Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O silêncio dos ‘inocentes’

Na última edição de 2004 do Observatório da Imprensa foi publicado o artigo ‘O que é isso, companheiro?’ [ver remissão abaixo], em que apontava os perigos de o cinema brasileiro, mais uma vez, perder o bonde da história.

E não é que perdeu, mesmo? Os cineastas xiitas satanizaram a criação da Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav) acusando os elaboradores e os promotores do projeto de stalinistas, zdhanovistas, chavistas e de outros ‘istas’. Estes senhores, junto com a TV Globo e outros grupos empresariais que defendem as distribuidoras do cinema hollywoodiano no Brasil, criaram o Fórum do Audiovisual e do Cinema (FAC), como entidade representativa que se dizia detentora do maior Produto Interno Bruto (PIB), para fazer frente ao projeto que acusavam de antidemocrático, apesar de estar em consulta pública e em amplo debate em todos os segmentos da sociedade.

A proposta da Ancinav nada mais era do que a busca de meios para o desenvolvimento da indústria cinematográfica brasileira e sua autonomia, sustentabilidade, além de medidas de proteção ao produto nacional e as conseqüentes reservas culturais e patrimoniais do país. Os recursos para esta proposta viriam de taxações que incidiriam sobre diversas atividades do comércio do audiovisual no Brasil (TVs abertas e pagas) e das distribuidoras norte-americanas que exibem e remetem seus lucros ao exterior.

É bom lembrar que o país já tentou várias vezes desenvolver a indústria do cinema, com a Atlântida, a Vera Cruz e a Cinédia, sem conseguir romper as barreiras protecionistas que alimentam a hegemonia norte-americana. Nas décadas passadas, até o governo Collor, a Embrafilme era a nossa esperança para desenvolver a indústria cinematográfica. Mas, em vez de a Embrafilme se solidificar como fomento à indústria cinematográfica, alimentava um grupo de cineastas baseado apenas no dinheiro público. E são estes mesmos cineastas que enxovalharam a proposta da Ancinav.

Eu iniciava o fechamento do artigo mencionado acima afirmando que, ‘diante de tamanha pressão, que contará com grande parte dos parlamentares detentores de concessões de rádio e de TV no país, o racha pode, mais uma vez, deixar o cinema definitivamente excluído diante da possibilidade de se gerar um impasse no Congresso quando da discussão dos temas relevantes do projeto: a defesa do patrimônio, das reservas culturais e da soberania nacional – vale dizer, da identidade brasileira’.

Revitalizar a Ancine

Pois bem, não é que o Congresso aprovou, logo depois do artigo publicado, a composição do Conselho de Comunicação Social (CCS), órgão previsto na Constituição para auxiliar o Congresso nas definições, políticas e rumos da comunicação de massa no país? E observem como ficou a composição do CCS: empresários, inclusive que defendem interesses da Globo, ocupam 60% da representação da sociedade civil no Conselho. Dos 10 conselheiros, recentemente eleitos, só três são ‘100% sociedade civil’. Seis deles são empresários e um é secretário de Estado. Agora, o lobby da Globo é o mais forte no Conselho de Comunicação Social e no Congresso, já que a emissora retransmite para 25% dos canais de TV de ‘propriedade’ dos parlamentares da Casa.

Os seis porta-vozes do empresariado da mídia são os titulares Roberto Wagner, diretor da Rede Record e presidente da Associação Brasileira de Radiodifusão e Telecomunicações (Abratel), e João Monteiro de Barros Filho, presidente da Rede Vida, seguidos dos suplentes Segisnando Ferreira Alencar (diretor da TV Rádio Clube de Teresina), Felipe Daou (sócio-diretor da Rede Amazônica de Rádio e TV), Flávio de Castro Martinez (sócio-diretor da Rede CNT, irmão do falecido ex-deputado federal e ex-presidente do PTB, José Carlos Martinez) e Paulo Marinho (executivo do Jornal do Brasil, Gazeta Mercantil e revista Forbes, assessor de Nelson Tanure). O secretário de Estado de Cultura de Rosinha Mateus (PMDB-RJ) é o professor Arnaldo Niskier. E os três integrantes que representam a sociedade civil são: Dom Orani João Tempesta, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Luiz Flávio Borges D’Urso, da seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP), ambos titulares, e Gabriel Priolli, da ABTU (Associação Brasileira de Televisão Universitária), suplente de Niskier.

Na conclusão do artigo dizia que ‘a única alternativa que restará ao governo é revitalizar as diretrizes da Agência Nacional do Cinema (Ancine) e, talvez, criar uma outra agência, tipo AnaCom (Agência Nacional de Comunicação), ou pior, uma Anaconda (Agência Nacional da Convergência Digital), e revigorar as câmaras regulatórias específicas por segmento de atividade na área de comunicação digital: teles, TV, rádio, jogos, vídeo, teatro, música, dança etc’.

iníqua

Por causa de tudo isso, o tom da conversa mudou depois do encontro do ministro da Cultura com o presidente Lula, na semana passada, conforme publicou a grande imprensa no dia 15 de janeiro. O governo decidiu tocar a Lei Geral das Comunicações e deixar um pouco de lado a Ancinav. Nesse momento que antecede a aprovação da Lei Geral das Comunicações, a Ancinav focará sua atuação no fomento e na fiscalização do setor audiovisual.

O ministro Gilberto Gil reconhece que o projeto da Ancinav ficará meio que hibernando até que se defina a regulação. Ele disse que ‘não há fiscalização sem regulação, porque só se fiscaliza o que as normas, as leis, determinam. O que se propõe é que as atribuições mais amplas de regulação para o setor do audiovisual advirão da Lei Geral, o que tornará as ações da Ancinav muito mais sólidas e dará segurança ao conjunto dos agentes’.

O texto do projeto da Lei Geral das Comunicações ficará a cargo da mesma equipe que elaborou o anteprojeto da Ancinav, formada por técnicos do Ministério da Cultura, da Casa Civil, das Comunicações e outros que fazem parte do Conselho Superior de Cinema. Esse trabalho correrá paralelamente à tramitação do projeto de lei que cria a Ancinav no Congresso.

E, antes que isso acontecesse, no dia 28 de dezembro, concluía o artigo ‘O que é isso companheiro’ afirmando que ‘o bonde da história já partiu e deixa para trás o cinema, que nem aceita ser uma atividade do audiovisual e subestima a capacidade intelectual do povo e do governo brasileiro’. Não é preciso dons premonitórios para pressentir o retrocesso no Brasil. Ele parte dos mesmos setores beneficiários de uma ordem iníqua.

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Professor-titular e coordenador de Radialismo das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha, Rio de Janeiro), integrante da diretoria do Fórum Brasileiro de Ensino de Cinema e Audiovisual (Forcine) e filiado à Associação Brasileira de Roteiristas Profissionais (ARTV)