Tornou-se público na quinta-feira (16/2), o relatório final do CPqD (Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações) sobre o modelo de referência para o Sistema Brasileiro de TV Digital.
Os dois pontos mais esperados do documento dizem respeito às análises que ele traça em relação às vantagens e desvantagens de cada um dos padrões em discussão (o japonês ISDB, o europeu DVB e o norte-americano ATSC), e à avaliação dos três cenários possíveis de modelos de negócios (o incremental, o de diferenciação e o de convergência). Na verdade, boa parte da discussão em torno da TV digital poderia se resumir a essas duas definições.
No que diz respeito ao padrão, o CPqD reconhece as qualidades do japonês mas se inclina pelo europeu, levando em conta principalmente o custo para o usuário. Em relação ao modelo de negócios, o CPqD considera que o cenário incremental (que incorpora apenas alta-definição e mobilidade) é o menos adequado entre os três – e que o cenário de convergência, que considera uma grande gama de aplicações, é o melhor.
Isso é tudo que as emissoras de televisão não queriam ouvir. Toda a estratégia de ação política levada a efeito nos últimos anos tem por fim exatamente a escolha do padrão japonês (que permite a transmissão diretamente para telefones celulares sem a utilização de operadores de telefonia) e do cenário incremental – que basicamente reproduz o modelo de negócios vigente desde a implantação da TV no Brasil. Mais do que isso: as emissoras têm descartado a simples possibilidade da existência de qualquer cenário de modelo de negócios que não o incremental. Para elas, tal hipótese está ‘distante da realidade’ e, além disso, a definição de tais cenários caberia ‘ao governo, não a um instituto de pesquisa’.
Decisões de governo
O fato é que um dia depois de o relatório ter sido tornado público (na sexta-feira, 17), o noticiário especializado Pay-TV News publicou a matéria ‘Relatório do CPqD recebe críticas de radiodifusores’.
No texto são encontradas cerca de 15 críticas ao relatório, vindas de empresas de radiodifusão. Curiosamente, todas essas críticas são anônimas. São trechos como os seguinte:
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‘Este noticiário recebeu, de diversos interlocutores que preferem não se manifestar publicamente comentários sobre o relatório final do CPqD sobre o Modelo de Referência do Sistema Brasileiro de TV Digital’ (…).**
‘Segundo um radiodifusor ouvido por este noticiário, os custos estimados pelo CPqD não batem com as pesquisas feitas pela Universidade de São Paulo’ (…).**
‘Outro questionamento, vindo de radiodifusores, diz respeito à avaliação de riscos e benefícios dos diferentes modelos de negócio’ (…).**
‘Segundo a leitura de um radiodifusor, não se está discutindo, agora, novos serviços, e por isso não faz sentido impor um modelo convergente’ (…).**
‘‘O governo tem que cumprir a lei e ter coragem de proibir a migração de quem estiver irregular’, diz um radiodifusor’ (…).**
‘‘Isso só faz sentido se você diminuir brutalmente a capacidade de transmissão do DVB’, justifica um radiodifusor’ (…).**
‘‘A sinalização da tecnologia precisa acontecer agora. Se der garantias de que vamos poder migrar, não tem problema’, diz o diretor de uma emissora’.O Pay-TV News tornou-se já há algum tempo uma das mais respeitadas e isentas fontes de informação sobre questões ligadas à radiodifusão e TV por assinatura no país. Soa estranho que as emissoras de televisão, que estão entre as principais interessadas na migração para as plataformas digitais (e dentro da mesma estratégia de ação política se proclamam como as únicas interessadas) tenham preferido o anonimato para comentar as mais importantes observações feitas até agora sobre o assunto. Observações que não são aleatórias, mas exprimem o resultado de estudos feitos por uma instituição de pesquisa contratada pelo governo justamente para organizar esse processo de migração.
São essas conclusões que em tese vão orientar as decisões de governo. Desqualificar seu relatório, portanto, é menos sensato do que investigar o que de fato está provocando as discrepâncias entre esse texto e o pensamento da maioria das emissoras de televisão.
O evangelho segundo Lucas
Para que isso aconteça, é necessário que alguns pré-requisitos sejam observados.
O ambiente paranóico que se formou tem que ser desfeito. Não se pode continuar achando que ou se está afinado com as emissoras ou se está a serviço das teles. É muito difícil aceitar a tese de que quem não está com as emissoras de TV está contra elas. Bem pelo contrário, como nos ensinam as Escrituras. A frase final do evangelho de Lucas – ‘quem não está comigo está contra mim’ – é dita justamente no contexto do episódio da libertação de um cativo do silêncio. Jesus devolve a voz a um mudo e seus adversários o rotulam de príncipe dos demônios. Jesus pondera então que não se trata de estar ou não de acordo com ele, mas se pôr de acordo para lutar contra o mal – porque quem não luta contra o mal se opõe à ação de Deus.
Não se pode também levar adiante a idéia de que a manifestação sobre o assunto deva ser limitada a alguns setores, assim como não é possível continuar achando que possa haver um monopólio do direito de defender o desenvolvimento do meio. Toda a população brasileira está a favor da televisão e quer uma televisão cada vez mais forte e melhor. As emissoras temem ações que possam enfraquecê-las e devem ser preservadas disso. Mas isso está fora de discussão. Outros setores da sociedade, no entanto, tem não apenas o direito mas o dever patriótico de se manifestar sobre os avanços que determinam novos paradigmas na forma de se fazer e se consumir televisão. Não existe lógica em se disseminar a idéia de que a migração para o digital significa apenas um aprimoramento tecnológico do veículo.
A resistência em reconhecer a amplitude da discussão sobre a TV digital está gerando situações pouco confortáveis para o próprio governo. Vários ministérios apresentarão ao presidente da República versões conflitantes sobre a questão. O ministro das Comunicações Hélio Costa, por exemplo, tem mostrado empenho em levar um quadro acabado, mas insiste em repetir um discurso que desconsidera as muitas variáveis que compõem esta complexa equação.
Sustentar que não se deve deixar que as teles (com forte aporte estrangeiro e faturamento oito vezes maior que as televisões) engulam os radiodifusores (que têm um mínimo de 70% de participação nacional) é uma atitude correta; mas isso de modo algum encerra a questão. Pode servir para justificar, por exemplo, a adoção do padrão japonês, mas isso deve ser expressa de maneira clara.
Ainda assim, o atual ministro e ex-repórter de TV tem deixado escapar considerações difíceis de explicar. Na edição televisiva do Observatório da Imprensa (terça-feira, 14/2, pela Rede Pública de TV), ele revelou que as plataformas digitais permitirão a entrada de ‘centenas de novos players‘ e garantiu que promoveu ’84 reuniões’ do Comitê Consultivo do SBTVD durante sua gestão. Ambas as afirmações situam-se em níveis não muito distantes do delírio.
A morte prematura do Cinema Novo
Entre as teclas que o ministro bateu está a de que a televisão brasileira ‘é uma das melhores do mundo’. Para ele, melhor do que a TV brasileira, só mesmo os documentários da BBC.
Essa é uma peça de ficção que só tem atrapalhado a televisão brasileira e não a tem beneficiado em nada. O Cinema Novo, que foi o mais intenso movimento cinematográfico da história do país, durou menos de dez anos justamente por causa de uma retórica similar. Entre 1962 e o início dos anos 1970, ao lado de cineastas extraordinários como Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos e Joaquim Pedro de Andrade, figuravam realizadores inexpressivos que faziam filmes muito ruins. Mas a autocrítica não era permitida pelo movimento. Todos os filmes realizados no âmbito do Cinema Novo tinham que ser, por definição, importantíssimos. Quem não achasse assim (pelo corolário da mesma definição) era inimigo do cinema brasileiro.
Pois foram os amigos, e não os inimigos, que abreviaram a vida do Cinema Novo e tolheram o potencial de muitos realizadores. Mais de 40 anos depois, a ação corporativa cuja origem se confunde com a controvérsia em torno da TV digital também cunhou a figura de inimigos da televisão brasileira – e também professa a fé de que tudo o que é produzido pela TV brasileira é, por definição, extraordinário.
Não é. Gostaríamos que fosse e nos empenhamos para isso. Mas a televisão brasileira não é uma das melhores do mundo. Pode até vir a ser, porque há um grande parque técnico instalado pelas grandes redes e um imenso potencial criativo espalhado pelo país.
Mas quem insiste em bradar que a televisão brasileira é um modelo internacional de excelência não está prestando qualquer serviço à televisão como um todo nem a uma emissora em particular. Está é colaborando para o seu atrofiamento, da mesma forma como os cinemanovistas sectários colaboraram para o fim prematuro do movimento.
Guerra de mercado e a sociedade
O fato é que a questão da TV digital não pode se resumir a uma guerra de mercado entre os radiodifusores e as teles – e a sociedade brasileira não deve ser refém dessa batalha comercial. O processo de digitalização também não pode ser resumido à simples migração de uma plataforma para outra, como se nada mais relevante estivesse acontecendo.
Porque está. A transição implica uma demanda bem maior por conteúdo, na possibilidade real de diversificação desse conteúdo e na urgente necessidade de construção de modelos originais – tanto para a televisão quanto para meios convergentes.
Essa questão implica também a possibilidade de que as emissoras reflitam se o que estão produzindo e veiculando é bom para o usuário; se os esforços de unificação de discursos estão se fazendo acompanhar por tentativas de nivelação por cima da qualidade do que é produzido; e se é possível conter o desenvolvimento tecnológico para marcar posição no mercado.
Os horizontes que se abrem com um cenário que privilegie as transmissões em alta-definição, mas que ao mesmo tempo estimule a incorporação de recursos interativos plenos e a abertura do leque criativo, virão antes de mais nada em benefício do meio e de quem o opera. Não há qualquer razão para rejeitar essa possibilidade, como se ela jamais existisse.
Porque ela existe – e deve ser saudada como uma grande oportunidade de crescimento da televisão aberta brasileira, que tem momentos que fazem florescer o orgulho pelo veículo, mas que também, em grande medida, se amesquinhou e passou a aceitar como naturais padrões dos quais há algum tempo se envergonharia.
Revolução sem imposição
A revolução nos padrões de qualidade só pode ser feita dentro das emissoras, e não por imposição. Isto é ponto pacífico. O processo de migração para o digital pode ser um notável encorajamento para que o meio ganhe nobreza, auto-estima e a admiração do usuário.
Da mesma forma como não se pode impor atitudes às emissoras de TV, ou às teles, ou a qualquer tipo de negócio, também não se pode impor à população a convivência com modelos anacrônicos de construção do meio mais popular do país; nem com tecnologias obsoletas; muito menos com valores que já não são aceitáveis numa sociedade que está mais desenvolvida, educada e participativa.
A televisão brasileira está propondo um pacto e ele deve ser aceito. Esse pacto deve tirar proveito das oportunidades oferecidas pela implantação das plataformas digitais; deve levar em consideração a necessidade de fortalecimento das emissoras – e também o imperativo do atendimento das demandas da sociedade e do aproveitamento pleno das potencialidades das novas tecnologias.
Se isso for feito, com a mente aberta à necessidade de melhoria e renovação, então será possível que daqui a alguns anos algum ministro ir à população e, sem medo de cometer uma gafe, afirmar que estamos construindo uma das melhores televisões do mundo.