Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O burro na sala dos paulistas

Inconfidência de funcionário que trabalha na assessoria de comunicação do governo de São Paulo dá conta de que a comissão de gestão da crise hídrica não considera seriamente realizar um racionamento de cinco dias sem água e dois dias com fornecimento. Técnicos afirmam que os riscos seriam muito grandes.

O ponto máximo do corte seria quatro dias sem água seguidos de dois dias com fornecimento sob pressão reduzida. A ameaça de cinco dias de seca é o burro na sala.

Há um grande descontentamento em algumas secretarias cujas atribuições são afetadas diretamente pela incúria da Sabesp e do governador Geraldo Alckmin. Os assessores de comunicação dessas secretarias foram alijados do centro de decisões e se veem obrigados a lidar diariamente com medidas restritivas que são inventadas sem que sejam consultados. A secretaria da Educação, por exemplo, foi surpreendida pelo anúncio de corte de verba para higiene e limpeza nas escolas públicas.

A centralização de decisões é uma das medidas mais comuns na gestão de crises que podem afetar a reputação de governantes ou de empresas. Portanto, compreende-se a preocupação do governador Geraldo Alckmin e seu subsecretário de Comunicação em evitar que os bastidores de reuniões estratégicas vazem por meio de funcionários descontentes.

No entanto, a preocupação não tem fundamento, porque a imprensa não demonstra nenhuma disposição para questionar suas políticas públicas – ou a falta delas. Pelo contrário: diante da evidência de que o corte de fornecimento tem potencial para causar transtornos nas escolas, o que fazem os jornais?

O Estado de S. Paulo publica que as universidades públicas do Estado cogitam suspender aulas, pela impossibilidade de realizar a limpeza de banheiros, por exemplo – e temem que isso venha a prejudicar o andamento de pesquisas. Já a Folha de S. Paulo foi atrás de especulações sobre restrições ao uso de água nas escolas municipais.

Segundo a Folha, alguns diretores de escolas municipais decidiram vetar o uso de escovas de dentes e supervisionar o acesso de alunos aos bebedouros. O texto se refere a interpretações extremadas de uma orientação oficial da Secretaria Municipal de Educação, no sentido de que as escolas promovam ações contra o desperdício, cuidem da manutenção para evitar vazamentos e aproveitem para orientar os alunos sobre o uso racional da água.

Secos e molhados

Como se vê, trata-se de iniciativa necessária, diante da gravidade que a crise pode adquirir com a volta às aulas. O objetivo da recomendação é conseguir que as escolas da capital paulista reduzam em 20% o consumo de água. No entanto, o jornal faz parecer que alguns diretores de escolas municipais são estúpidos ao tomarem “medidas extremas”.

Enquanto isso, a imprensa agasalha passivamente a estratégia de comunicação do governo do Estado, que conseguiu diminuir as notícias negativas sobre as causas da falta de água, por exemplo, dando destaque a iniciativas atuais, que deveriam ter sido tomadas muitos anos atrás.

Nesta quarta-feira (4/2), além das referências às universidades públicas e escolas municipais, o leitor vai encontrar notícias sobre proposta de lei para obrigar os novos edifícios a economizar água e o anúncio de obras para interligar os reservatórios da região metropolitana.

Sempre que é necessário tomar medidas emergenciais, deve-se analisar os possíveis danos colaterais. Por exemplo, a reversão do fluxo do rio Juquiá, já considerada no passado, tem provocado reações de entidades ambientalistas: o rio Ribeira, do qual o Juquiá é tributário, vem sofrendo uma constante perda de volume por causa de abusos na retirada de areia. Essa areia alimenta a indústria de construção civil na capital paulista. Como se vê, a coisa não é assim tão simples.

Sempre foi papel da imprensa mostrar que toda questão tem múltiplas facetas, e não apenas “os dois lados”, como costumam justificar os jornais. No caso das medidas que o governador anuncia com anos de atraso, a imprensa engole, por exemplo, a isca do rodízio de cinco dias e ajuda a empurrar goela abaixo o racionamento que já está em curso há meses.

Jornalistas gostam de repetir a frase de Millôr Fernandes: “Jornalismo é oposição; o resto é armazém de secos e molhados”.

No caso da mídia tradicional brasileira, curiosamente, a citação vale apenas para alguns. Uma imprensa crítica em igual medida para todo o espectro político ajuda a melhorar as instituições públicas. Uma imprensa que se comporta como organização partidária e extensão de assessorias de comunicação é uma constante ameaça à democracia.