A televisão digital está aí. Com toda sua imagem perfeita, em alta definição e interatividade, som 5.1 límpido, mobilidade e portabilidade. Vocês viram? Eu, não. O único digital que vejo no Rio de Janeiro é o ‘HD’ escrito nas cartelas que as emissoras colocam ao lado de seus logotipos na tela – que recebo analogicamente via televisão por assinatura (desculpem, comunicação audiovisual de acesso condicionado).
Após anos de discussão, consultas públicas, incentivos financeiros à pesquisa e desenvolvimento, conversas informais e formais, reuniões com diversos setores da sociedade, o modelo criado para o Brasil ignorou todos os debates pró-democráticos de acesso à comunicação e baseou o padrão inteiramente em inovações mercadológicas.
Algumas justificativas apresentadas pelo governo (leia-se: radiodifusores) ao optar pelo modelo híbrido Brasil-Japão são o potencial inclusivo da tecnologia, a melhoria da imagem e som e a superioridade sobre os outros padrões. Tudo muito lindo se fosse verdade.
Faustão em alta definição
Vamos por partes. Realmente, o padrão brasileiro é o melhor do mundo por ser o mais novo (pegou a melhor modulação, a melhor compressão de vídeo…) – e, por isso, é um padrão caro para o consumidor adotar. No entanto, como é comum em tecnologia digital, logo ficará ultrapassado. Neste caso, então, seria melhor escolher um padrão que pelo menos conversasse com algum outro no mundo (o brasileiro não é compatível nem com o japonês). O que vai acontecer é o mesmo que aconteceu com os sistemas analógicos (NTSC não combina com PAL, que não combina com Secam, que não combina com PAL-M e o restante do alfabeto).
E se era para adotar um padrão isolado, então melhor seria se tivéssemos confeccionado um totalmente brasileiro (universidades do Brasil conseguiram desenvolver até tipos de modulação).
Em tempos de globalização, rápido acesso à informação e colaboração entre usuários, a formatação de padrões fechados vai contra toda a tendência de comportamento social e econômico. As pessoas que tomaram esta decisão deveriam ter lido as recomendações de Nicholas Negroponte sobre elaboração de padrões para a televisão digital e cultura digital – ele diz que ‘ser digital é ter licença para crescer’.
Falar sobre a melhoria da imagem é risível. Transmissão em HD é completamente desnecessária. O que a população quer, segundo uma pesquisa do CPqD de 2004, é a melhoria da imagem, ou seja, sem ruídos ou fantasmas, e em segundo lugar maior oferta de canais. Quando os radiodifusores apresentam justificativas sobre suas escolhas, dizendo que o povo quer a alta definição, estão, na verdade, mascarando o verdadeiro motivo. Representantes da Globo, por exemplo, afirmam que a população quer ver Faustão em HD; quer ver futebol e novela em alta definição – eu não vi nenhuma pesquisa onde o Brasil dissesse isso.
Interatividade impossibilitada
E, sério, Faustão em HD?! Por favor… Não façam isso conosco…
Supondo que o povo queira alta definição: e aí? Ele tem alta definição hoje? E terá daqui a algum tempo? Obviamente, a resposta é não. A programação em HD é extremamente pequena e praticamente ninguém tem acesso a ela quando é transmitida (quem poderia receber a alta definição via transmissão aberta terrestre paga TV por assinatura).
Além disso, para receber em alta definição a pessoa precisa de um aparelho que receba este tipo de sinal, e os set top boxes, como são chamados, ainda estão além do poder aquisitivo da população brasileira. Para aproveitar todo o potencial de uma imagem como essa, não basta receber o sinal; deve-se ter um televisor com excelente definição de imagem e o tamanho mínimo (a partir de 16 polegadas). Entretanto, boa parte das pessoas que possuem uma tela de LCD ou plasma, mesmo acreditando ter uma televisão com alta definição, não a possui de fato. A maioria dessas televisões são inferiores ao padrão prometido pelo modelo brasileiro, que possui, às vezes, 1.080 linhas transmitidas de forma entrelaçada.
Acho que nem precisa falar qual o tipo de televisão que a maioria dos brasileiros possui…
Quanto à inclusão social proporcionada pela transmissão digital, vamos ser sinceros: onde isso acontece ou vai acontecer? Mais de 90% dos lares brasileiros possuem pelo menos uma televisão; portanto, o alcance possibilitado por este veículo é enorme. Pensar em inclusão social através da inclusão digital pela televisão é ótimo; infelizmente, esbarramos em péssimas decisões e interesses econômicos divergentes. As decisões dizem respeito às características do padrão brasileiro, que transformaram sua adoção muito cara para o consumidor e impossibilitaram, até agora, o uso de interatividade – elemento primordial para a inclusão.
Quem paga somos nós
O modelo da televisão brasileira de comunicação de massa, que valoriza a indústria cultural de transmissão de um para muitos, onde o espectador é considerado como um preguiçoso receptor da mercadoria informação, é extremamente lucrativo e forte. Os radiodifusores não querem perder isso. Então, por que investir em mudanças? As emissoras de televisão nunca defenderiam o uso interativo real do meio (escolher o ângulo da câmera ou ver a sinopse do filme não é interagir), pois perderiam audiência enquanto os usuários realizam serviços ou acessam a internet. E todos sabem o que acontece quando a audiência cai: o valor da hora diminui e os anunciantes param de pagar ou pagam menos pelo espaço – ou seja, lucro menor (não é nem prejuízo).
Após todas estas incongruências, ainda é espantoso o governo financiar, através de um programa do BNDES (PROTVD), a implementação do sistema brasileiro de televisão digital. É dinheiro público que deve ser usado para os radiodifusores implementarem a televisão digital?
É irreal acreditar que aderir a esta TV digital é benéfico para o povo brasileiro. O padrão mais caro foi escolhido e sobrou para a população pagar por este luxo. Somos nós que compramos os receptores e televisores compatíveis e financiamos, através de dinheiro público, a infra-estrutura (privada) dos radiodifusores. Se o set top box custa R$200,00 não é porque a indústria de eletrônicos é boazinha e fez um acordo com o governo; é porque foi cobrado menos imposto sobre ele (além de permitir a não utilização do middleware, ou o processamento de alta definição). Ilusão acreditar que este é o único custo que o cidadão precisa fazer; o restante do valor de adesão à transmissão digital está camuflado nos programas governamentais de apoio à implementação, seja através de aportes financeiros ou isenção de taxas.
Eles escolheram, mas quem paga somos nós.
Acesso e educação
A interatividade, característica mais inclusiva e inovadora possibilitada pela televisão digital, não foi usada. É ela que possibilita a bidirecionalidade da comunicação; o espectador pode, através de um canal de retorno, interagir com a programação. Aparelhos mais novos de recepção digital permitem o acesso à web e a interatividade, mas não adianta nada se a emissora não produzir conteúdo interativo. No máximo, neste caso, o espectador poderá acessar a internet.
Então, ao invés de financiar um setor viciado pelo monopólio da informação, onde a verdadeira inclusão se dá, até agora, através de uma outra mídia, por que não investir em um setor realmente democrático?
(Quero deixar claro que não sou contra a digitalização das transmissões, só discordo da forma adotada no Brasil.)
Um bilhão de reais (valor do PROTVD) poderia ser usado na compra de computadores, treinamento de usuários e instalação de redes. Escolas públicas poderiam ser agraciadas com equipamentos de informática e acesso à internet através de tecnologia wireless ou banda larga fixa (sei que há diversos programas governamentais de apoio à informatização e que eles potencializam o crescimento do número de internautas, todavia podem ser mais bem utilizados ou amplamente valorizados e divulgados). Outro modo é incentivar a criação de lan houses, aproveitando que é o principal veículo de conexão das camadas mais baixas da população.
O dinheiro acumulado no Fust (Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações) pode ser usado para conectar o país inteiro, seja através da internet sem fio ou ligando novos pontos ao backbone já instalado. Se o objetivo deste fundo é universalizar os serviços de telecomunicações, então vamos fazê-lo dando equipamento, acesso e educação à população.
Telespectadores e usuários
Os diferentes financiamentos podem ocorrer em paralelo, mas é sabido que vivemos em um país rico de capital, mas pobre em gestão. Então, é melhor ser cauteloso e específico ao definir um plano de investimentos.
É errado pensar que a inclusão social via digitalização será dada pela televisão. Acesso à informação segmentada e a serviços públicos já pode ser feito em outro veículo: nos computadores.
E mais, sua importância vai além do acesso à internet. No mercado de trabalho, um pretendente a um cargo é mais valorizado pelos seus conhecimentos na confecção de planilhas do que na colocação de legenda em um filme. Saber mexer com informática tornou-se um elemento fundamental não só para o trabalho, mas também para interações sociais. A formação de comunidades online é prova desta cultura cibernética supervalorizada.
O excesso de informação obriga o usuário a saber a melhor forma de processar os dados que chegam a ele; e a melhor forma de fazer isso é utilizando a arquitetura computacional (HD, memória, processadores…). Ter noção desta tecnologia facilita o recebimento de informação, assimilação e a propagação de conhecimento.
Televisão digital é espetacular, diferente, nova, bonita, atraente… É um passo natural para a evolução do meio de comunicação – e ainda é a forma mais comum para a população ter acesso à informação. Mas as coisas estão mudando; não adianta tentar travar o desenvolvimento da informática. A audiência da televisão, principalmente com relação aos mais jovens, diminui constantemente, ao passo que o uso de computadores aumenta a cada ano. As pessoas não querem mais aquele velho paradigma da indústria cultural; elas querem escolher, participar, agir. Se até a televisão foi invadida pela digitalização e está cada vez mais parecida com um computador, por que investir em um modelo antigo?
Vamos disponibilizar os meios e deixar a população escolher como ela quer se comunicar: através da televisão ou através da internet. Particularmente, eu abro mão de uma televisão espetacular por uma com definição padrão a fim de que seja permitido à sociedade brasileira ter acesso à informação de forma democrática.
Enquanto a televisão for pensada como televisão, o país ficará preso a um oligopólio de controle da informação, restrito ao paradigma ultrapassado da hierarquia produtiva de conteúdo. A digitalização da mídia é a oportunidade que temos de democratizar em massa o acesso, passando ao próprio cidadão o poder de escolha.
Nesta televisão digital, não passamos de meros telespectadores; já na internet, somos usuários.
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Formado em Rádio e TV pela UFRJ e especialista em Mídias Digitais pela Unesa