Universität Münster, Alemanha, Janeiro de 2003].
Nas fusões, a norte-americana Time Warner uniu-se à America Online. O grupo europeu Vivendi fundiu-se com o Canal Plus, mais Seagram e NBC, da General Electric. O grupo Viacom adquiriu a CBS Corporation… Três entre estes seis encontram-se entre os 250 maiores grupos do planeta controlados por famílias: Viacom, Bertelsmann e News Corporation.
Os três tinham seus patriarcas em idade avançada no começo do século indicando rápida mudança geracional. Em 2005, o comandante da Viacom, Summer Redstone, completou 81 anos e Rupert Murdoch, da News Corporation, 71 anos. Em 2001, a Bertelsmann adiantou-se e resolveu o problema sucessório. Seu comandante, Reinhard Mohn, então com 78 anos, transferiu o controle da companhia para executivos e membros da família [ver Financial Times, ‘US Media’, 24 de fevereiro de 2005].
Fundado em 1954, o grupo norte-americano Viacom fatura cerca de US$ 25 bilhões por ano e tem mais de 120 mil empregados. Além de cinema (Paramount) e operações em internet, possui 39 emissoras de televisão (como CBS e MTV), 185 estações de rádio e uma editora como a Simon & Schuster.
O grupo alemão Bertelsmann, com receitas próximas a US$ 20 bilhões anuais e 80 mil funcionários, tem participação em 600 empresas diferentes e presença em 60 países. Possui negócios nas áreas de livro (Random House), de música (BMG), de revista e de televisão. Transformou-se em império global depois da segunda guerra mundial, pelas mãos de Reinhard Mohn – descendente de Carl Bertelsmann, o fundador da pequena editora religiosa, em 1835, depois transformada em gigante multinacional.
A News Corporation, de Rupert Murdoch, fundada na Austrália em 1923, pelo pai de Rupert, Sir Keith Murdoch, nasceu como empresa de jornal. Exibe receitas de US$ 18 bilhões anuais e 35 mil empregados. Opera com satélite e TV paga (Sky, Direct TV), televisão (a conservadora Fox), cinema (20th Century Fox), jornais (London Times, New York Post), editoras (Harper Collins), revistas (Weekly Standard) e esporte (o time de ‘baseball’ Los Angeles Dodgers). (…)
As preocupações com a concentração no mercado e o reinado de grupos familiares na mídia intensificaram-se no começo dos anos 90. Dois patriarcas cujas iniciais levam as letras R e M – Robert Maxwell e Rupert Murdoch – eram os ícones. Por coincidência, outro magnata das comunicações com as mesmas iniciais – Roberto Martinho – era a preocupação no cenário brasileiro.
Maxwell, filho de pai tcheco, naturalizado francês e britânico, morreu aos 68 anos, em novembro de 1991, em circunstâncias misteriosas. Caiu, jogou-se ou foi atirado ao mar de seu iate, no Mediterrâneo, o que interrompeu toda a agressividade da Maxwell Communications Corporation. O australiano-americano Murdoch demonstrou enorme apetite para engolir os menores, como o fez nos Estados Unidos, na Inglaterra e no Brasil, por exemplo, ao adquirir o controle da Direct TV (ex-Grupo Abril) e da Sky (ex-Grupo Globo). Na parte menor do trio, que acabou sócia de Murdoch, o brasileiro Roberto Marinho morreu em agosto de 2003. Desde então, a família Marinho toureia uma crise financeira que levou o grupo, por conta de investimentos na televisão a cabo e internet, a uma dívida de cerca de US$ 1,7 bilhão.
‘Em dez anos, existirão apenas dez corporações globais de comunicações. Eu… espero ser uma delas’, estimava Maxwell em 1984. Como visto, não deu tempo. Morreu antes de passar os dez anos da sua profecia, mas ela completou-se de outra maneira: duas décadas depois de proferida, apenas seis corporações detinham quase 40% das receitas globais do setor e a metade delas era liderada por grupos familiares [para a profecia, ver The Media Monopoly de Ben Bagdkian].
Na realidade, restam sete grandes. ‘O número de corporações midiáticas está se reduzindo, a tal ponto que é possível contá-las nos dedos das mãos. Se nos meados dos anos 80 do século passado estas transnacionais eram cerca de meia centena, em 1993 tinham-se reduzido a 27 e no final de 2000 eram apenas sete: Disney, Time Warner, Sony, News Corporation, Viacom, Vivendi-Universal e Bertelsmann. Todas elas provêm de países ricos: EUA, Europa e Japão’ [ver Se cayó el sistema – Enredos de la sociedad de la informacíon, de Sally Burch, Osvaldo Leon e Eduardo Tamayo].
Os autores da afirmação acima, Sally Burch, Osvaldo Leon e Eduardo Tamayo, acrescentam a japonesa Sony (Sony Music e Sony Pictures faturam cerca de US$ 9,2 bilhões por ano) aos grandes conglomerados mundiais da comunicação. Com isso, fecham o cerco e requentam a profecia de Maxwell. O século 21 começou com menos de dez grandes conglomerados de mídia de alcance global. Estreou concentrado.
Como satélites dos sete conglomerados midiáticos globais, em um segundo nível, encontram-se apenas cerca de 70 outras empresas de mídia direta ou indiretamente relacionadas com eles. ‘São potências nacionais ou regionais e controlam nichos de mercado. Entre um terço e a metade destas corporações de segundo nível são da América do Norte; a maioria das outras é da Europa ou do Japão. Muitas delas – nacionais ou regionais – foram criadas à margem dos impérios editoriais e televisivos. Algumas destas empresas de segundo nível estão classificadas entre as mil maiores empresas do mundo, com faturamento de um bilhão de dólares por ano (…)’ [idem, Se cayó el sistema].
‘Europa e América Latina tampouco escapam à tendência oligopólica’ – escreve o trio. ‘O conglomerado alemão Bertelsmann, primeira casa editora mundial, comprou o Grupo RTL e controla na França a Radio RTL e a cadeia de televisão M6; Silvio Berlusconi é proprietário das três principais redes privadas da Itália e, enquanto presidente do Conselho de Governo, controla o conjunto das redes públicas; na Espanha, a empresa Prisa controla o diário El País, a rede de radio SER, o canal pago Canal Plus da Espanha e o principal grupo editorial’ [idem, Se cayó el sistema].
Situação brasileira
No Brasil, nas três últimas décadas do século passado, eram dez grupos familiares que controlavam a quase totalidade dos meios de comunicação de massa: Abravanel (SBT), Bloch (Manchete), Civita (Abril), Frias (Folha de S.Paulo), Levy (Gazeta Mercantil), Marinho (Globo), Mesquita (O Estado de S.Paulo), Nascimento Brito (Jornal do Brasil), Saad (Bandeirantes) e Sirotsky (Rede Brasil Sul).
O panorama agravou na virada do século, com a crise econômica que sacudiu todas essas empresas. O jogo de forças sofreria modificações também com a ajuda das mudanças constitucionais de dezembro de 2002, que permitiram a participação estrangeira no capital das empresas jornalísticas (máximo de 30%), além da participação de pessoa jurídica, até então vetada.
Nos primeiros anos do novo século, quatro dos dez grupos familiares foram atingidos, sacudidos por uma crise que, na realidade, havia pegado três deles muito antes da virada de século. O furacão levou em seu torvelinho o grupo Bloch, fez mudar de mãos o Jornal do Brasil (Nascimento Brito) e também a Gazeta Mercantil (Levy) – ambos passaram para o controle do empresário Nelson Tanure – e retirou das mãos da família Mesquita a gestão do grupo Estado.
Ineficiência na competição com o Grupo Globo, queda de circulação nas revistas (Manchete, Fatos&Fotos, Pais&Filhos…) e graves problemas de gestão empurraram o grupo Bloch para o seu fim. Apesar do título continuar vivo, idem para o Jornal do Brasil nos três quesitos, com a diferença de que a queda de circulação foi no produto jornal, que, além de perder leitores, perdeu também o ‘glamour’ e a credibilidade conquistados principalmente durante os anos 60. No caso da Gazeta Mercantil foram os problemas de gestão que a levaram de roldão.
Se o novo século surgiu com seis dos dez velhos grupos tradicionais de mídia ainda sob o comando das respectivas famílias (Abravanel, Civita, Frias, Marinho, Saad e Sirotsky), três entre esses sobreviventes passaram a dividir parte de seu capital com empresas estrangeiras. O grupo Abril vendeu 13,8% de suas ações a fundos norte-americanos de investimento administrados pela Capital International Inc. O Grupo Globo virou sócio minoritário de Rupert Murdoch na Sky Brasil e vendeu 36,5% do capital votante da NET (distribuição de TV paga) para a Telmex, grupo mexicano de telecomunicações. O Grupo Folha cedeu 20% de todo o seu capital para a Portugal Telecom, a PT, que era sua sócia, anteriormente, apenas na operação de internet, o UOL.
Novidade não prevista em lei foi o fato de empresas internacionais, cem por cento de capital estrangeiro, praticarem jornalismo no país via comunicação eletrônica. Empresas como America Online, Terra, Reuters, Bloomberg e muitas outras que nasceram e cresceram (ou já morreram) durante o fenômeno de implantação da internet comercial apuram, editam e publicam notícias em solo nacional, via internet, como qualquer companhia de mídia brasileira, reforçando uma realidade segundo a qual as fronteiras na mídia não são mais geográficas e tornam-se cada vez menos culturais – fruto da paulatina concentração das empresas de comunicação.
Mesmo outras iniciativas de mudança constitucional para garantir a empresas brasileiras o monopólio na produção e comercialização de conteúdos (editoriais, de entretenimento, multimídia ou não), uma vez aprovadas, são inócuas por conta da completa dissolução das fronteiras: é possível construir conteúdo multimídia em qualquer língua a partir de outro país e dispô-lo para consulta universal via internet. [Em meados de 2005 tramitava no Senado brasileiro uma Proposta de Emenda Constitucional neste sentido, a PEC-55.]
Convergência introduz novos atores
Os três autores do paper patrocinado pelo Centro Internacional de Investigações para o Desenvolvimento, do Canadá, Burch, Leon e Tamayo, dizem que se atribui a concentração na indústria cultural à ‘convergência digital’, que ‘dissipa as barreiras antes existentes entre os diferentes meios (rádio, televisão e imprensa) e inclusive entre setores diferentes (telecomunicações, informática e comunicação de massas), reduzindo textos, imagens e som a somente um único suporte digital: o bit’.
O trio considera essa explicação ‘parcial e insuficiente’, porque a ‘força motriz da atual concentração midiática e cultural é a busca incessante do lucro’. Reitera: ‘O que impulsiona as grandes empresas a sair de seus marcos nacionais rumo à conquista dos mercados globais é o afã de obter os maiores ganhos no menor tempo possível, sem meditar sobre os meios que irão empregar para conseguir seus fins’ [idem, Se cayó el sistema, pág. 40].
Este argumento é pueril em toda a sua construção, dado que a questão dos maiores ganhos é imanente ao próprio sistema da indústria cultural. Os meios para obter determinados fins (os lucros) estão inseridos na indústria da cultura, independentemente do formato da mídia, desde que ela se estabeleceu enquanto indústria de escala, no século 19. Os três poderiam ter optado pela explicação via ‘irracionalidade e cegueira moral da competição de mercado’ [conforme Zygmunt Bauman no seu O mal-estar da pós-modernidade, pág. 34], mas preferiram a explicação simplista.
O fato novo – também lembrado pelo trio – é que empresas cuja tradição não se encontra na indústria da comunicação (nem na indústria da distribuição e, muito menos, na indústria do conteúdo) começam a dominar um sistema tradicionalmente tocado por famílias ou empresas cujas marcas impuseram-se, principalmente, pela construção de conteúdos, mesmo quando dominavam toda a cadeia, da produção à distribuição.
Tome, por exemplo, a mídia jornal. O publisher tradicional é proprietário da rotativa que imprime o diário, compra papel e tinta no mercado e transforma aquela matéria-prima, com o conteúdo, em um veículo de informação que sua empresa mesma leva direto aos assinantes ou distribui em pontos de venda, as bancas. O publisher controla o sistema inteiro e obtém daí a margem de lucro do processo como um todo – ao qual se acrescenta a verba da publicidade, que, em tese, traz mais receita quanto maior for a circulação.
O mesmo ocorre na indústria de revistas e, de certa forma, na de televisão. Com as devidas relativizações, o principal negócio das famílias ou empresas de mídia está historicamente ligado ao ramo dos conteúdos que estas indústrias produzem, seja de informação na mídia impressa, seja informação e entretenimento na televisão. De uns anos para cá isso mudou.
Empresas egressas de outras indústrias que não a de conteúdos em comunicação entraram firme neste mercado.
O grupo francês Vivendi vem do comércio de água, a General Electric (que fundiu a sua NBC com a Vivendi) vem da indústria eletrônica. Serge Dassault, que adquiriu na França a Socpresse (jornal Le Figaro e semanário L’Express, entre 70 títulos), é do grupo Dassault, fabricante de armamentos, de aviões de combate – como Mirage e Falcon. O grupo Lagardère, que detém participação no Le Monde e revistas como Paris Match, também é do ramo de armamentos. O Libération, bastião da esquerda francesa fundado nos anos 70 por Jean-Paul Sartre, transferiu 37% de seu capital para um banqueiro, Édouard Rotschild. A espanhola Telefonica, proprietária de portal de internet e de emissora de televisão e serviços de televisão paga via telefone, vem da indústria de telecomunicações. No Brasil e em Portugal, a empresa de telecomunicações dona de ativos em mídia é a Portugal Telecom. No Brasil é sócia do Grupo Folha, como visto acima, e em Portugal é proprietária do portal Sapo. Ainda aqui, a mexicana Telmex (telefonia) se tornou sócia do grupo Globo. A operadora de telefonia Brasil Telecom adquiriu o controle do portal IG. A empresa de celular Oi, do Grupo Telemar (de capital 100% brasileiro), lançou em 2005 a Oi FM (em Belo Horizonte e Vitória) e tem uma revista bimestral de ‘variedades’, a Revista Oi, vendida em banca e distribuída para clientes. Um empresário que vem da metalurgia, e pula de ramo em ramo, comprou os títulos do Jornal do Brasil e da Gazeta Mercantil.
Em menos de duas décadas o mundo acompanhou o salto da tecnologia analógica para a digital, viu a telefonia celular explodir e multiplicarem-se as maneiras de comunicação, com a possibilidade da interação entre redes de computador, além de um aumento exponencial na velocidade de transmissão de dados, sob qualquer plataforma – celular, rádio, satélite, fibra de vidro ou mesmo o fio de cobre. Em menos de dez anos, passaram-se dos 1,2 kilobytes do ‘modem’ dos anos 80 para os 56 Kbytes dos anos 90 e, rapidamente, em menos de dez anos, chegaram-se às transmissões em megabytes – os dados passaram a trafegar nas redes de comunicação numa velocidade que saltou de mil para milhões de bytes.
Não se sabe qual (ou quais) tecnologia irá vencer na queda de braços da transmissão de dados que jogam a fibra ótica, o satélite e os celulares – todos, no limite, complementares, interligáveis e capazes de conviver em harmonia. Mas pode aparecer e vencer alguma outra tecnologia, ainda desconhecida. Enquanto isso, a digitalização já chegou às salas de cinema e a televisão digital é realidade, mesmo sem a conclusão sobre qual (ou quais) sistema digital irá vencer a batalha; o japonês (ISDB), o europeu (DVB), o americano (ATCS) ou o chinês, este último ainda em desenvolvimento, previsto para 2010.
A tecnologia do sistema digital muda de forma radical a comunicação tal qual é conhecida no começo do século 21. Ela é muito mais do que televisão. Como diz José Paulo Cavalcanti em texto inédito, ‘é ambiente de computação e comunicação multimídia, interativo, em rede, sobre o qual podem ser (e inevitavelmente serão) desenvolvidas aplicações que constituem um mercado mundial de centenas de bilhões de dólares. (…) Tão amplas são as possibilidades da televisão digital que, por exemplo, ela poderia resolver a questão das rádios e TVs comunitárias. Haveria freqüência para todos. Com as múltiplas implicações institucionais daí decorrentes’ [texto de José Paulo Cavalcanti especial para a Unidade de Reflexão ‘Quem manda em nós?’ do Instituto DNA Brasil, inédito, pág. 3].
Ela carrega consigo a possibilidade de integrar num mesmo sistema de distribuição e recepção tanto a própria televisão, como a internet, filmes, telefonia de imagem e voz, redes de dados, tudo isso distribuído pela casa ou escritório para cada aparelho receptor: televisão de alta definição, telefone fixo ou celular, tela de cinema, computador, ‘palm’, rádio, rede interna com ou sem fio, microondas ou até geladeira, tudo regulado via internet… Cada canal de seus infindáveis canais vai permitir uma aplicação diferente.
Não é de estranhar, portanto, que tanto companhias de produtos eletrônicos quanto de telecomunicações desejem dominar este negócio de ponta a ponta – ou mesmo outras empresas que historicamente nada tenham a ver com tudo isso. A televisão digital instaura a famosa convergência na comunicação – todos os meios num único suporte de distribuição.
As questões resultantes são inúmeras e complexas, pois a indústria da mídia utilizará necessariamente a informática (tanto no hardware quanto no software), o conteúdo e a arte (na informação e no entretenimento) e as tecnologias de distribuição (no ar ou nas fibras). (…)
Pois foi no final da década de 80 que os dois mais famosos RMs das comunicações mundiais (englobando televisões, editoras de revistas, jornais, livros e enciclopédias), Robert Maxwell e Rupert Murdoch, repensaram seus investimentos na área da imprensa escrita. Maxwell morreu e Murdoch adentrou firme no mercado da televisão e do satélite. Em apenas dez anos, de 1990 a 2000, um ‘tsunami’ tecnológico, movido pelo celular e pela internet, revolucionou a forma de as pessoas se comunicarem, banalizou a informação e o mundo passou rapidamente da escassez para a saturação da informação.
Jornais sofrem mais
Quem mais sofre com isso é o mercado de jornais, apesar de essa indústria, como negócio, continuar rentável – independentemente da constante, firme e irreversível queda de circulação. A luz acendeu nos EUA em 1990, quando a quantidade média de exemplares de jornais lidos em cada grupo de mil habitantes caiu para dois terços da circulação auferida na década de 60 e o reino da mídia impressa nos EUA, então com 1.700 jornais diários, deu fortes sinais de desgaste. Um estudo revelado pelo professor Robert P. Clark, consultor editorial da ANPA, a American Newspaper Publishers Association, apontou que os lucros dos jornais americanos caíram de 20%, em 1989, para 17% um ano depois.
O lucro do mais celebrado e respeitado jornal do país, The New York Times, despencou de 266,6 milhões de dólares em 1989 para 64,8 milhões de dólares no ano seguinte. Só no primeiro trimestre de 1991, o lucro da empresa The Washington Post Co. (que controla o jornal do mesmo nome e a revista semanal Newsweek) caiu 65% em relação ao mesmo período do ano anterior. [Ver apresentação da Newspaper Association of America, ‘Why the Current Business Model Needs to Change’, disponível aqui e citado aqui, onde se pode ver o relatório de 2005.]
Os jornais não conseguiram aumentar a circulação, mas demonstraram uma razoável capacidade de recuperação financeira e voltaram a ser considerados produtos de média lucratividade. O New York Times, por exemplo, retornou no início do século à faixa dos nove dígitos de lucro líquido. Em geral, os jornais retomaram a média dos 20% de lucro [ver entrevista de Arthus Ochs Sulzberger Jr. republicada por O Estado de S. Paulo em 28/4/2005, à pág. A16; ver também o Relatório de 2005].
Como negócio, os jornais usam da reengenharia para se mostrar, de novo, rentáveis. No Brasil alguns conseguiram reaver a lucratividade com cortes de despesas, gasto menor com corte no consumo do papel jornal, porque caiu a circulação, e racionalidade administrativa na base do ‘downsizing’, que significa demitir altos e médios salários, contratar baixos salários e dar-lhes mais trabalho e responsabilidade. ‘Rever processos’ é como isto é conhecido. Enquanto produtos capazes de manter audiência ou de atrair novas audiências, no entanto, os jornais se revelam altamente incapazes – mundialmente. Mora aí o problema quando se tenta traçar o mapa de sobrevivência entre as diferentes indústrias que compõem a mídia.
Dados coletados pela Unesco escancaram o tamanho do desafio. Nos 40 países nos quais é possível ter números do ano 2000 e algum histórico, mesmo que não remonte a 1965, quando as referências começaram a ser colhidas, a situação é em geral alarmante. Uma análise atenta permite constatações como as listadas abaixo. Enquanto isso, de 1965 a 2000, a população mundial cresceu 148%: 71% nos países ricos e 178% nos países pobres (percentuais ilustrativos porque a conta da circulação dos jornais detectada pela Unesco é proporcional à população).
Algumas constatações:
**
A circulação de jornais estagnou-se em três países, cresceu em somente cinco e caiu em 32 do total de 40 países.**
Entre os cinco países que revelam crescimento no consumo de jornal dois são de primeiro mundo (Noruega e Japão), dois podem ser considerados em desenvolvimento (Portugal e Paquistão) e um é comunista (China):**
A maior queda se deu na Argentina, a circulação média caiu 65%.**
Nos EUA, o estrago foi de 37% em 35 anos, uma queda anual de 1,3%. Mas ali se lêem 196 exemplares de jornais diários para cada grupo de mil habitantes.**
No Brasil o baque foi de 15% em 35 anos, uma queda média de quase 0,5% ao ano. Só que no Brasil se consomem apenas 45 jornais para cada grupo de mil habitantes.Se estas observações remontam ao ano de 2000, números atuais sobre o Brasil revelam estrago maior. Quando se olha a quantidade, na casa dos milhões de exemplares por dia, e se comparam cifras de 2000 a 2003, vê-se que em apenas três anos o baque foi de 18% na circulação, uma média negativa de mais de 6% ao ano.
Quanto mais avançam as novas mídias, mais a mídia tradicional perde leitores. Ao observar a queda constante na leitura diária dos jornais o especialista Philip Meyer, professor de jornalismo na Universidade da Carolina do Norte, prevê o fim do jornal impresso para abril de 2043, conforme projetou no livro The Vanishing Newspaper – que leva subtítulo desafiador: ‘Salvando o jornalismo na era da informação’ –, e foi citado com preocupação por Rupert Murdoch em célebre discurso na Sociedade Americana de Editores de Jornais. [Ver discurso de Murdoch realizado em 13 de abril de 2005 e disponível aqui; a informação de Meyer está na pág. 16 de seu livro.]
Revistas e TVs sofrem também
Não existem dados globais para a indústria de revistas, mas uma publicação da Federação Internacional da Imprensa Periódica (FIPP) colige a circulação de inúmeras revistas em todo o mundo. Uma análise dos números referentes às 50 maiores revistas de notícias gerais, de informações econômicas e de negócios mostra uma situação parecida com a dos jornais, ao menos de 2002 a 2004. (…)
No Brasil, a Associação Nacional de Revistas apura queda de 9% na circulação total das revistas entre 2000 e 2003, uma perda anual de 3% de circulação. Apesar disso, a indústria vê proliferar a quantidade de títulos (eles eram 1.534 em 2000, chegaram a 2.110 em 2002 e caíram um pouco, para 1.969, em 2003), o que traz um novo problema: o excesso de revistas nas bancas e os desafios daí resultantes para os departamentos de marketing das empresas de revistas.
Esses dados de diminuição de circulação, em conjunto com os dos jornais, revelam incapacidade de reciclagem e total incompreensão das novas formas de mídia.
Para complicar o panorama, de 2000 a 2004, o mercado de mídia brasileiro amargou a estagnação das receitas de publicidade, que ficaram entre R$ 9 bilhões e R$ 10 bilhões por ano e, em dólar, viram o faturamento despencar de US$ 5,3 bilhões para US$ 3,3 bilhões, ou seja, uma queda de quase 40% devido, em grande parte, à desvalorização do real frente ao dólar. Estas receitas são importantes porque, em alguns casos, como na televisão aberta e em muitos sítios de internet, significam a totalidade de recursos possíveis – mesmo que a internet ainda tenha no Brasil uma participação desprezível no bolo de publicidade como um todo, não mais de 2% ou 3% do total.
Nos jornais e revistas, a receita de publicidade forma, em geral, a metade da receita total. A outra metade é composta pelas receitas de circulação (venda avulsa mais assinaturas). A televisão aberta vive da publicidade (onde se inclui o ‘merchandising’). A televisão paga vive das assinaturas mais a publicidade. Os provedores de internet vivem de assinaturas, da publicidade e do comércio eletrônico. Alguns sítios na internet vivem apenas da publicidade e comércio eletrônico e outros retiram seus recursos da publicidade, do comércio eletrônico de terceiros e da comercialização do próprio conteúdo.
Em relação à televisão, ela também vem perdendo, não audiência, mas tempo de exposição junto ao público, principalmente nos EUA, onde institutos de pesquisas contratados pelos novos meios de comunicação apontam transferência de tempo de televisão para a internet. O público, em vez de assistir à televisão, agora ‘assiste internet’, como se diz entre os membros da nova indústria da mídia.
‘Se você pudesse usar apenas dois veículos de comunicação na sua vida, quais os dois veículos de comunicação que você usaria?’, perguntou um desses institutos aos americanos, sob o patrocínio da Online Publishers Association. O resultado é óbvio: 45,6% apontaram a internet como primeira escolha e 34,5% a televisão. Ou seja: 80% do público prefere internet e televisão e, relevante, a internet é colocada em primeiro lugar. A mesma pesquisa perguntou quanto tempo cada um usava determinada mídia durante um típico dia de semana. Resultado: 19% usavam a internet mais de 5 horas por dia, enquanto 15% gastavam o mesmo tempo com a televisão. De um ano para outro, 47% disseram despender mais tempo com internet.
A população internauta cresce exponencialmente em todo o mundo e existem países, como os EUA, cuja penetração do veículo (a quantidade de pessoas com conexão de internet) era de quase 70% em 2004 [conforme o sítio eMarketer], ou seja, quase 70% da população norte-americana tinha acesso à internet, enquanto no Brasil a penetração estaria na casa dos 11%, conforme a tabela 5, composta a partir de fontes diversas. Uma outra fonte, o Ibope/Net Ratings, apurou mais: no final de 2004 teriam acesso à rede 31,9 milhões de brasileiros, o que perfazia uma penetração de 17%. (…)
Cinco preocupações
A queda de circulação nos jornais e revistas e a emergência de novas formas de distribuição de mídia – via rede de computadores, ‘laptops’, ‘palmtops’, celulares e o que mais se inventar a partir da disseminação da tecnologia digital – reforçam a preocupação da tradicional indústria de mídia com a canibalização de seus produtos: o medo de que todos passem a ler jornal e revista e a assistir televisão somente via internet.
Especialistas de mídia nos EUA, responsáveis pelo relatório anual do ‘Project for Excellence in Journalism’, cujo alto-falante é o sítio www.journalism.org, apontaram em 2005 cinco tendências e as preocupações a elas inerentes em relação à mídia noticiosa. Denotam uma situação tão grave quanto a inexorável queda de circulação da imprensa escrita e que podem, no médio prazo, liquidar com as margens e com a capacidade de recuperação dessa indústria, além de escancarar a radical transformação na maneira de se fazer mídia promovida pelas novas tecnologias. (…)
Em resumo, para tentar salvar o jornalismo tradicional, os especialistas norte-americanos analisam: o jornalismo está ficando cada vez mais rápido, inexato e barato; quanto mais partidarizado, mais desconfiado fica o público em relação às notícias; os jornalistas mais experientes estão se aposentando e tudo de bom trazido por essa geração está se pulverizando; as empresas precisam investir em novas audiências, mas não o fazem; para se adaptar aos novos tempos, o jornalismo tem que ser mais transparente, trazer mais expertise e alargar o campo de seu farol.
São aflições importantes do ponto de vista estratégico, mas suficientes para trazer vida nova às tradicionais formas de distribuição de notícia? Para revolucionar as velhas mídias basta curá-las do medo da canibalização? Será esta a razão pela qual vingou a concentração e os vencedores são os grandes conglomerados de mídia (ou novos aventureiros) porque tiveram visão estratégica, conseguiram trabalhar sob esta nova moldura e não se preocuparam tão somente em retransmitir, em reproduzir o mesmíssimo conteúdo, seja impresso seja audiovisual, mas em reinventá-lo na internet?
No limite, o terceiro item (para se adaptar, o jornalismo tem que ser mais transparente, trazer mais expertise e alargar o campo de seu farol), se bem aplicado, serve para qualquer forma de comunicação e sob qualquer suporte – papel, vídeo, tela de computador, de celular, de ‘palm’ ou de qualquer outro futuro ‘device’.
Essas assertivas só reforçam a imperiosa obrigação de toda empresa de comunicação se reciclar para entender que seu negócio não é mais simplesmente processar o melhor conteúdo e imprimi-lo por meio de tecnologias do século passado (as rotativas) e distribuí-lo de forma medieval (carregado fisicamente por veículos de roda até os domicílios, bancas e empresas). Mais cedo ou mais tarde, essa indústria – mesmo trabalhando com tecnologias ‘modernas’ como a da televisão – estará incorporada direta ou indiretamente a algum grupo global de comunicação em relação ao qual já age como satélite.
Três conceitos para iluminar a situação
Com certeza a maneira de consumir mídia mudou. Mudou igualmente a maneira de produzir mídia. Mudou porque a desagregação da esfera pública se traduz num jogo de comunicação entre múltiplos agentes que mimetizam facetas e técnicas da imprensa e as usam segundo as respectivas necessidades e interesses. Hoje, para que algo vire notícia, independentemente desse algo próprio, existe o trabalho planejado e profissional de lobistas, assessores de imprensa (transmutados em ‘agentes de comunicação’), analistas corporativos, assessores governamentais, ‘blogs’ de analistas independentes, informações dispersas nas redes corporativas e acadêmicas, além das outras fontes tradicionais de informação. Nos lances de tensão nos quais se dá formato às notícias e ao espetáculo que a envolve na mídia, cada jogador atua com o seu peso e sempre de forma assimétrica.
Três conceitos podem ajudar a iluminar o problema da comunicação, a lançar um foco de luz para que, ao menos, se enxergue algo do que ocorre. São os conceitos de ‘modernidade líquida’, de Zygmunt Bauman, do ‘príncipe eletrônico’, de Otavio Ianni e o de ‘assimetria da informação’, de Joseph Stiglitz.
Liquidificada pelas novas mídias, a comunicação entra em uma nova era, não mais pós-moderna, melhor, líquida, como prefere o sociólogo polonês radicado na Inglaterra Zygmunt Bauman. Nessa modernidade líquida, os conceitos e interesses se amoldam ao sabor das ondas, aos altos e baixos e às discrepâncias das profundezas para exibir uma superfície plana, que cobre extensivamente todo o planeta com seu abraço que afaga e afoga.
Líquida porque a ‘sociedade moderna, como os líquidos, se caracteriza por uma incapacidade de manter a forma’, diz Bauman. E acrescenta: ‘Nossas instituições, nossos quadros de referência, estilos de vida, crenças e convicções mudam antes que tenham tempo de se solidificar em costumes, hábitos e verdades ‘auto-evidentes’’ [entrevista de Zygmunt Bauman a Maria Lúcia Garcia Palhare-Burke, Folha de S. Paulo, caderno Mais!, págs. 4 a 9].
Passada a modernidade ‘sólida’ – ela pode ter nascido com Descartes e morrido por volta dos anos 80 do século 20, quando os conceitos tinham consistência e substância –, surgiu um novo mundo no qual os conceitos e os valores são relativos, principalmente na comunicação.
Dentro desta pós-modernidade definida como líquida forjou-se um outro fenômeno, o do ‘príncipe eletrônico’, o único senhor das engrenagens da globalização, conforme o bordão criado por outro sociólogo, Otavio Ianni, para aquilo em que se transformou, na pós-modernidade, o conceito do príncipe de Maquiavel. Conceito que também havia sido substituído – e agora ultrapassa o do ‘príncipe moderno’, o partido político, conforme cunhou Antonio Gramsci.
O príncipe eletrônico não é nem a figura do líder político, na acepção clássica a partir da definição dada por Maquiavel, o condottiere, e muito menos o todo poderoso partido político que fez revoluções socialistas e deu novo sentido ao capitalismo, ao trabalhismo e ao liberalismo. O príncipe eletrônico engloba líder e partido e não apenas realiza, como deixa para trás não só a perspicácia, mas todas as atividades das duas instituições.
É uma ‘entidade nebulosa e ativa, presente e invisível, predominante e ubíqua’, que permeia todos os níveis da sociedade. Essa entidade ‘expressa principalmente a visão do mundo prevalecente nos blocos de poder predominantes em escala nacional, regional e mundial’. Ela está presente também localmente, ela é a mídia, e a grande corporação da mídia é aquela que ‘realiza limpidamente a metamorfose da mercadoria em ideologia, do mercado em democracia, do consumismo em cidadania’. [Para o ‘príncipe eletrônico’ ver capítulo com este mesmo nome em Otavio Ianni, Enigmas da modernidade mundo; págs. 148 a 152].
O príncipe eletrônico é a face globalizada da indústria cultural, é a onipresença da mídia que regula e desregula, instaura e tira, manda e desmanda – num mundo onde a informação não corre solta nem totalmente livre, porque corre desigual. É tanto a mídia das corporações quanto dos ‘blogs’, dos jogos de tensões, das versões, dos fatos, da propaganda, do merchandising, da moda, dos costumes – da ausência de valores.
Se a informação corre de forma abundante, facilmente capturável, nada garante que ela corra inteira, em formato inteligível e confiável. Ela se movimenta de forma assimétrica, sempre. Ao lado da modernidade líquida e do príncipe eletrônico, esse é mais um conceito inteligente para entender a arquitetura da comunicação globalizada. Foi desenhado por Joseph Stiglitz, prêmio Nobel de economia em 2001, ao analisar algo que pouco tinha a ver, aparentemente, com a indústria da cultura.
Ao explicar a questão da assimetria da informação nos mercados econômicos, Stiglitz iluminou outra face do mesmo problema, cuja raiz se desnuda quando se sabe melhor, a partir dele próprio, que as imperfeições da comunicação, mesmo sob o domínio das mais portentosas técnicas da mídia, são ‘pervasivas’, onipresentes, não só na economia, mas na comunicação como um todo.
Assimetria quer dizer ausência de igualdade, falta de simetria, ou seja, uma disparidade, uma discrepância, uma desigualdade. Um lado sempre tem mais informação do que o outro no processo da comunicação. Isso vem do fato de pessoas diferentes saberem coisas diferentes e em quantidades e profundidades distintas. ‘Os trabalhadores sabem mais sobre suas habilidades do que a empresa, quem compra seguro de saúde sabe mais sobre sua saúde, se fuma ou bebe de forma imoderada, do que a empresa de seguros; o proprietário de um carro sabe mais sobre o carro do que compradores potenciais; o proprietário de uma empresa sabe mais sobre a empresa do que um investidor potencial; o credor sabe mais sobre seu risco e o risco tomado do que o emprestador’ [ver texto de Stiglitz, ‘Information and the change in the paradigm in economics’].
Por decorrência, a fonte do jornalista, um ambientalista, por exemplo, sabe mais do que o jornalista que o procura para reportar as queimadas na Amazônia. O jornalista que colheu as informações sabe mais do que o editor que vai estampá-las. O editor sabe mais do que o diretor do seu veículo, que, por sua vez, sabe mais que o leitor leigo…
A conseqüência natural é que aquela informação publicada poderá conter menos informação do que o ambientalista consideraria vital e o veículo poderá descartar dados importantes, distorcê-los, retirar declarações do contexto, mudar significados e, muitas vezes, sem que o jornalista e o editor se dêem conta da grotesca vulgarização e distorção que a limitação de tempo e de espaço, inerentes à atividade da indústria da comunicação, fizeram-nos perpetrar.
Assimétricas, as informações dançam conforme os entendimentos, as necessidades e a manipulação das forças tensionadas no espaço do príncipe eletrônico – além de terem sido vulgarizadas e facilitadas para a compreensão média do público, para conforto dos comunicadores em relação à idéia que eles mesmos formam do gosto médio do ‘grande público’. O nivelamento praticado pela indústria da cultura assim o exige e assim realimenta a cadeia da informação sistematicamente nivelada sempre a um nível mais baixo, sempre em busca da compreensão mais generalizada. (…)
A tensão entre a fonte, o jornalista/empresa e o público – produz resultados que emergem de um espaço ao mesmo tempo concentrado e disperso, tanto assimétrico quanto permeável. Nessa nova arquitetura, em que o jogo de forças é desigual, o desenvolvimento tecnológico leva a situações inéditas.
O paradoxo concentrado/disperso se insere na idéia de fluidez pela qual se constitui o mundo dito pós-moderno. Nas dores de cabeça dos especialistas do sítio journalism.org, aparece uma das facetas dessa fluidez, dessa dispersão que modifica a face da mídia: ‘O modelo tradicional da imprensa – do jornalismo da apuração – é aquele em que os jornalistas estão preocupados primeiramente em tentar substanciar fatos. Ele vem cedendo terreno há anos aos ‘talk shows’ e, na TV a cabo, para um novo jornalismo assertivo, no qual a informação é oferecida sem muita investigação e com poucas tentativas de verificar de forma independente sua veracidade. Também a ‘blogosfera’ (o fenômeno dos ‘blogs’, da internet), enquanto adiciona a riqueza de vozes dos cidadãos, expande essa cultura assertiva, ou opinativa, de forma exponencial e a traz para uma filosofia afirmativa: publique qualquer coisa, especialmente pontos de vista, e os relatos e a verificação ocorrerão mais tarde, na resposta dos companheiros ‘bloggers’. O resultado é às vezes verdadeiro, às vezes falso. ‘Blogs’ ajudaram a desmascarar erros da imprensa, mas espalharam também infundadas teorias, como, por exemplo, a ocorrência de corrupção em parte das eleições presidenciais [americanas]. Tudo isso torna mais fácil a manipulação da opinião pública – via governo, grupos de interesse e corporações – quando se distribuem mensagens não apuradas por meio de distribuidores independentes ou de seus falsos sítios noticiosos, de vídeo e ‘press-releases’ impressos e comentadores pagos. Na seqüência, a edição computadorizada tem o potencial de pegar tudo e misturar numa coisa só’ [ver o Relatório de 2005 de (www.jourrnalism.org)].
Misturam-se blocos de textos por meio de uma associação de dados computadorizada que mescla informações produzidas por fontes idôneas com as produzidas por fontes inidôneas e que criam, comumente, novos significados, mais ou menos ou totalmente falsos, sem nenhuma representatividade, mas com razoável capacidade de propagação. Dois exemplos simplórios: a Amazônia teria sumido do espaço brasileiro em mapas escolares norte-americanos; o telefone celular não poderia ser usado em postos de gasolina.
Na esfera das tensões, o público encontrou sua maneira de participar, e as diferentes fontes encontraram maneiras mais eficientes de manipular a mídia. Até explicar que determinada informação não tem credibilidade, muitas vezes já se criou uma versão transmutada em fato definitivo e inabalável. As facilidades de comunicação tornam mais complicado o jogo da credibilidade, pedra de toque do jornalismo até o nascimento dessa nova mídia. Não é à toa que a indústria propagadora dos mitos da imparcialidade, independência e objetividade sofra agora para tentar separar o joio do trigo. (…)
No jogo das instâncias, os grandes conglomerados de mídia e os seus satélites formam e deformam opiniões, criam e destroem sucessos, lançam e derrubam modas, estimulam e acabam com carreiras, fazem e acontecem.
À essa partida midiática, somam-se, paradoxalmente, todas as possibilidades de manipulação promovida pelas fontes e de instrumentalização da representação da realidade, além da interferência das interações não tradicionais – os ‘blogs’ são um exemplo. É a modernidade em estado líquido, a individualidade fluida, nivelada de forma global, globalmente conectada e saturada de informação.
Cinco movimentos reais
Liquidificada a história da mídia e analisada a sua situação na era digital, é possível traçar movimentos que denotam o fim do jornalismo tal como conhecido:
1.
a concentração que leva à formação dos grandes conglomerados de mídia não é mais tendência, é fato. Esse movimento tende a abater a tradição dos grupos familiares à frente dos negócios de comunicação. Empresas sem nenhuma tradição na indústria do conteúdo começam a dominar a mídia. No Brasil, a crise levou históricos grupos familiares de imprensa à bancarrota ou à perda do controle de suas empresas;2.
no suporte papel jornal tende a desaparecer no formato atual, que utiliza enormes rotativas. Há previsões, inclusive, de que os jornais acabam em 2040. Os jovens não lêem mais jornais impressos. Relatório da Carnegie Corporation, citado por Murdoch no seu discurso aos jornalistas, informa que 44% dos jovens usam portais ao menos uma vez por dia em busca de notícias, enquanto apenas 19% lêem jornal diariamente;3.
o papel do jornalista será diminuído em função da manipulação da informação pelas fontes e por conta da própria assimetria da informação. Isso porque elas, as fontes, detêm informação com mais abrangência e profundidade. O jornalista terá cada vez menos tempo para apurar, pesquisar e checar dados. Eles poderão até estar publicados em algum lugar quando o jornalista chegar até eles;4.
a maneira de fazer jornalismo muda completamente com a nova realidade digital, que carrega a possibilidade de fazer buscas assertivas globais, de forma aleatória e automática, e de mesclar informações confiáveis com informações não confiáveis. Os grupos de mídia que não se reciclarem e não investirem definharão na medida da decadência das velhas mídias – em especial, as mídias impressas. O jornalismo tradicional vai mudar – ‘Dê às pessoas o controle da mídia, elas o usarão; não dê às pessoas o controle da mídia, você as perderá’, afirmou Murdoch, sempre preocupado, no famoso discurso. As pessoas querem participar da feitura das notícias, querem informações sob demanda direta delas próprias. Os ‘blogs’ são a ponta desse iceberg. A indústria terá de se ajeitar com isso e ‘permitir’ que cada individualidade imagine ter o controle da mídia, pois cada uma terá sua relevância própria e as individualidades se afirmarão enquanto tal. Em relação às novas formas, no seu discurso, Murdoch explica que o tráfego de notícias do portal de busca Google (que mescla informações de diversas fontes) cresceu 90% em um ano (2005 versus 2004), enquanto o ‘excelente sítio do jornal The New York Times decresceu 23%’ [Murdoch, idem nota 14];5.
as redes de informação vão proliferar. Muitas já nasceram e crescem em escala geométrica. Formam-se a partir de redes de instituições e de organizações não-governamentais, redes governamentais, redes comerciais, redes industriais, redes de serviço, sindicais, partidárias, universitárias, esportivas, de fãs-clubes… Cada uma delas terá sua própria produção de informação. A segmentação vista no mercado de revistas é infinitamente menor em relação à capacidade de segmentação e de aprofundamento de questões das redes independentes e interdependentes, com níveis e mais níveis de acesso à consulta das informações e dos dados.Nunca será demais repetir: está em desenvolvimento uma comunicação mais fluida, mais individualista e ainda mais assimétrica. O jornalismo perde a proeminência e se transforma em mais uma forma de informação. Não será mais o principal ator no espetáculo da comunicação. Nesse jogo de múltiplos atores, e muita assimetria, é que se dá e se fará cada vez mais o jogo do poder. Ou seja: absolutamente nada existirá se não estiver entrelaçado pelo abraço líquido do príncipe eletrônico.
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Jornalista, presidente executivo da Fundação Semco, mestrando em Jornalismo pela Escola de Comunicações e Artes da USP e professor de Ética Jornalística da Faculdade Cásper Líbero.